Após um ano, 61% das investigações de assassinatos no campo não foram concluídas; ninguém foi condenado. Número de conflitos no campo aumentou 23% no primeiro ano do governo Bolsonaro, inimigo declarado dos trabalhadores rurais, índios e quilombolas
Por Daniel Camargos, da Comunicação Repórter Brasil*
Esta reportagem faz parte do especial ‘Cova Medida’, que faz raio-x inédito da violência no campo e revela a impunidade diante dos 31 sem-terra, indígenas e ambientalistas mortos no primeiro ano do governo Bolsonaro. Um relato com o perfil das vítimas, a motivação dos crimes e o drama dos familiares em luto
As 31 vítimas da violência no campo no Brasil no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro têm nome, sobrenome e um histórico de defesa pela terra. O que elas não têm é justiça. Passado mais de um ano, ninguém foi condenado e apenas um crime foi considerado encerrado: o de um indígena no Amapá que, segundo o Ministério Público Federal, morreu afogado – versão que a família contesta, já que foram encontradas lesões no corpo da vítima.
Outras 19 investigações (61%) não foram concluídas, mesmo depois de um ano, e um dos casos está com o Ministério Público. Dez deles (32%) tiveram a fase de inquérito policial encerrada, mas aguardam julgamento, sendo que seis tratam do mesmo episódio, a Chacina de Baião, no Pará. Em apenas sete dos assassinatos, houve prisão preventiva de suspeitos, em sua maioria fazendeiros e seguranças de fazendeiros, mas em quatro dos casos, eles foram soltos.
Os dados fazem parte de levantamento feito pela Repórter Brasil, com base em relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e foram reunidos no especial multimídia Cova Medida.
“A impunidade é um arranjo estrutural no qual as vítimas da violência mantêm sua condição histórica de invisibilidade, mesmo quando eliminadas”, analisa Paulo César Moreira, coordenador da CPT, organização que elabora há mais de três décadas um relatório anual sobre os conflitos no campo.
A invisibilidade à qual Moreira se refere tem relação com o perfil das vítimas. Os executados em 2019 eram majoritariamente homens (93%), moradores de estados da Amazônia Legal (87%), ligados a movimentos sem-terra (35%) ou indígenas que morreram na defesa do território (25%). Trabalhadores pobres, que muitas vezes já viviam sob ameaça e que sonhavam com um pedaço de terra para sobreviver – um direito garantido na Constituição. Entre os executados, há ainda um servidor da Funai.
O Cova Medida também mostra que a maioria dos casos envolve disputa por terra (39%) ou defesa de territórios indígenas (29%), mas há episódios motivados por questões trabalhistas e até um crime de ódio, como o atropelamento de um idoso durante uma manifestação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Valinhos (SP).
A brutalidade de alguns assassinatos evidencia o ódio e o preconceito contra os povos do campo. Além do militante do MST atropelado, a ambientalista Rosane Silveira, de Nova Viçosa (BA), foi encontrada com os pés e mãos amarrados, sinais de estrangulamento, além de ter sido esfaqueada e ter levado um tiro na cabeça.
Entre os suspeitos ou investigados pela polícia e os acusados pelo Ministério Público, há fazendeiros, seguranças privados contratados por proprietários rurais, caçadores, além de madeireiros e grileiros. Mas há casos em que os investigadores não têm pistas, e situações de precariedade das polícias, como um assassinato no Sul do Amazonas que não teve nem Boletim de Ocorrência e outro, no Mato Grosso, onde a delegacia responsável sequer tinha delegado.
O tempo previsto no Código de Processo Penal para um inquérito policial é de 30 dias – prazo raramente cumprido no caso de homicídios, sejam eles rurais ou urbanos. “Pesquisas sobre homicídio no Brasil e no mundo mostram que, quando os casos são esclarecidos, isso ocorre, em sua maioria, dentro de um ano. Com o passar dos meses, as chances [de resolução] caem porque o tempo apaga os vestígios, diminui a pressão nas autoridades e as testemunhas vão esquecendo detalhes”, afirma o advogado e gerente do Instituto Sou da Paz , Bruno Langeani. Ou seja, os 61% dos casos que estão neste momento na polícia podem nunca chegar ao Judiciário. E, se chegarem à Justiça, podem levar mais de dez anos para serem julgados.
