Empresa gasta US$ 12 bilhões em indenizações, mas continua fabricando – e vendendo muito – o agrotóxico. “É a prova cabal de que não existe, nem de longe, possibilidade de qualquer tipo de ética no sistema capitalista”, afirma analista
Por Cida de Oliveira, da RBA
A Bayer não fala em lucros com a venda do herbicida glifosato, o mais vendido do mundo. Mas certamente é gigantesco, já que é suficiente para cobrir, com sobra, os acordos bilionários que tem proposto à Justiça nos Estados Unidos para pagar milhares de indenizações a doentes de câncer expostos ao RoundUp, produto a base de glifosato.
A companhia alemã que comprou a Monsanto – desenvolvedora do glifosato –, desembolsou em 2020 US$ 10 bilhões (cerca de R$ 54 bilhões) para liquidar 95 mil processos por efeitos danosos do agrotóxico. Restaram ainda 30 mil ações. Na semana passada propôs outro acordo, no valor de US$ 2 bilhões (R$ 10,8 bilhões), para cobrir futuros pedidos de indenização de pessoas que, por exposição ao glifosato, desenvolveram linfoma não Hodgkin, um tipo de câncer que atinge o sistema imunológico. O teto de indenização e cobertura de assistência à saúde será de até US$ 200 mil. A homologação da oferta depende de decisão do juiz Vince Chabbria, da Corte Distrital de São Francisco.
“Os acordos de US$ 10 bilhões do ano passado, somado aos U$2 bi de agora, superam o faturamento total da indústria de agrotóxicos no Brasil no ano passado. São cifras, portanto, astronômicas, mesmo para transnacionais do porte da Bayer”, diz o engenheiro Alan Tygel, coordenador da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida.
Segundo ele, quando a Bayer concluiu a compra da Monsanto em 2018, por US$ 63 bilhões, já sabia que herdaria milhares de processos e teria de desembolsar bilhões de dólares em pedidos de indenização contra o RoundUp. Mesmo assim a empresa decidiu comprar a Monsanto e seguirá vendendo o produto.
Bayer e câncer
“É a prova cabal de que não existe, nem de longe, possibilidade de qualquer tipo de ética no sistema capitalista. Fizeram a conta de padaria: quanto temos de receita, quanto custa cada câncer causado pelo produto, e chegaram à conclusão de que mesmo assim dá lucro”, disse Tygel.
Para ele, os acordos já firmados e o agora proposto não terão influência no cenário brasileiro. Apesar da gravidade dos danos, a agenda em favor da indústria de agrotóxicos por parte da Anvisa e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) seguirão. “Esperamos, porém, que pelo menos processos judiciais semelhantes possam prosperar e reparar, ainda que de forma meramente financeira, a dor e o sofrimento das famílias vitimadas pelas intoxicações por agrotóxicos.
Embora a proposta possa sugerir que a Bayer esteja finalmente admitindo o potencial carcinogênico da substância que produz, a empresa está protegendo seu caixa. É o que acredita o professor e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) Marcos Pedlowski. “A Bayer não está reconhecendo que o glifosato faz mal, mas implicitamente está se protegendo ao propor limite de dois bilhões de dólares para futuros casos. Ou seja, para pessoas que ainda não constituíram advogado para entrar com ação.”
Ruralistas na contramão
Estudioso dos agrotóxicos, Pedlowski concorda com Tygel. O “hiper domínio da bancada ruralista” está atrasando o Brasil no debate sobre o glifosato. E o latifúndio e a economia brasileira podem tomar prejuízo em médio prazo.
“A Nestlé barrou o café do Espírito Santo pelo excesso de glifosato. No início de 2019, a Rússia sinalizou que faria o mesmo com a soja, caso o Brasil não reduzisse o uso de agrotóxico. A Europa já não compra soja para uso humano, só para alimentar animais. E há um grande movimento nos países escandinavos e na Alemanha contra a soja brasileira. Cedo ou tarde, o Brasil pode tomar uma moratória sanitária. Os ruralistas contam com a dependência mundial da soja nacional. Mas esquecem de que chineses e latifundiários brasileiros estão plantando soja em Moçambique”, alertou.
Em dezembro, a Anvisa concluiu a reavaliação toxicológica do glifosato. Manteve a permissão do uso, mas com restrições. Entre elas, adoção de tecnologia para reduzir a deriva (espalhamento das gotículas para além da área pulverizada). No mesmo mês, o governo de López Obrador determinou que até o final de 2024 o produto será banido no México.
Argentina, Uruguai e Costa Rica aprovaram medidas de redução de uso. A Alemanha quer banir até 2023. Em julho, a Áustria decidiu proibir o uso do produto por considerar cada vez mais robustas as evidências do potencial carcinogênico da substância. A França está em vias de aprovar nova legislação para redução seguida de banimento até 2023. Outros países, como Itália, Holanda e República Tcheca também têm restrições ao uso de herbicidas com o glifosato como princípio ativo.
Sinal verde
O produto tem sinal verde também do Ministério da Agricultura. Em janeiro, quando o governo de Jair Bolsonaro completou dois anos, sob seu mandato já haviam sido liberados 1.033 novos agrotóxicos, segundo levantamento de Pedlowski. Desse total, foram autorizados 22 pedidos para fabricação de novos produtos à base de glifosato. O princípio ativo só ficou atrás do fungicida Mancozebe, com 24 pedidos.
O agrotóxico mais usado no Brasil tende a ganhar ainda mais espaço. No último dia 5, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança atendeu pedido do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) para fazer experiências em campo com uma cana de açúcar desenvolvida geneticamente para resistir a pulverizações intensas de glifosato. Os testes serão feitos nos municípios paulistas de Piracicaba, Barrinha e Valparaiso. A cana é hoje a terceira cultura em termos de consumo de pesticidas (11%), ficando atrás da soja (48%) e do milho (13%).
Hipocrisia da Bayer
Professor de Ecotoxicologia, Agroecologia e Cooperativismo no campus Viamão do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), o agrônomo Cláudio Fioreze considera “hipócrita” a oferta de tais acordos pela Bayer. “Pelo valor que eles pagaram na Monsanto (US$ 63 bilhões) o pelo que lucram com a venda do agrotóxico mais vendido no mundo, é uma hipocrisia fazer esse tipo de acordo, em que se reconhece haver o dano, quando se trata de um dano incalculável a longo prazo, um dano ecossistêmico”.
Entretanto, enxerga disputas com a justiça dos Estados Unidos um ponto de partida para mudanças. “Foram longas batalhas judiciais que levaram a legislações bastante restritivas aos cigarros. Antes se fumava dentro de todo lugar, na sala de aula, no taxi, no hotel. E hoje há propagandas expondo os males do tabagismo”, comparou.
Nesse sentido, defende, deveria ser adotada uma espécie de certificação negativa da produção de alimentos. “Hoje em dia, o ônus da certificação é de quem produz alimento ecológico, orgânico, limpo. Então os alimentos produzidos no modelo de agronegócio convencional, muitas vezes com uso de substâncias proibidas em outros países, teriam de trazer aviso na embalagem. Algo como esse produto foi produzido com agrotóxico X, que pode causar câncer, danos ao sistema nervoso”
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