Por Paulo Vinícius
(…) Então enviaram os guardas um pedreiro com uma faca para eliminar a inscrição.
E ele raspou letra por letra, durante uma hora
E quanto terminou, lá estava no alto da cela, incolor
Mas gravada fundo na parede, a inscrição invencível:
VIVA LÊNIN!
Agora derrubem a parede! disse o soldado.
A inscrição invencível – Bertolt Brecht
Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin – falecido em 21 de janeiro de 1924, há 96 anos – é considerado por muitos o maior revolucionário de todos os tempos. Não é à toa que ele sempre foi cercado de admiradores, detratores e falsificadores. Polemista inquieto e apaixonado, o combate a ele até os dias de hoje apenas faz luzir a estrela da rebelião que sempre foi seu norte. Lênin é para quem quer mudar o mundo de verdade.
Não é o sujeito biográfico, quanto lhe queremos ou não, que merece nossa mirada. Fosse assim, não importaria nem causaria tanto bafafá. Contra a essência revolucionária do pensamento de Lênin foi muito usado valorizar o que é cosmético e esquecer do seu conteúdo, como fez a URSS após Kruschev.
Até Gorbachev falava de Lênin enquanto entregava a rapadura ao capitalismo – e depois seria garoto propaganda da Pizza Hut. Ou ainda, torná-lo o senhor do “não pode”, para ossificar a grande virtude de seu pensamento, a plena aplicação da dialética à situação concreta e pensar nisso como gente organizada para mudar o mundo.
Lênin brilha mesmo é pelas posturas e saídas teóricas, por sua singular capacidade de superar dilemas teórico-práticos pela dialética marxista, e apontar saídas revolucionárias. Ele queria fazer a Revolução. Disseram que não dava. Ele foi lá e fez. Quem quis fazer e vencer na Revolução, leu e aprendeu com Lênin.
Lamentavelmente, é um pensador pouco compreendido, diria até desconhecido, assim me parece, e isso a despeito do monumental esforço de popularização e compilação de sua obra feito por Stalin após a sua morte. Por isso, superficialmente, como estímulo ao seu estudo, e para sistematizar minhas próprias opiniões, cito o que penso aspectos essenciais no pensamento revolucionário de Lênin.
Primeiro, ele atualiza a visão marxista sobre a concentração do capital como tendência histórica do sistema capitalista. A análise do sistema bancário europeu na passagem do século XIX para o século XX levou-o a definir a etapa do imperialismo como a era do capital financeiro, da oligopolização, da centralização inclemente de capitais, da unificação do capital industrial e comercial, com repercussões profundas na suposta concorrência entre mercados.
Elucida, assim a injustiça do capitalismo, que corresponde a um processo de concentração de renda e poder contra as maiorias trabalhadoras que são as únicas produtoras de toda a riqueza. Em vez da livre concorrência e do mercado endeusado, o capitalismo é o regime dos monopólios e oligopólios. Hoje, 1% da humanidade detém mais riqueza que 99%.
Esse processo profundo e mundial de centralização, planejamento e produção industrial ascendente, longe de levar a uma suposta paz dos mercados e do capitalismo racionalizado, recrudesceria como tensões inter-imperialistas que desembocariam em guerras e crises cada vez mais intensas. Seria essa a última etapa histórica do sistema capitalista, porque o nível do desenvolvimento científico, industrial e tecnológico levaria a tendências destrutivas, a não ser que fossem apropriadas pela maioria, superando a lógica da sociedade capitalista, que é a ditadura da burguesia e da manutenção do trabalho assalariado.
Ele não via o fenômeno apenas negativamente, mas a partir de suas múltiplas determinações. Chamava a atenção para o imenso progresso e para suas consequências sobre a emancipação da mulher, denunciando a escravidão do trabalho doméstico. O planejamento, a produção em série, a industrialização seriam ainda mais avançadas numa sociedade dirigida a favor de todos. Como o capitalismo persiste, a realidade de avanço científico seria apropriada contra as amplas maiorias, num regime oligopolista.
Por isso, dizia Lênin, o imperialismo seria a ante-sala do socialismo, sistema visto como superior e sucedâneo ao capitalismo, inclusive quanto ao progresso tecnológico. Nele, as vantagens do progresso seriam revertidas em favor das classes trabalhadoras, e não de uma minoria rica.
Vladimir Lênin estabeleceu uma justa relação dialética entre tática e estratégia, o movimento espontâneo das massas e como ele se torna movimento consciente, assim como os limites dos movimentos sem a luta geral pelo socialismo e pelo poder. São dilemas constantes da luta política que vivemos todos os dias.
