‘Prisão espetáculo’ legitima a lógica do encarceramento no Brasil

São Paulo – O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), deixa o presídio de Benfica nesta quarta-feira (23) após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) converter sua detenção preventiva em domiciliar. Horas depois de o prefeito ser detido, ontem, o ministro do STJ Humberto Martins acatou o habeas corpus impetrado pela defesa de Crivella, determinando a prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica. Ele não poderá sair de casa sem autorização e está proibido pela decisão judicial de manter contato com terceiros. 

De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, seus telefones e computadores também deverão ser entregues às autoridades. As medidas valerão até uma nova decisão do relator do caso, o ministro Antonio Saldanha Palheiro, que deve rever o processo após o recesso do Judiciário. 

Crivella foi preso em decorrência de uma operação conjunta da Polícia Civil com o Ministério Público do Rio de Janeiro. Ele é investigado por suposta participação em um esquema de propina para liberação de contratos na empresa municipal de turismo, a Riotur. Caso que ficou conhecido como “QG da propina“. Segundo o MP-RJ, o prefeito seria “o líder” de uma “organização criminosa” que conta com a participação de “inúmeros empresários que despendiam vultuosas quantias à título de propina” para em troca receber “tratamento preferencial ao longo de toda a gestão de Marcelo Crivella”.

Legalidade em dúvida

As desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita ordenou a prisão preventiva, afastando o prefeito do cargo nove dias antes do término oficial do mandato. A medida, no entanto, teve sua legalidade questionada por juristas, que divergiram sobre sua aplicação. 

O Código de Processo Penal aponta que a prisão preventiva pode ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegura a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. 

No caso de Crivella, a desembargadora avaliou em sua decisão que a prisão preventiva era necessária para garantir a “ordem pública”. Rosa Helena também argumentou que o prefeito e os coautores estariam atuando para destruir provas, em referência ao fato mencionado pelo MP de que ele havia entregue um celular antigo para obstruir as investigações. 

Prisão foi ‘espetáculo’ 

Em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual, a professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux aponta que a necessidade de prisão preventiva “não foi caracterizada”. Segundo ela, a ordem pública é “algo subjetivo” e o fato concreto do celular também “não caracteriza motivação suficiente”. “Até porque isso já tinha ocorrido há um tempo, a ordem de busca e apreensão é de setembro, então não bate com a lógica”. “O que se percebe é que foi uma prisão espetáculo, para tirar foto no jornal”, contesta. 

“Havia uma investigação contra ele já algum tempo, optaram por não decretar a prisão durante a campanha eleitoral, mas ela já existia. E se optou por decretar a prisão agora”, pontua Luciana. “Crivella é adversário político, ele representa tudo o que não acredito, apropriação do discurso religioso para fazer política, conservadorismo, um aparelhamento do discurso religioso para ganhos pessoais. Mas o que se observa da leitura da decisão, e também observando outros tipos de prisão que a gente acompanha, especialmente quando envolve políticos, é que houve, usando uma linguagem comum, uma ‘forçação de barra’”, adverte. 

Seletividade judicial

De acordo com a professora da UFRJ, esse tipo de “prisão espetáculo” acaba ocorrendo no Brasil para “atender fins políticos”. “Em uma lógica de expectativa de projeção do Judiciário na mídia”, explica. Como também para legitimar as práticas penais que encarceram, principalmente, negros e pobres. Dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, indicam que dos 657,8 mil presos em que há informação da cor/raça disponível, 438,7 mil são pretos e pardos, ou 66,7% da população carcerária. “O Judiciário tenta dizer que ele é neutro. Mas a gente sabe que não existe essa neutralidade”, declara. 

“Quando a Justiça determina uma prisão em um momento inoportuno, sem justificativa, e não aplica o que a própria lei determina, a finalidade é o espetáculo para o poder Judiciário se legitimar enquanto ‘combatente da corrupção’, quando a gente sabe que a corrupção continua e dificilmente as pessoas acusadas são impedidas de praticá-la, mesmo presas”, acrescenta Boiteux. 

Prisão é justiça? 

A especialista já havia postado no Twitter que diante da prisão “tão ilegal”, já se antevia que instâncias superiores relaxariam a medida. Mas o que chamou a atenção de parte da opinião pública foi a rapidez com que foi julgado o recurso da defesa do prefeito. Na avaliação de Boiteux, o caso expõe que há “seletividade” no sistema de Justiça brasileiro um “mecanismo diferenciado quando a pessoa que está presa é alguém que pertence às classes sociais mais altas”. 

Mas a crítica, ressalta ela, deveria ser para que “todas as prisões ilegais” também tivessem celeridade para serem avaliadas. “O que a gente luta é para que seja cumprida a Constituição. Havendo elementos para as pessoas serem presas, o juiz fundamenta a prisão e essa pessoa é presa. O correto deveria ser uma investigação rápida, uma apuração das responsabilidades, a pessoa ser julgada e receber uma pena. E, em especial nos casos de corrupção, que sejam reparadas as lesões ao patrimônio público. As pessoas focam muito na prisão, mas ela não repara nada. Nem mesmo a prisão ao final do processo vai trazer benefício à população brasileira. Ela vai colocar mais uma pessoa no sistema carcerário”, conclui a professora da UFRJ. 

Confira a entrevista do Jornal Brasil Atual 

Redação: Clara AssunçãoEdição: Glauco Faria

Fonte: Rede Brasil Atual