Por José Reinaldo Carvalho
Nesta sexta-feira, 3 de junho, a Operação Militar Especial da Rússia na Ucrânia completa 100 dias. Iniciada em 24 de fevereiro, a também chamada de guerra russo-ucraniana permanece no centro das tensões mundiais. Malgrado estarem as ações militares restritas a uma porção do território ucraniano, o conflito se globalizou e pode escalar para uma conflagração militar de maiores proporções, tendo em vista a interferência das potências imperialistas ocidentais lideradas pelos Estados Unidos, hoje muito empenhadas em militarizar todo o leste da Europa, armar a Ucrânia e manter a Rússia sob cerco e ameaça.
O avanço sistemático das forças russas, com o acúmulo gradativo de vitórias militares, a conquista de territórios e a destruição do aparato militar ucraniano, evidenciam que mais dia, menos dia, as forças políticas e militares, incluindo os batalhões de cariz nazi-fascista que empalmaram o poder na Ucrânia com o golpe de Estado de 2014, serão derrotadas.
Um episódio marcante e simbólico dessa sucessão de triunfos das forças russas foi a desnazificação e o controle total da cidade de Mariupol, que teve por ação decisiva a encarniçada batalha nas instalações da antiga siderúrgica de Azovstal.
A conquista russa abateu o moral do restante das tropas ucranianas e desnorteou o governo, apesar das aparências encenadas nas tragicômicas performances midiáticas do presidente ucraniano. Será inevitável que a vitória militar russa obrigue Zelensky a render-se e aceitar as demandas reiteradas pelo Kremlin quanto à libertação do Leste e Sudeste ucranianos e a neutralidade do país. Esta é a opinião dos mais realistas políticos, militares e analistas. Quem a formulou em termos mais diretos foi ninguém menos que Henry Kissinger, um dos maiores doutrinadores dos Estados Unidos em matéria diplomática e geopolítica. Ele aconselhou a entrega do Donbass à Rússia como preço a pagar pela paz.
As vitórias da Federação Russa apontam para a formação de uma barreira de contenção à mais aparatosa máquina de guerra de agressão internacional da atualidade – a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pela maior superpotência bélica de todos os tempos, o imperialismo estadunidense. Por isso, a destruição da Rússia tornou-se a Delenda Cartago dos nossos dias, uma palavra de ordem que une Washington, Bruxelas e uma miríade de setores sociais-democratas, supostos “comunistas renovadores” e alguns “ultra-esquerdistas” pela simples razão de que a confluência de circunstâncias históricas depositou sobre os ombros do país das noites brancas a responsabilidade de fazer algo para frear a Otan. Uma miríade de fatores objetivos e subjetivos fez com que o chefe do Kremlin aceitasse a missão.
A Otan – cuja cúpula se reúne nos próximos dias em Madri para adotar um novo conceito estratégico e discutir sua ulterior expansão – já deveria ter sido extinta há pelo menos 30 anos, se fossem verdadeiras as declarações de que se trata de uma organização defensiva para a proteção mútua e coletiva de seus membros. Não bastassem as diferentes ocasiões em que tal bloco se envolveu em guerras de agressão contra nações soberanas e em alguns casos foi o protagonista principal, as variações adotadas em seu conceito estratégico, o aumento do número de países membros, a expansão do seu raio geográfico de atuação e a formulação de um discurso belicista, com preparativos reais de intervenção e guerra contra a Rússia, a China e países do Oriente Médio objetivamente anti-imperialistas, são suficientes para compreender o sentido defensivo da ação russa. Mais: ao constituir-se como defesa em face da desenhada agressão da Otan, a decisão tomada por Putin em 24 de fevereiro foi uma ação solidária não apenas com as duas autoproclamadas repúblicas das províncias do Donbass, mas também com os povos e países soberanos potenciais vítimas das novas guerras da Aliança Atlântica.
A operação militar russa na Ucrânia despertou a fúria das potências imperialistas ocidentais. Durante estes cem dias tornou-se evidente que ali não está em disputa a Ucrânia de per si, mas a reconfiguração da “ordem mundial”, do “sistema internacional”. Desde que terminou a Guerra Fria, com a extinção da mais importante força contentora do imperialismo estadunidense – a União Soviética – os Estados Unidos buscam impor no mundo a sua hegemonia exclusiva. A expansão da Otan, para além das guerras norte-americanas, foi o principal mecanismo para a imposição desse domínio.
O envolvimento dos Estados Unidos e seus aliados da União Europeia e da Otan nos acontecimentos no Leste Europeu e as ações que têm empreendido – militarização à outrance da Europa, ulterior expansão da Otan, fornecimento de assistência militar da ordem de 60 bilhões de dólares, retórica agressiva, monitoramento das ações políticas de Zelensky, censura a meios de comunicação, russofobia e severas sanções econômicas, são reveladores de que, ao contrário de uma guerra da Rússia contra a Ucrânia, o que está em desenvolvimento é uma guerra por procuração – em que a Ucrânia é um mero despachante – do imperialismo contra a Rússia, com os olhos voltados para o principal adversário estratégico dos EUA, a China.
Não é à toa que durante estes mesmos cem dias de tensão militar no Leste Europeu, os EUA deram curso a ações de preparação de confrontos futuros com a China, proferindo ameaças e realizando ações provocativas sobre Taiwan e o reforço de alianças militares na vasta região da Ásia-Pacífico.
Mas o fato insofismável que estes cem dias mostram é que o mundo já mudou. Não basta fincar pé em posições anacrônicas e recordar os princípios de Vestfália sem atentar para o fato de que não há equilíbrio de poder se não há segurança coletiva em termos equânimes. Em face de tais mudanças, de nada adiantam as vociferações de Joe Biden, Boris Johnson, Josep Borrell, Ursula von der Lyen, nem os lamentos de setores otanizados da esquerda liberal e cirandeira.