Ele aponta para a capacidade de o movimento dos trabalhadores e trabalhadoras superar as tendências economicistas, corporativistas e espontaneístas, qualificando-se para uma disputa maior que a negociação das condições de venda da força de trabalho. Lênin descortinou o caminho do poder para os oprimidos.
Fez a crítica ao espontaneísmo, mostrando que a revolta episódica, local, por um aspecto específico desse ou daquele movimento, que o elogio do improviso e a ausência de organização e método na luta são o normal do movimento. Como tal, têm sua importância e são inevitáveis, pois decorrem das contradições objetivas da sociedade de classes e da exploração que promove. Mas não bastam.
O pensador russo demonstrou como todo movimento separado de uma visão sistêmica de disputa pela hegemonia só levaria às tentativas de manutenção do capitalismo com base nas ilusões de sua humanização. Mesmo o movimento sindical degeneraria em oportunismo, se os trabalhadores e trabalhadoras perdessem de vista que o objetivo é a própria superação da sociedade assalariada e o poder para as maiorias.
Os movimentos espontâneos, corporativos e gremiais têm avanços e refluxos, derrotas e vitórias, momento de grande animação e também de marasmo e crises, e podem inclusive ser policlassistas. A pedra de toque para dirigir esse fluxo num sentido revolucionário, seu sujeito, não é um indivíduo, mas um coletivo, um partido político capaz de superar o economicismo, o movimentismo, concentrando em uma força política unida o poder das maiorias, da classe trabalhadora.
O partido de vanguarda, se estiver à altura, deve ser a solução da contradição entre o específico e o geral, chefes e liderados(as), organizando a partir da luta espontânea a consciência permanente, orgânica da classe trabalhadora. O espontâneo, a despeito de sua força e inovação pode dar em nada, ou servir aos fins opostos que pretendia, se não tiver uma direção, porque há uma permanente disputa pela hegemonia e a manutenção da sociedade capitalista. Seu caráter injusto levaria a contradições, choques e crises.
Educar o povo na luta permitiria a disputa pelos trabalhadores da hegemonia e a construção de uma nova sociedade. Haveria na prática uma escala de progressiva consciência que iria das questões cotidianas mais simples até à concepção da vanguarda, materializada no Partido Comunista e na sua forma de direção, o centralismo democrático, em que todos os organismos e posições se construiriam de baixo para cima e se asseguraria a liberdade de pensamento e discussão, para em seguida construir uma forte e indestrutível unidade num sistema de direção coeso e capaz de fazer frente à unidade dos capitalistas como um punho cerrado para levar a classe trabalhadora à vitória.
Lênin estabelece uma escala realista de consciência política que considera o espontâneo um momento fundamental para o consciente, ligando a luta pela Reforma e a luta pela Revolução numa amálgama entre a teoria e a prática, a Praxis. Por isso, toda a luta, mesmo a menor, pode ser eivada de significado revolucionário.
A partir da recusa à conciliação com as burguesias europeias em favor da guerra imperialista e dos nacionalismos na I Guerra Mundial, Lênin subverte a concepção vigente no movimento social-democrata, que situava a possibilidade do socialismo apenas nos países industrializados, assim como nas metrópoles coloniais.
A partir do estudo do desenvolvimento desigual no capitalismo, Lênin observa que as tensões inter-imperialistas que ocorriam com conflitos cuja fachada religiosa ou supostamente nacional, em verdade, escondia a ganância infinita de lucro capitalista. Assim, em vez de somar-se aos interesses de suas burguesias nacionais, Lênin apelava para a rejeição de tais ilusões, para que por detrás delas e evidenciasse que as burguesias empurravam o proletariado para o massacre em favor de seus lucros, apenas.
Por outro lado, as guerras e as crises capitalistas sucessivas levariam a grande instabilidade, sistêmica, criando fragilidades específicas, históricas, singulares, em que os elos frágeis na cadeia imperialista permitiriam avançar para o socialismo. Haveria, portanto, condições revolucionárias inclusive em países economicamente atrasados, sob jugo colonial, podendo assim avançar para o socialismo. Essa nova liberdade altera as hierarquias postas no movimento operário, recolocando a revolução e o socialismo em relação dialética com a tática.
Lênin inaugura uma época de grandes possibilidades táticas, defendendo as alianças e um notável realismo político, mas que não se detivesse no reformismo ou no cretinismo parlamentar, mas apontasse para a transformação revolucionária da sociedade.