Por entre a falta de estrutura das instituições policiais e a morosidade do Judiciário, a impunidade se repete tanto em crimes recentes quanto nos mais antigos: dos 1.496 casos de violência no campo ocorridos entre 1985 e 2018, apenas 120, ou 8%, foram julgados, segundo levantamento da CPT. A Repórter Brasil também investigou cinco assassinatos ocorridos há mais de uma década para entender se o fator tempo colabora com a justiça: em só um deles houve julgamento, condenação e prisão do responsável.
Além de silenciar vidas e lutas, a violência também prejudica as investigações. “Por ter muitas mortes, há uma dificuldade de conseguir testemunhas. As pessoas não querem se comprometer e isso acaba complicando a investigação”, afirma a promotora agrária de Altamira, no Pará, Nayara Santos Negrão. O promotor agrário de Pernambuco, Edson Guerra, concorda, acrescentando que alguns crimes não deixam rastros: “Ninguém quis falar por medo. Foi uma coisa planejada, bem arquitetada, porque não tinha prova nenhuma”, afirmou Guerra à Repórter Brasil sobre uma das vítimas retratadas no Cova Medida.
Já os delegados, muitas vezes, usam o argumento do sigilo ou dão respostas vagas para não explicar a letargia da investigação. “Há diligências em andamento, que ajudarão a concluir a investigação”, disse um deles, ouvido no Cova Medida. “A investigação segue em curso”, afirmou outro.
Enquanto a justiça não vem, familiares dos mortos encaram o luto às vezes sob ameaças, às vezes enfrentando dificuldades financeiras. “É uma vida angustiante, a gente não tem paz dentro dessa situação. É uma injustiça terrível. Vai ficar por isso mesmo? Eu fiquei com meus filhos, numa luta”, afirma Elizangela Raimunda da Silva Santos, viúva de Aluciano (assassinado no interior do Pernambuco), que hoje conta com ajuda da Igreja para alimentar seus três filhos pequenos.
‘Licença para matar’
“O que faz que essas pessoas pratiquem crimes é a quase certeza da impunidade”, analisa a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que nasceu em um seringal no Acre e conhece de perto a violência no campo, tendo perdido seu companheiro de militância sindical, Chico Mendes, assassinado em 1988 . Mas não só. Para a fundadora do partido Rede, o discurso e algumas medidas adotadas por Jair Bolsonaro, como a redução da fiscalização ambiental, agravam a violência.
“Os assassinos estão sentindo que têm uma licença para matar. Escutam o discurso do governo contra indígenas, ambientalistas, extrativistas e se sentem acolhidos, enquanto as vítimas estão desamparadas e desprotegidas”, afirma a ex-ministra. De fato, o número de conflitos no campo aumentou 23% entre 2018 e 2019, segundo a CPT – é o recorde dos últimos cinco anos.
Para diminuir a violência, a ex-ministra entende que é preciso investigar e punir exemplarmente os assassinos e mandantes. Além disso, ela conta que quando era ministra, entre 2003 e 2008, realizou concursos para aumentar o efetivo do Ibama e fortalecer a fiscalização ambiental, inclusive concedendo aos fiscais a possibilidade de queimarem máquinas usadas nos garimpos ilegais. “Em muitos casos, é a única coisa que se pode fazer. Quando o governo proíbe isso [queima das máquinas], como faz Bolsonaro, aumenta o poder de quem está na ilegalidade”, avalia.
O estado campeão de mortos em 2019 é o Pará, com 12 das 31 vítimas, palco de dois massacres (Eldorado dos Carajás e Pau D’Arco) e do assassinato da missionária Dorothy Stang em 2005. Ao contrário das vítimas retratadas no Cova Medida, a execução da missionária ganhou projeção internacional e os mandantes do crime foram presos, ainda que só depois de uma longa guerra judicial.
Mas a terra onde Dorothy defendia a reforma agrária segue derramando sangue. Apenas em 2019, foram três assassinatos em Anapu (PA) por disputa fundiária: Márcio Rodrigues dos Reis, Paulo Anacleto e Marciano dos Santos Fosaluza. Seus nomes estão em uma cruz vermelha cravada ao lado do túmulo da missionária. Eles se somam a outros 16 nomes que integram a cruz, todos assassinados por lutarem pela reforma agrária nos últimos cinco anos na cidade que fica às margens da Transamazônica.
