Frente ampla: a dura tarefa de unir os contrários

A Frente Ampla não é uma emulação ou exercício de vontade, é fórmula política e organizativa que já demonstrou sua utilidade para enfrentar com sucesso situações limítrofes e dramáticas da vida e da História

Por Alex Saratt

O comunicado do PSDB de que não apoiaria o impeachment de Bolsonaro pareceu um banho de água fria na onda de entusiasmo que por duas semanas pareceu mobilizar o país contra as sucessivas declarações e atitudes do Presidente. Movimentos, manifestos e manifestações indicavam um levante às pretensões golpistas e ditatoriais explicitas emanadas desde o Planalto e viralizadas por intermediários políticos e redes sociais contaminadas pelo extremismo.

Longe de fazer o papel de advogado do diabo, muito menos de saudar a decisão partidária dos tucanos, convém anotar algumas questões indiciárias, talvez explicativas a respeito da decisão e traçar um paralelo com a postura assumida pelo principal partido de oposição ao Governo, o Partido dos Trabalhadores.

Primeiro ponto: o da subestimação do fascismo. Longe de considerar a Social Democracia Brasileira como um baluarte da Democracia e da Legalidade, o fato é que a exemplo de outras forças políticas, o PSDB minimiza a escalada autoritária e tem consigo a crença pueril de que é possível frear Bolsonaro acionando os contrapesos do Estado Democrático de Direito, seja na parte do equilíbrio de poderes, seja no que tange ao pacto federativo. É um erro tremendo dos liberais, explicado mesmo por seu flerte com doses não tão homeopáticas de autoritarismo e repressão praticadas por seus governos.

Concorrem para o posicionamento uma outra ordem de motivos: a agenda econômica ultraliberal, o pragmatismo, o medo, a preocupação eleitoral e eleitoreira, a exposição pública à crítica e o avanço das Esquerdas.

A conveniência da agenda econômica é, sem dúvida, um facilitador. Com Paulo Guedes à frente do Ministério da Economia, os sonhos e delírios privatistas e mercadológicos da burguesia parecem estar a ponto de se realizarem, mesmo que a um custo social e humano criminoso. Impedir que o trabalho sujo seja feito por Bolsonaro não está entre as intenções da oposição neoliberal, como mostram os placares dilatados das votações no Congresso.

O pragmatismo pode ser buscado nos exemplos práticos do passado recente. Em 2005, instalada a crise política por conta do Mensalão, a Direita neoliberal e franjas da Esquerda radical cogitaram o Fora Lula. Consultado por seus pares quanto ao caminho a ser tomado, Fernando Henrique Cardoso foi taxativo: não havia clima para o impeachment. As razões eram sólidas: não se verificava nas ruas movimentos dispostos a fazer a luta, Lula e o PT tinham expressiva base social organizada e militante, dispunham de apoio no Congresso e o país atravessava um bom momento econômico. Em 2016, com quadro inverso, FHC foi linha de frente no fustigamento da deposição de Dilma. O líder tucano não costuma meter a mão em cumbuca e conta as garrafinhas na hora do voto partidário e parlamentar.

O medo também se computa nesse quadro analítico. Seja pela perseguição política a partir dos instrumentos do Estado, particularmente a Polícia Federal, seja pela ação de grupos milicianos ou paramilitares que agem à sombra da lei. Cabe ainda destacar o papel do “gabinete do ódio”, da rede de fake news e das empresas da área de comunicação que emprestam seu espaço e poderio em favor do projeto fascista. Convenhamos, não é pouca coisa e nesse cômputo não está incluído o papel das Forças Armadas, uma incógnita com tendências e inclinações pró-autoritárias e pró-repressivas.

Os cálculos eleitorais e eleitoreiros não podem ser ignorados. Parcela do voto que elegeu o atual Presidente fez uma migração da Direita para a Extrema-Direita e a recuperação desse eleitorado é uma operação delicada, afinal o conservadorismo fincou raízes, se tornou explícito, militante e reivindicatório e a linha de afastamento pode ser interpretada como uma forma auxiliar para a Esquerda.