Assim, longe do principismo, da negação de alianças, da defesa de uma única forma de luta, Lênin defendia a legitimidade de todas as formas de luta, exceto o terrorismo. Estabelece que não importa a forma de luta em si, contanto que seja uma maneira de politizar a luta de massas e ampliar o poder da classe trabalhadora. Assim, reforma e revolução, luta eleitoral, de ideias, econômica, política, insurreição, todas se entrelaçariam num complexo encadeamento de fatos políticos em meio à história, cabendo à vanguarda conduzir o movimento espontâneo à consciência que permite a conquista do poder político e a transformação socialista da sociedade, em vez de deter-se nas reformas.
Ele deslindou a natureza de classe do Estado e da democracia burguesa, apontando-as como formas transitórias e em disputa na luta pela hegemonia na sociedade. O estado capitalista e a sua ditadura de classe se afirmariam particularmente nos momentos de crise, em que o poder militar, judicial e ideológico assegurariam inclusive pela força a manutenção da ordem capitalista. Assim, a luta pela democracia, como todas as lutas, teria um caráter de classe intrínseco, não sendo universais nem imutáveis, e estando ao escrutínio da consciência avançada.
Lênin aponta o caminho do poder político e da construção econômica para a classe trabalhadora, com a destruição do regime mais despótico e atrasado da Europa. As consignas Pão, Terra e Paz e Todo poder aos sovietes levaram a uma mudança sem precedentes, com a conquista e manutenção do poder soviético. O seu êxito prático apontou todavia a imensa complexidade da construção econômica no socialismo como regime de transição entre o capitalismo e a utopia da sociedade comunista.
Lênin inaugura um frutífero pensamento tático e estratégico, experimentando a disputa no seio da esquerda, a luta pelo poder e as possibilidades econômicas e políticas de uma nova sociedade que até então só existira em teoria.
O desassombro com que avançou e recuou na política e na definição das formas da propriedade ilustram a situação de imensa dificuldade e a busca de caminhos para afirmar uma sociedade superior à capitalista. Comunismo de guerra, Nova política Econômica, Trabalho voluntário, diversas formas de propriedade, tudo aponta para um pensamento econômico e político com margem de manobra e fidelidade aos princípios. A sociedade socialista surge múltipla e como forma de transição na própria experiência soviética, com avanços e recuos. Brilha em seu pensamento a grande preocupação com o progresso econômico e com a defesa de uma hegemonia baseada na aliança entre operários e camponeses.
A propriedade privada e o mercado deixam de ser tabu e são defendidos como instrumentos da transição de sentido socialista, inclusive pela utilização do capitalismo de Estado e o socialismo como regime de propriedade mista, de acordo com a história econômica de cada formação social. No centro da justeza e do êxito estariam o poder político. A China e o socialismo Chinês em grande medida bebem dessa teoria do desenvolvimento e da transição socialista formulada inicialmente por Lênin. Por isso não há modelo de socialismo e cada experiência será original, única.
Por tudo isso, em meio à crise da humanidade, Lênin segue atual, parte da luta dos oprimidos para tomar em suas mão o seu destino. E essa é a única homenagem digna de sua obra, uma vida inteira dedicada à transformação socialista, que demonstrou a sua viabilidade. E há tantas questões novas que o seu exemplo de sinceridade, obstinação e estudo rigoroso iluminam a nossa luta por responder aos desafios atuais do movimento.
Dialeticamente, o seu pensamento será superado na medida em que os dilemas que nos afligem sejam eles próprios batidos pela capacidade da classe trabalhadora ser autora dessa superação, na medida em se possa unir o sofrimento atomizado de todos os oprimidos e oprimidas na tomada de consciência para o mudar o próprio destino e a história, conquistando a sociedade das maiorias, a sociedade socialista.
O combate que lhe fazem – sempre a direita, porque ninguém esteve à esquerda de Lênin – é um sinal de saúde de seu pensamento revolucionário, que devemos conhecer e difundir como ferramenta e inspiração, clareando os caminhos da luta.
Se o tempo não lhe corrói, há duas causas: não cessaram os fenômenos a que refere, e seu pensamento nos ajuda a desvendá-los revolucionariamente. Há soluções passadistas que se apresentam como novas, social-democratas em especial, mas com um inevitável cheiro de naftalina e a hipocrisia que lhes é natural. Ao contrário do pensamento vivo e combativo, transformador, que encontramos em Ilitch e que somos chamados a desenvolver, pois é a isso que ele nos desafia. Com o exemplo vivo dos escritos de Lênin somos todos elevados(as) à condição de sujeitos conscientes de nossa própria emancipação, pois para ele, sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário.