Sob os cuidados da patroa, menino de cinco anos morre em condomínio de luxo em Recife

Por Marcos Aurélio Ruy. Foto destaque: Pablo Valadares/Agência Senado

Ao mesmo tempo em que o mundo assiste as imensas manifestações antirracistas nos Estados Unidos, no Brasil, uma criança de cinco anos morria vítima do descaso.

Enquanto uma mãe passeava com os cachorros da família moradora em um condomínio de luxo em Recife, capital de Pernambuco, o seu filho de apenas cinco anos era colocado sozinho no elevador do prédio pela sua patroa. A criança morreu após cair da sacada do edifício no nono andar, nesta terça-feira (2). Mãe e filho negros e pobres.

“A trágica notícia revela a morbidade do racismo no Brasil e o pouco caso com a vida dos mais pobres em meio à pandemia do coronavírus”, diz Mônica Custódio, secretária de Igualdade Racial da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

A morte dessa criança reforça a necessidade de se debater sobre os serviços essenciais durante o isolamento social para impedir uma maior disseminação da Covid-19 e a estrutura patriarcal e racista da sociedade brasileira.

A empregadora, Sari Gaspar Corte Real, esposa do prefeito de Tremembé (PE), Sérgio Hacker, pagou uma fiança de R$ 20 mil e responde ao processo em liberdade. De acordo com o delegado Ramón Teixeira, a patroa foi parcialmente responsabilizada pelo crime por estar com a “guarda momentânea da criança”, informa o site Notícia Preta (https://noticiapreta.com.br/).

Sari Gaspar Corte Real responde a processo por homicídio culposo

“Essa fatalidade desnuda as péssimas condições de trabalho do serviço doméstico no país”, afirma Lucileide Mafra Reis, vice-presidenta da CTB-PA. “Conquistamos a Lei das Domésticas, em 2013 e regulamentada em 2015, após anos de luta pelo reconhecimento do nosso trabalho”, aí vem “a reforma trabalhista (aprovada em 2017) e joga tudo por terra, fortalecendo novamente a informalidade e o desrespeito aos nossos direitos, entre eles, o de ter uma vida digna”, anuncia.

Para Lucileide essa tragédia mostra “o pouco respeito à vida de quem só tem a força de trabalho como meio de sobreviver e não tem apoio do Estado neste momento de crise sanitária tão grave”. Dessa forma, “trabalhadoras e trabalhadores, maioria de negros, estão morrendo vítimas da Covid-19 e o Estado faz pouco para evitar essas enormes perdas”.

Mas “a morte dessa criança será mais uma na estatística, sem ninguém fazer nada porque era filho de trabalhadora doméstica negra e pobre”, indigna-se.

como, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o país conta com quase 7 milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, sendo 92% mulheres e mais de 70% negras ou negros, “o viés racial é um traço dessa categoria, considerada essencial num momento tão crucial para manter a vida, desprezando as necessidades dessas pessoas”, diz Mônica.  

Foto: EBC

“Muitos classificarão de mimimi relacionar a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva ao racismo e ao pouco caso com a vida da maioria da população brasileira, negra e pobre”, reforça Mônica.

“Mas é incalculável a dor de Mirtes Renata Souza, a mãe de Miguel, como é o sofrimento de milhares de mães que veem a vida de seus filhos se esvair em ações da Polícia Militar nos morros do Rio de Janeiro e na periferia de todas as grandes cidades do país”.

Mônica afirma a importância de se dar um basta ao pouco caso que se tem com a vida humana em pleno século 21. Nesse caso, “enquanto uma mãe cuidava dos cachorros da família, a madame deixava seu filho morrer”, porque “neste cenário que tem bases na velha estrutura escravocrata, uma vida vale mais que outra”.

A letalidade policial revela de maneira perversa o traço racista da sociedade brasileira. Como mostra o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado o ano passado. Somente em 2018, a polícia matou 6.220 pessoas, 99,3% delas eram do sexo masculino, 75,4% negros e 77,9% tinham entre 15 e 29 anos.

“Mas a história das sociedades não perdoa”, acentua Mônica. “Essa trabalhadora continua passando pelo que passávamos séculos atrás. A vida de seu filho, pela vida dos ‘filhos’ dos outros”, porque “em uma estrutura social racializada e de classe, quem vive do trabalho não passa de número para a elite no poder”.

Como afirmam as juízas do trabalho, Bárbara Ferrito e Patrícia Maeda, em artigo na revista Carta Capital, é necessário reduzir a sobrecarga de trabalho durante o isolamento “sem transferi-la para a parte mais fraca da relação doméstica” e “não apenas como uma questão ética, mas também sanitária”. Porque “se o gênero nos une como mulheres, a classe também deve nos unir como trabalhadoras”.