Por Valdete Souto Severo (Foto: Reprodução Facebook)
No dia 7 de setembro, o presidente da República declarou em um palanque, ao som dos gritos histéricos de seus seguidores, que não cumpriria decisões do STF. No dia 9, em uma Declaração à Nação redigida por Michel Temer, pediu desculpas. Diante desse documento, foram várias as manifestações festejando a volta à normalidade. O golpe anunciado para o dia 7 de setembro, e que parecia refletido no discurso inflamado de Bolsonaro, que tanta aflição causou, não passou de uma euforia momentânea. Será?
Em seu último artigo, brilhante como sempre, o professor Jorge Luiz Souto Maior faz uma leitura importante do que estamos vivendo. O golpe – e talvez esse nem seja o melhor nome para o processo histórico do qual o povo brasileiro tem sido alvo – começou há tempo e segue acontecendo com o completo domínio de cena de quem está no poder. Um processo de destruição do pacto firmado em 1988. Um pacto que nunca foi levado a sério, é bom que sempre se insista nisso, pois do contrário não seria tão facilmente destruído.
As cenas, mais ou menos dramáticas, protagonizadas por Bolsonaro, não fazem mais do que criar instabilidade, desviar energias e permitir que tudo siga dentro do planejado. E por isso mesmo são tão graves.
Há uma “reforma” administrativa contida no texto da PEC 32 que simplesmente desfigura o que hoje compreendemos por Estado. Não apenas acaba com a carreira e a segurança das servidoras e dos servidores públicos. Também compromete a razão de existência do Estado, dentro da perspectiva de garantia dos direitos sociais. Um Estado que garanta saúde, educação, moradia e trabalho. A PEC 32 vem dentro de um pacote, em que estavam também a “reforma” trabalhista, a destruição do sistema de Seguridade Social e, mais recentemente, o texto de conversão da MP 1045. Um pacote que inclui a alteração das leis de proteção ambiental e a asfixia das populações originárias, despojando-as da possibilidade de viver e trabalhar na terra em que habitam.
Nem bem a declaração foi publicada, o Parlamento já anunciou que a pauta de votação da PEC 32 estava mantida.
O povo, violentado pelo horror da pandemia, pelo sufoco do desemprego e do aumento do custo de vida, pelas constantes declarações que debocham do adoecimento e da morte, assiste a tudo sem conseguir compreender com exatidão o que significa, afinal de contas, a declaração revolucionária de Bolsonaro, seguida de outra, por ele firmada, em que aparentemente recua.
Afinal, o que quer o presidente: concorrer no próximo ano? Evitar as eleições? Perpetuar-se no poder ou salvar seus filhos das investigações em curso?
Talvez nada disso. Talvez nem importe o que ele deseja, mas sim o fato de que segue cumprindo um papel pirotécnico, enquanto segue o jogo do qual participam representantes de nossas instituições aparentemente tão zelosas em manter a democracia. Aqueles que atuam, concretamente, proferindo decisões que destroem direitos, aprovando leis que significam menos direitos, mais dor e sofrimento para quem vive do trabalho no Brasil.
O que nos leva a crer tratar-se, o recuo do presidente, de mera aparência, é o simbólico final da tal declaração à nação: o lema integralista, fascista portanto: “Deus, Pátria, Família”. O recurso retórico que invoca a memória de um tempo, no qual a violência estatal era ainda mais crua, ao menos em relação àqueles que estão de algum modo incluídos e pensam poder intervir nesse jogo de cartas marcadas. A nossa “esquerda”, a “classe média”, os representantes das trabalhadoras e trabalhadores são o alvo desse assédio constante, feito de palavras e atos que cotidianamente relembram o quão impotentes são as instituições que deveriam nos defender do autoritarismo. Afinal, os pobres e miseráveis sempre sentiram na carne a face violenta desse Estado que, apesar de alguns avanços duramente arrancados pela mobilização coletiva, mantém-se patriarcal e escravista.
As palavras da tal declaração não foram escolhidas ao acaso. Há nelas a continuidade do que tem sido o modo de funcionamento do atual governo: a disseminação do medo como afeto paralisante, de tal modo a fazer com que pensemos que qualquer ato de enfrentamento implicará a nossa eliminação. A ameaça está sempre presente, nas brincadeiras que simulam o uso de arma de fogo ou nas declarações oficiais em que as palavras remetem à lógica da eliminação de quem pensa diferente.
A PEC 32 agride muito mais a democracia, do que as declarações públicas do chefe do poder Executivo. Do mesmo modo, o que tem sido feito com o ordenamento jurídico brasileiro, seja através de leis como a 13.467 ou a EC 103, seja por meio de decisões, como a que admite terceirização sem limites ou elimina a reposição do dano nas lides trabalhistas, destrói de forma mais profunda as possibilidades de um convívio democrático. Sobre tais atos de vandalismo constitucional ou eliminação de direitos, nada se diz.
Essa violência é silenciada.
Em lugar dela, a violência simbólica da atuação performática do presidente cumpre o papel de adoecer, confundir e neutralizar quem pensa criticamente a realidade brasileira.
Os efeitos são sentidos no cotidiano das brasileiras e brasileiros, que já não veem no Judiciário uma opção para a busca de direitos, que assimilaram a necessidade de baixar a cabeça e trabalhar, por qualquer valor, sem descanso, sem salário decente. Fingindo uma autonomia inexistente, que talvez os habilite a sobreviver psiquicamente a tanta precarização.
Viver em democracia significa ter liberdade de expressão, mas também, e sobretudo, ter a possibilidade de vestir, morar, trabalhar e comer de forma saudável, sem que o medo – da violência do Estado, da fome e da miséria – nos paralise. Se é disso que estamos falando, é preciso frear a destruição silenciosa dos direitos sociais, a começar pela PEC 32, que não deve ser aprovada.
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.