Ditadura rastreou jogadores do Atlético Mineiro

por Aloísio Morais

Na década de 70, que registrou o período mais duro do governo militar no país, dois destacados jogadores do Atlético Mineiro despertaram a atenção do Serviço Nacional de Informações, o poderoso SNI: o atacante Reinaldo, que, por longos anos, ostentou a marca de maior artilheiro do Campeonato Brasileiro, com 28 gols, e o goleiro uruguaio Marzukiewicz, por suspeita de envolvimento com o grupo guerrilheiro de sua terra, os famosos Tupamaros de Pepe Mujica e Raúl Sendic, como mostram as cópias de documentos anexos.

Os relatórios dos espiões da ditadura a respeito dos dois jogadores agora estão à disposição no Arquivo Nacional, em meio ao material já digitalizado sobre o período da ditadura militar. Na última quinta-feira, 25, Reinaldo disse desconhecer o relatório do SNI e mostrou curiosidade em conhecê-los. “Já tinha ouvido falar alguma coisa, parece que era material levantado pela Comissão Nacional da Verdade, mas esses informes eu desconheço”, disse.

Reinaldo chamou atenção dos ‘arapongas’ da ditadura por causa de uma entrevista concedida ao jornal semanal Movimento, que, por bons anos, teve de submeter todo seu conteúdo à censura da ditadura. Na ocasião, o atacante acabou mostrando, pela primeira vez, que, além de bom de bola, era também bom de cuca, ao se posicionar sobre diversas questões políticas da época, no agitado ano eleitoral (para as casas legislativas) e de Copa do Mundo de 1978, quando foi convocado para integrar a Seleção Brasileira.

Mostrando-se bem informado sobre tudo em plena flor de seus 21 anos, o que não era e não é comum a jogadores de futebol até hoje, o artilheiro do Galo abriu o bico e foi falando sobre tudo o que lhe era perguntado, sem meias palavras, às vésperas de se apresentar à Seleção. A tal ponto que, após a edição 140 do jornal Movimento chegar às bancas, no dia 6 de março de 1978, não faltaram jornalistas a levantar dúvidas e achar que se tratava de forçação de barra, que Reinaldo não teria dito o que disse.

Poucos dias depois, no entanto, ao se apresentar à Seleção Brasileira na sede do Flamengo, na Gávea, ele foi cercado por jornalistas que queriam confirmar o teor de sua entrevista e saber de suas ideias e posições políticas. Mas, sabendo bem do campo minado onde pisava, espertamente Reinaldo driblou os repórteres e desconversou, afirmando que “tudo o que pensava já tinha sido dito à reportagem do Movimento” e não iria repetir, confirmando, portanto, o conteúdo da entrevista.


Entrevista de Reinaldo rendeu capa no Movimento e muito repercussão com a bela foto de Auremar de Castro

A reportagem teve boa repercussão e o jornal chegou até a vender uma cópia para a imprensa estrangeira. Na época, Reinaldo chamava atenção também por comemorar seus gols com os punhos fechados da mão direita, como faziam os Panteras Negras nos Estados Unidos, o que já deixava uns e outros olhando torto para o artilheiro do Atlético.

“Aquela entrevista me salvou, garantiu minha permanência na Seleção. Se me desligassem por causa das minhas posições políticas isso daria muita repercussão negativa. Então, acabei sendo mantido”, chegou a afirmar Reinaldo anos mais tarde, passados os tempos de ditadura, ao lembrar que seu corte da Seleção chegou a ser cogitado dentro da CBF por causa de suas posições políticas. Ele se referia, no caso, à tentativa do presidente da então Confederação Brasileira de Desportos (CBD), Heleno Nunes, também conselheiro do Vasco e presidente da Arena (partido político da direita da época) de dispensar Reinaldo da Seleção sob alegação de que tinha problemas físicos.