Aliás, em relação à Esquerda (ou Esquerdas, dada sua pluralidade e falta de unificação) residem elementos complicadores. Um: por exigir de algum modo uma espécie de autocrítica e mea culpa públicas quanto ao papel do PSDB no Golpe institucional aplicado em 2016 contra Dilma Rousseff. Dois: por exigir aproximações com o campo esquerdista e possibilitar que nesse processo o mesmo recupere força, autoridade e influência. Servir de escada para uma remissão ou redenção da Esquerda perante à população certamente passa longe dos planos dos tucanos.

Ademais, como a crise brasileira implica múltiplas dimensões, a sua superação exigiria a adoção de uma plataforma contrária ao neoliberalismo, com teor estatal, intervencionista e de recuperação de direitos sociais e trabalhistas usurpados no último período, bem como a retomada das políticas públicas de inclusão e o investimento orçamentário para promover o bem estar social.

Dito isso, a atual política do PSDB torna-se um entrave a qualquer acordo mais amplo ainda que circunscrito a uma pauta única, emergencial e salvacionista. De se lamentar, não de se surpreender ou se decepcionar, afinal é parte do intrincado xadrez político montado. Sua recusa em defender o impeachment é sério entrave à constituição de uma Frente Ampla de Salvação Nacional.

De forma diversa e por razões ora similares, ora distintas, algo do gênero acontece no outro grande partido político brasileiro, o PT. A diretiva aparentemente estreita, sectária e exclusivista não só é um obstáculo quase intransponível para a realização de uma ação frentista, como também peca por causas idênticas, guardadas por óbvio as evidentes diferenças.

Ao contrário dos tucanos, o petismo advoga de modo difuso o fim do Governo Bolsonaro. Mas ao assumir uma postura isolacionista e segmentada, com arco de alianças restrito, não contribui efetivamente para que qualquer movimento mais abrangente consiga ganhar corpo e musculatura suficientes para enfrentar o fascismo e impor-lhe uma derrota estratégica fundamental.

O arrazoado petista não é de todo errado, aliás, é até mesmo justo, haja visto o ataque inclemente a que foram submetidos Lula, Dilma e o próprio partido. Porém, traz junto o equívoco da subestimação, a visão eleitoral, a expectativa de inocência de Lula e a pretensão de hegemonia. Entre as críticas recorrentes a essa diretriz está aquela que questiona o por quê de não ter feito isso enquanto deteve o governo até outra que aponta a desconsideração do quadro conjuntural adverso, de forte refluxo do movimento social e de perdas consideráveis entre segmentos que sempre prestaram apoio aos propósitos da Esquerda.

O caso concreto é que também por suas leituras e escolhas táticas, o PT não consegue agregar nem o campo democrático-popular, tampouco avançar para além desses limites gerais que compõe cerca de 40% da cidadania. Em resumo: não há chance de Frente Ampla a permanecer a decisão majoritária do partido.

De certa maneira, por caminhos distintos, duas das maiores agremiações político-partidárias do Brasil, seja pela bandeira branda, seja pelo discurso agudo, não conseguem fazer convergir suas energias e potências para resolver a questão fundamental que paira como ameaça real e concreta: a de um Golpe de Estado de caráter abertamente ditatorial, repressivo e fascista. Oxalá tenhamos mais sorte do que juízo. A Frente Ampla não é uma emulação ou exercício de vontade, é fórmula política e organizativa que já demonstrou sua utilidade para enfrentar com sucesso situações limítrofes e dramáticas da vida e da História. Apesar dos reveses e da baixa expectativa, perseverar no que é justo, viável e exequível parece melhor do que transformar a Política numa banca de apostas.

Foto: reprodução

Alex Saratt é professor de História nas redes públicas municipal e estadual em Taquara/RS e dirigente sindical do Cpers/Sindicato.