José Carlos Ruy, o meu irmão brasileiro

Por Marcos Aurélio Ruy

A morte é implacável. Não tem outro jeito a não ser esperar a dor passar e se conformar com a perda. Mas quando essa perda é de uma pessoa que além de ser o irmão mais velho é também a inspiração para uma conduta de vida, o que fazer? Só esperar a dor se acomodar no fundo da alma e saber, como dizia a nossa falecida mãe que “ficam as lembranças”.

E no caso de José Carlos Ruy, o nosso Zeca, as boas lembranças são intermináveis. Sempre a palavra certa na hora certa ou errada na hora errada em acaloradas discussões sobre os rumos a serem tomados num país que ele estudou e procurou entender como poucos.

Sempre a mão amiga aparando e dando uma força para seguir em frente, mesmo com prevalência da divergência de conduta. Além de irmão, amigo. Aquele que você pode contar nas horas mais difíceis e que você se sente obrigado a apoiar quando ele precisa tamanha a sua generosidade.

Lembro ainda criança que ele começou a trabalhar aos 11 anos de idade, na farmácia do “Seu André”, em São Bernardo do Campo, onde passou toda a sua adolescência até completar 18 anos e largar esse emprego. Um pouco de discussão em casa, uma família pobre com oito filhos, que dependia de ajuda dos filhos mais velhos para o orçamento doméstico.

Mas o Zeca não recuou. Foi atrás do seu destino. Do que acreditava, do que queria para si e para o país. Largou os estudos e não terminou o científico (nome do curso de ensino médio à época). Passou por vários outros trabalhos até encontrar com o historiador Clóvis Moura e, já com todo o seu cabedal de conhecimento, mesmo ainda muito jovem.

Trabalhou como pesquisador para empresas que pesquisavam como lançar seus produtos. Nisso lembro que o acompanhei em uma favela de São Paulo. A pesquisa era sobre um talco e enquanto ele fazia perguntas para uma mulher, o companheiro dela ironizou a pesquisa sobre um talco. Zeca respondeu: companheiro é o meu trabalho! A mulher mandou o marido calar a boca.

Antes ainda, no caminho dessa casa, lembro de notar um menino passando pela gente com uma lata d’água na cabeça cantando “tudo está no seu lugar graças a Deus”, música do sambista Benito de Paula. Eu, ainda muito jovem, me assustei com aquilo e questionei como pode numa situação dessas cantar que está tudo no seu lugar? E a resposta do Zeca foi de que o nosso trabalho era o de fazer essa pessoa enxergar outro lugar. Um lugar sem tamanha pobreza.

Além desse trabalho, ele passou pela Troll, uma fábrica de brinquedos da família Diniz que faliu. Foi operário na Volkswagen, quando meus pais compraram uma casa pelo Banco Nacional de Habitação, o programa habitacional da ditadura.

Lembro também que fui levar a sua janta quando ele dava plantão num hospital de ortopedia em São Bernardo (SP) – o Zeca também trabalhou como auxiliar de enfermagem em alguns hospitais – e ele lembrou que eu tinha calos nos pés, ainda pré-adolescente, e ele pediu para o médico plantonista olhar os meus pés. Sai de lá com a marmita de volta e os calos arrancados.

Cedo ele casou. O tempo passando e a admiração crescendo junto com o avanço da idade. Lembro do primeiro porre que tomei no centro de São Paulo. Fomos, eu e ele, comprar um brinquedo para a Carolina Maria, sua segunda filha e minha afilhada.

Foi após sua primeira separação, quando passou a morar com as duas filhas na casa dos meus pais. Era dezembro, eu já tinha 19 anos, trabalhava numa gráfica e estávamos na rua Direita procurando o que comprar para depois irmos a uma reunião do jornal Movimento, onde ele já trabalhava, em Pinheiros.

Na procura desse brinquedo para a nossa Caru (a família a chama assim para rimar com sua irmã que é a Lu, coisas de família), encontramos um amigo dele. Um antropólogo, de cabelos brancos já e como ele me disse herdeiro da empresa Jurubeba Leão do Norte. Um senhor gay que estava com um rapaz fazendo compras na rua Direita. Essa pessoa nos levou a um bar e tomamos caipirinha. Depois o outro, e mais caipirinha e, apesar de estar acompanhado, não tirava o olho de mim e eu não sabia ainda como lidar com isso. Era tudo novidade. Então toma caipirinha.