Além de descartar Reinaldo por causa de suas posições políticas, o presidente da CBD queria também beneficiar seu Vasco com a convocação do atacante Roberto Dinamite, que encontrava-se em má fase. Porém, Reinaldo acabou calando a boca torta de Heleno Nunes marcando 14 gols nas 37 partidas em que atuou pela Seleção Brasileira.

Declarações

Na entrevista, Reinaldo disse que estava lendo o livro “Cartas da Prisão”, de Frei Betto, e que tinha o hábito diário de ler as crônicas de Carlos Drummond de Andrade. “A anistia (aos presos políticos e exilados) vai acontecer mais cedo ou mais tarde, porque em tudo deve haver oposição, pois é assim que surgem novas ideias e caminhos diferentes”, disse sobre um dos temas em evidência na época.

“Em tudo o povo tem que ter participação. Nós temos que depositar confiança em quem votamos para sermos retribuídos de alguma forma, nem que as futuras gerações sejam as beneficiadas”, afirmou ao defender a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que só viria a ser concretizada dez anos depois. “Ainda bem que ultimamente o povo está participando mais da vida do país, demonstrando seu interesse em participar (da vida política do país).”


Reportagem de Movimento abordou a tentativa de desligamento de Reinaldo da Seleção

Depois de afirmar que Pelé tinha se perdido em meio a seus assessores e, por isso, não tinha opinião própria, “pois no futebol é muito difícil preservar a personalidade”, Reinaldo disse que, ao contrário do que achava o ex-atacante do Santos, “o povo brasileiro estava preparado, sim, para votar, como sempre esteve”. “Eles fizeram o povo se afastar da política, mas é claro que o povo tem maturidade para votar. Isso já foi demonstrado no passado e não é possível que quem já votou uma vez vai ficar imaturo depois de velho. Está na hora de aproximar todo mundo das decisões políticas. O povo tem sua opinião e essa opinião deve ser respeitada”, acentuou.


Reinaldo deu bastante trabalho aos zagueiros e aos arapongas do SNI

Na época, o jogador do Atlético cursava o último ano do segundo grau (o antigo 3º ano do Científico) e já demonstrava o desejo de não parar nos estudos. “A bola a gente para de jogar, mas o que entra na cabeça ninguém tira”, dizia. Sua persistência acabou fazendo com que concluísse o curso de Comunicação Social, formando-se como jornalista.

“Pra mim a saída individualista não é a melhor”, disse ao se referir à necessidade de os jogadores se fortalecerem em torno de suas entidades representativas e garantir seus direitos. Afinal, “todo mundo quer ganhar dinheiro em cima da gente”. Por essas e outras ele defendia também uma melhor distribuição de renda para o trabalhador diante da mais-valia: “A gente dá mais lucro para o dono e o salário não dá (pra viver). Você trabalha oito horas e o patrão só paga o que, na verdade, só corresponde a uma hora de serviço. Devia-se dar mais atenção para esse problema, porque a coisa não pode ficar assim”, observou.

Ainda hoje dono da maior média de gols na história do Campeonato Brasileiro, Reinaldo aproveitou para defender mais participação dos jogadores de futebol nas decisões sobre suas vidas profissionais: “Muitas vezes a gente não pode dizer o que pensa porque é levado pela máquina. Aqui no Brasil o esquema é muito forte e é difícil desfazer uma imagem criada. Não se pode fazer como a Jane Fonda, porque há um esquema montado e até a própria torcida faz resistência à mudança de imagem que ela tem da gente.”

Marzukiewicz, o suposto guerrilheiro

O goleiro uruguaio Ladislao Marzukiewicz despertou atenção do SNI por motivos bem diferentes de Reinaldo. Conforme um relatório distribuído a outros organismos de informações da ditadura, em 25 de junho de 1973, a imprensa havia divulgado a informação de que o jogador era ligado ao temido grupo Tupamaros, pioneiro na guerrilha urbana na América Latina e no Caribe. Na época, o povo uruguaio também enfrentava uma ditadura militar. O consulado brasileiro no Uruguai foi acionado, mas nada apurou contra Marzukiewicz, que jogou sem problemas no Atlético até meados de 1974.