Marina Silva era ministra quando Dorothy foi executada, e estava com policiais federais no Pará no dia da morte. “Determinei que eles fossem ao local do crime, pois imaginava que, se aquela morte ficasse na mão da Justiça estadual, iria ser feita uma manobra para proteger os assassinos”, lembra. “Quando os policiais chegaram ao local do crime, a Polícia Militar queria incriminar um aliado de Dorothy. É uma terra sem lei”. Marina lembra ainda que, quando o corpo de Dorothy chegou à Anapu, algumas pessoas soltaram foguetes comemorando a morte da missionária.
Dorothy, assim como muitas das vítimas retratadas no Cova Medida, lutava por democratizar o acesso à terra no Brasil. “A desigualdade da distribuição da posse da terra no Brasil é uma das mais acentuadas do mundo, sendo associada a processos históricos de grilagem, conflitos sociais e impactos ambientais”, conclui um estudo do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Agrícola) após constatar que 10% das maiores fazendas ocupam 73% da área agrícola do Brasil. Uma das medidas para reduzir a desigualdade, continua o estudo, é a reforma agrária – que foi suspensa em 2019 pelo governo Bolsonaro, conforme revelou a Repórter Brasil à época.
Para o economista João Pedro Stédile, um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), há um padrão na crueldade contra os trabalhadores do campo, que é o mesmo há décadas. “Essa violência está nas perseguições do Judiciário, na atuação da polícia e culmina com os assassinatos”, afirma. Um retrato de como o Estado brasileiro é elitista e preconceituoso, o que garante repressão aos camponeses e impunidade aos latifundiários, analisa Stédile. “O governo Bolsonaro, com sua retórica fascista, induz a uma impunidade ainda maior”, entende o líder do MST.
Procurada, a secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. O secretário de assuntos fundiários, Nabhan Garcia, também não quis conceder entrevista.
Lideranças indígenas no alvo
Depois dos sem-terra, os indígenas foram as principais vítimas da brutalidade no campo. Em 2019, foram 9 assassinados por defenderem territórios indígenas, sendo 7 lideranças. Foi o maior número dos últimos 11 anos, segundo a CPT. “Os invasores se sentiram totalmente autorizados a serem violentos”, analisa Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Guajajara considera que o ponto alto da violência atual contra os povos indígenas teve início quando o presidente Jair Bolsonaro declarou que não iria demarcar nem um centímetro de terra indígena. Mais do que discurso, na prática não houve nenhum centímetro de terra indígena demarcado nos dois primeiros anos do governo eos pedidos estão todos travados. Procurado, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, não quis conceder entrevista. A Funai também não respondeu as perguntas enviadas pela reportagem.
‘Sofro ameaças, mas não tenho medo. Só sinto muita falta dele’, afirma o pai de Paulino Guajajara, José Maria Guajajara
Entre os indígenas assassinados em 2019, o caso que ganhou maior repercussão foi o de Paulo Paulino Guajajara, que integrava os Guardiões da Floresta, grupo formado pelos indígenas para proteger o território de madeireiros e invasores. “O trabalho deles é muito arriscado, pois não tem proteção nenhuma. Eles [guardiões] estão fazendo o papel do Estado de proteger as terras públicas”, afirma Sônia, que mesmo diante do risco destaca a importância dos guardiões. “Estão reduzindo significativamente a entrada de madeireiros no território”.
Um ano depois do crime, que ganhou repercussão internacional, a família de Paulino enfrenta dificuldades financeiras e sofre ameaças. “O mundo todo soube da morte do meu filho e os criminosos ficaram com raiva de mim. Sofro ameaças, mas não tenho medo. Só sinto muita falta dele”, afirma o pai de Paulino, José Maria Guajajara.
Os dois madeireiros indiciados pela morte do guardião da floresta tiveram a prisão preventiva decretada, mas continuam soltos. Depois da morte de Paulino, outros quatro indígenas foram mortos na mesma região.
Se a luta pela defesa do território ou pela conquista de um hectare de terra pode cobrar um preço alto, o mesmo pode ser dito sobre a batalha contra a impunidade. “Punir os responsáveis tem sido uma luta inglória”, lamenta o padre Moreira, da CPT.
*Colaboraram: Mariana Della Barba, Diego Junqueira, Daniela Penha, Gisele Lobato, Maria Fernanda Ribeiro, Joana Suarez e Pedro Sibahi
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