O resultado foi um porre homérico. O primeiro de minha vida. E lá estava o Zeca para me segurar pelo braço para impedir a minha queda, mesmo ele estando bêbado também, mas com mais experiência na bebedeira. Enfim chegamos à tal reunião, mas o jornal Movimento estava fechado. Fomos a um restaurante ali perto comer feijoada e no primeiro copo de Coca-Cola corri ao banheiro e vomitei toda a minha bebedeira. Ele com toda a sua paciência.

Lembro que falava de Chico Buarque (ídolo de toda uma vida), de música, de cultura, da ditadura e do que devíamos fazer para vencê-la e o Zeca me segurando pelo braço e só concordando. Depois só risos.

O tempo foi passando e com o fim da ditadura, o fim do Movimento, o trabalho na Editora Abril, a vida melhorando, mas a consciência de que tudo tinha que mudar, o objetivo de levar informação à classe trabalhadora e com isso colaborar com o fim de um sistema opressor. Foi quando comecei a compreender a visão humana de um comunista, dedicadíssimo à causa proletária e disposto a tudo para dar a sua contribuição para o futuro da humanidade.

Essa lição colou em mim e está em tudo o que faço. Tento seguir os passos do Zeca. Não com a mesma qualidade, com a mesma abnegação, mas a sua inspiração me levou ao jornalismo e me conduz a vida inteira a ter uma conduta ética, voltada para os que mais precisam, com o coração e a mente sempre abertos para a novidade, para o que está por vir.

A sua disposição de fazer entender a necessidade do estudo teórico e aliá-lo a uma prática condizente com a necessidade da classe trabalhadora que olhando minhas estantes de livros, vejo que metade, pelo menos, foram dados por ele.

As lembranças do Zeca são muitas. Como certa vez fomos quatro irmãos para cidade dos meus pais – Descalvado, interior de São Paulo – buscar jabuticaba para dar alegria aos velhos. Fomos no carro velho dele, que fundiu o motor no caminho perto de Porto Ferreira e precisamos pedir socorro a uns primos.

Ele e eu voltamos de ônibus. Eu sem um tostão, ele pagando. Os outros dois ficaram para encaminhar o conserto do motor. Era domingo e tínhamos que trabalhar no dia seguinte. A conversa foi sobre a tentativa de fazer um bem e dar alegria às pessoas e o resultado dessa aventura. Rimos. Não havia o que fazer. Mais uma lição de vida. Não temos o controle sobre tudo. Vida que segue. Nenhuma reclamação.

Assim era José Carlos Ruy. Para mim o maior intelectual do Partido Comunista do Brasil, um dos grandes pensadores marxistas brasileiros, mas uma pessoa humilde, simples como deve ser todo comunista. Com uma generosidade e uma integridade ímpares, mesmo nas mais acaloradas discussões.

Com ele aprendi também que a luta antirracista, por igualdade de gênero e por respeito a todas as pessoas, a todas as vidas caminham lado a lado. E num país como o Brasil, a revolução passa por entender a necessidade de acabar com o racismo, o machismo, o sexismo e a LGBTfobia. Além de colocar a questão cultural no lugar que a cultura merece.

E como o grande ser humano que foi, tinha as suas vaidades, fraquezas humanas, mas nada comparável à sua grandeza, generosidade e solidariedade com os que mais precisam. Um verdadeiro Dom Pedro Casaldáliga do comunismo.

Esse é o meu irmão brasileiro – parafraseando o livro “O Meu Irmão Alemão”, de Chico Buarque – que aprendi a tentar ser comunista. O que não é nada fácil. Como dizia meu pai: “Para ser comunista é preciso ser muito bom”. Meu pai que era o nosso exemplo, não era comunista, mas acreditava que Cristo foi o primeiro comunista da humanidade pois defendia “o bem comum”. E digo é meu irmão porque o seu exemplo, as boas lembranças e o seu trabalho permanecem vivos em nós que seguimos a sua luta, a nossa luta pelo futuro da humanidade sem classes. A sociedade socialista.