Na quarentena, a violência doméstica e a fome caminham de mãos dadas

Em São Paulo, serviços de proteção às mulheres e crianças vítimas de violência arrecadam alimentos para amparar as famílias mais vulneráveis

No início de abril, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, fez um apelo global para os governos protegerem as mulheres e crianças, mais vulneráveis à violência doméstica em decorrência do confinamento provocado pela pandemia do novo coronavírus. Ele sugeriu a criação de “sistemas de alerta de emergência em farmácias e lojas de alimentos”, os únicos locais que permanecem abertos em muitos países.

“Infelizmente, muitas mulheres e crianças estão em risco de violência exatamente onde deveriam ser protegidas, nas suas próprias casas”, lamentou Guterres. “Nas últimas semanas, à medida que as pressões econômicas e sociais pioraram e o medo aumentou, o mundo vive um surto horrível de violência doméstica.” A ameaça não se restringe, porém, aos casos de agressão e abuso sexual. Em comunidades pobres do Brasil,  mulheres e crianças ficam ainda mais vulneráveis com a perda de renda ocasionada pela quarentena.

A situação é relatada pela assistente social Lucélia da Silva Ferreira, coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade Metodista de São Paulo e do Centro de Referência da Mulher do Capão Redondo, um dos bairros mais pobres e violentos da capital paulista. “Muitas mulheres tinham trabalhos informais como diarista, venda de bolos, panos de prato, etc. Hoje, estão sem renda, aguardando a disponibilidade do auxílio emergencial oferecido pelo governo”, afirma. “Infelizmente, o valor disponibilizado (600 reais) não atende as necessidades das famílias que, ao ficarem em casa, acabam por ter mais gastos com a alimentação, produtos de limpeza etc. Muitas destas mães tinham um apoio grande na escola, que garantia parte das refeições dos filhos, e nos Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs), fechados devido à epidemia.”

O Centro de Referência da Mulher do Capão Redondo é administrado pelo Instituto Herdeiros do Futuro, organização social que presta serviços para a prefeitura paulistana. A entidade também gerencia três Serviços de Proteção Social à Criança e Adolescente e um Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico, todos em bairros periféricos de São Paulo. Ao todo, mais de 500 famílias são atendidas por essas unidades.

“O instituto atua, sobretudo, com crianças, adolescentes, mulheres e famílias que tiveram seus direitos violados, principalmente em situações relacionadas à violência: doméstica, gênero, sexual e outras”, explica Ferreira. “Continuamos acompanhado as situações mais graves e apoiando quanto à obtenção de medidas protetivas. Por enquanto, não identificamos um aumento de casos de violência, mas não podemos afirmar que não esteja ocorrendo. Em meio à necessidade de afastamento social, as mulheres ficam ainda mais vulneráveis e nem todas têm acesso a internet, celular ou dominam as redes sociais para denunciar.”

Os impactos da perda repentina de renda, no entanto, são mais evidentes, acrescenta a assistente social. “Na luta pela sobrevivência, muitas mulheres estão costurando máscaras e procuram vendê-las como podem.” Ao perceber que a maioria das famílias acompanhadas está com severas dificuldades financeiras para comprar alimentos e itens de higiene pessoal, o Instituto Herdeiros do Futuro iniciou uma campanha para arrecadar donativos e distribuir cestas básicas.

Até o momento, 100 famílias foram beneficiadas, o que representa cerca de 500 pessoas. “Gostaríamos de continuar beneficiando essas e outras famílias que, neste momento de quarentena, além de conviverem com diversas situações de violência, muitas vezes intensificadas em suas casas, ainda sofrem com falta de alimentos e estão com poucos recursos de sobrevivência.”

Em todo o Brasil, delegacias reforçam o pedido para que mulheres e meninas denunciem abusos mesmo em tempos de isolamento. No canal de denúncias Ligue 180, administrado pelo governo federal, a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres anunciou um aumento de 17% no número de denúncias registradas pela plataforma no comparativo entre o começo e o fim mês de março, período marcado por determinações de afastamento social em estados e municípios. Já a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro relatou um aumento de 50% nos casos de violência doméstica no estado durante os primeiros dias do período de isolamento.

Rede de solidariedade

Em decorrência da necessidade de distanciamento social para conter o avanço do novo coronavírus, o Instituto Herdeiros do Futuro, mencionado na reportagem, arrecada doações por meio de transações bancárias, em vez de pedir que os interessados levem mantimentos presencialmente nas unidades de atendimento. Além da cesta básica, ao custo de 65 reais, a entidade distribui kits de higiene pessoal, uma despesa de 45 reais. Para doar, basta fazer uma transferência ou um depósito no Banco do Brasil, conta 7969-3, agência 4334-6, CNPJ: 08.346.099/0001-90. Empresas podem fazer doações com benefício fiscal. As atividades da instituição podem ser consultadas no site.

Fonte: Carta Capital