Bastidores da entrevista

Por Aloísio Morais

Me lembro bem. Por sugestão do repórter Teodomiro Braga, a direção de redação do jornal Movimento, em São Paulo, pediu à sucursal de Belo Horizonte uma matéria sobre o atacante Reinaldo, pegando como gancho o fato de ele despontar como artilheiro isolado do então Campeonato Nacional. Quem é esse jogador Reinaldo, o que passa pela sua cabeça? A encomenda caiu nas minhas mãos e, no dia seguinte, uma manhã de sábado, corri à Vila Olímpica, no bairro São João Batista, onde os jogadores do Atlético estavam concentrados à espera do voo que os levariam a Londrina, no Paraná, para enfrentar a equipe do mesmo nome no domingo.

Os jogadores estavam lá se relaxando, jogando pingue-pongue, pebolim, sinuca etc. Pedi para falar com Reinaldo e logo ele veio todo atencioso. Para minha surpresa, ele disse que lia e gostava do jornal Movimento, uma das publicações que incomodavam a ditadura e, por isso, eram submetidas à censura prévia. Marcamos, então, de conversar mais à vontade na segunda-feira em seu apartamento na esquina da rua São Domingos do Prata com Padre Severino, no bairro São Pedro, Zona Sul de Belo Horizonte, onde ele morava com os pais e os irmãos.

O curioso é que Reinaldo embarcou para Londrina à toa. Ao desembarcar, recebeu a notícia de que fora punido com quatro jogos de suspensão por causa de uma expulsão contra o Fast, de Manaus. “Foi uma forma de me tirarem da final contra o São Paulo, compensando o fato de Serginho ter sido suspenso por seis meses por agredir um bandeirinha, desfalcando o time paulista”, conta Reinaldo, sem esconder sua revolta.


Reinaldo nos tempos em que o uso do capacete não era obrigatório para os motociclistas

Cheguei ao apartamento do atacante acompanhado do jornalista Luiz Bernardes, também da sucursal do Movimento. Inicialmente, pensávamos que a entrevista não renderia muita coisa, estaríamos diante de mais um jogador alienado, desinformado, que se limitaria às tradicionais abobrinhas decoradas. Afinal, até ali pouco se sabia do que passava pela cabeça de Reinaldo em meio à sua crescente fama.

Liguei o gravador, um tijolão quase do tamanho de um laptop, e fomos puxando a língua dele para questões políticas. Ele não negou fogo. Acostumado a partir para cima dos adversários, Reinaldo não fugiu de nenhuma pergunta e mostrou-se sempre bem à vontade. Saímos de lá com a certeza de termos colhido um bom e inédito material. Enviamos o pingue-pongue (pergunta e resposta) para São Paulo e, orgulhosos, na semana seguinte pudemos lamber a cria, fizemos a matéria de capa do jornal. Pena que não saiu como pingue-pongue, e sim como texto corrido, perdendo um pouco da naturalidade da conversa. Coisas da vida, bola pra frente!

Anos mais tarde, concluí que naquela entrevista nasceu e ficou exposto o lado político de Reinaldo, que acabou se elegendo a deputado estadual pelo PT em 1990, e, mais tarde, a vereador pelo Partido Verde (PV) em 2010/13. Hoje, aos 64 anos, Reinaldo segue ligado ao futebol exercendo a função de auxiliar técnico dos times de base do Clube Atlético Mineiro, onde começou aos 16 anos, trazido de Ponte Nova pelo técnico Barbatana.


Reinaldo no Mineirão em 1978, quando marcou três belos gols contra o Londrina


Reinaldo nos tempos de sucesso no Galo – Arquivo pessoal