Para juíza de Santa Catarina, fazenda flagrada com escravos fez um “benefício à sociedade”

Trabalhadores libertados na Superintendência Regional do Trabalho em Santa Catarina

O repórter Piero Lacatelli, da ONG Repórter Brasil, fez uma denúncia inédita. A juíza do Trabalho Herika Machado da Silveira Fischborn de Santa Catarina invalidou a ação dos auditores que flagraram 156 trabalhadores em condições precárias em uma fazenda, com os documentos apreendidos e sem receber salários há pelo menos 2 meses.

O flagrante ocorreu em abril de 2010, mas a sentença foi proferida em março deste ano. A auditora coordenadora da operação, Lilian Rezende, relata que neste mês levou o caso ao Conselho Nacional de Justiça e à Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

Ela denuncia que nem sequer foi ouvida pela juíza. “[É um processo] que desde o início me condena de pronto, sem permitir minha defesa”.

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Texto nas paredes do dormitório da fazenda

Segundo Fischborn, a escravidão se justificaria porque “[os] trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que (…) gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes”.

Para Carlos Rogério Nunes, secretário de Políticas Sociais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), é muito importante seguir denunciando e punindo o trabalho escravo no país. “Os governos Lula e Dilma fortaleceram o combate ao trabalho escravo e o Conatrae e os fiscais têm que fazer o seu trabalho para erradicarmos de vez essa chaga”.

Ele lembra ainda que tramita no Senado o projeto 432/2013, de autoria de Romero Jucá (PMDB-RR), que visa “acabar com a expropriação de terras onde se verifique trabalho escravo, praticamente absolvendo os patrões flagrados”. 

Em seu despacho a juíza diz ainda que “o fato de reter a CTPS (Carteira de Trabalho) somente causa, na realidade, benefício à sociedade. É cruel isto afirmar, mas é verdadeiro. Vive-se, na região serrana, situação limítrofe quanto a este tipo de mão de obra resgatada pelos auditores fiscais do trabalho que, na realidade, causa dano à sociedade”.

A reportagem do Repórter Brasil conta que “sem dinheiro, documentos e transporte, os trabalhadores não conseguiam voltar para suas casas no interior do Rio Grande do Sul, de onde haviam saído com promessas de emprego. Eles sequer conseguiam chegar à cidade mais próxima, São Joaquim, a 40 quilômetros da fazenda onde trabalhavam, por estrada de chão”.

Fischborn foi ainda mais longe e acusou os auditores de agir de “forma cruel” ao libertar os trabalhadores escravizados. “Ao ciclo vicioso de trabalho inadequado, vício, bebida, drogas, crack, crime e Estado passando a mão na cabeça”. Ela anulou “parte da operação dos auditores fiscais do trabalho, mas também pediu que a Polícia Federal os investigasse”, diz Lacatelli.

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Situação das dependências destinadas aos trabalhadores escravizados

Os auditores relatam uma situação na qual se configura trabalho análogo à escravidão. Não havia acomodação adequada. A fiscalização flagrou ainda que “os banheiros não possuíam portas e eram integrados aos quartos, fazendo com que a água do banho escorresse por debaixo das camas e aumentasse a umidade do local”.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho escravo pode assumir diversas formas. “Pode estar relacionado com o tráfico de pessoas, que cresce rapidamente no mundo todo. Ele pode surgir de práticas abusivas de recrutamento que levam à escravidão por dívidas; pode envolver a imposição de obrigações militares a civis; pode estar ligado a práticas tradicionais; pode envolver a punição por opiniões políticas através do trabalho forçado e, em alguns casos, pode adquirir as características da escravidão e o tráfico de escravos de tempos passados”.

Nunes reforça a posição da CTB contra a exploração do trabalho escravo e condena a decisão da juíza. “É incompreensível que uma juíza do Trabalho tome decisão carregada de preconceito e sem se ater aos fatos denunciados e ainda incrimine quem deu o flagrante”.

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Dormitório destinado aos trabalhadores

O ex-presidente do Conatrae, Rogério Sottili afirma que o combate ao trabalho escravo foi efetivado em 1995, mas ganhou força a partir de 2003, com o ex-presidente Lula e que em 20 anos foram libertados quase 50 mil trabalhadores.  Sendo que a maioria das pessoas em situação análoga à escravidão no país foram libertadas em áreas urbanas, boa parte na construção civil e indústria têxtil, a serviço de poderosas grifes.

Marcos Aurélio Ruy – Portal CTB

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