Marcela Menezes*
Conforme a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, de 1994, a violência contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Segundo a mesma Convenção, a violência contra a mulher “constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens”.
No Brasil, a violência contra a mulher é uma realidade que coloca o país com a maior taxa de homicídios de mulheres entre todos os 36 países que compõe a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) e o quinto país com maior taxa de homicídios de mulheres no mundo. Outro dado alarmante para essa realidade, é que o número de homicídios de mulheres negras aumentou 54% em 10 anos (de 2003 a 2013).
Segundo dados compilados pelo Instituto Patrícia Galvão, 503 mulheres são vítimas de agressão por hora no país e cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos. Tudo isso demonstra a necessidade e a urgência de intervenções, em termos de políticas públicas, para amenizar e reverter esse cenário. Não é aceitável em uma democracia que mulheres sejam violentadas simplesmente por serem mulheres. Essa violência, como já mencionado acima, é histórica e culturalmente enraizada e, por isso, está também nas mãos da sociedade construir meios para sua superação.
O Brasil, de forma gradual (às vezes lenta) e contínua tem pactuado reconhecer, denunciar e combater a violência contra as mulheres. Exemplos nesse sentido são o Decreto 1.973/96, que promulga e adota a Convenção Internacional aqui já referida; a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) – antes da qual a violência contra a mulher era tratada como crime de menor potencial ofensivo e a partir da qual essa violência é considerada crime, é tipificada e, ainda, cria-se mecanismos de proteção às vítimas, responsabilizando o Estado por sua implementação – e a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15), que modifica o código penal incluindo o assassinato de mulheres (em razão de sua condição de ser mulher) na modalidade de homicídio qualificado e no rol dos crimes hediondos.
A Lei Maria da Penha, vale ressaltar, é considerada pela ONU uma das mais avançadas do mundo. O texto traz inovações para a proteção às vítimas e a punição aos agressores; prevê mecanismos, como as medidas protetivas, e também a criação de equipamentos fundamentais para sua efetividade, como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), Centros de Referência da Mulher, Casas Abrigo, Juizados especializados de Violência Contra a Mulher, entre outros mecanismos.
Em que pese a legislação mencionada, as políticas e mecanismos previstos estão longe de serem efetivados no país. A maior parte dos municípios brasileiros não contam com os equipamentos necessários para o atendimento, a prevenção e a punição em casos de violência contra a mulher e, por isso, as mulheres brasileiras seguem desassistidas.
Tendo em vista a ciência e a consciência, hoje já bastante difundida, acerca da realidade cruel e inaceitável de violência contra as mulheres no Brasil, e tendo em vista a legislação existente e consolidada a esse respeito, pode-se dizer que a omissão do Estado quanto a esse cenário é uma violação de Direitos Humanos. Conforme material pedagógico da Escola de Formação em Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais (EFDH-MG), violação de Direitos Humanos é “um ato ou omissão que gera a responsabilidade do poder público por desrespeitar normas às quais ele se vinculou”.
Especificamente sobre a situação de violência contra as mulheres, ainda define casos de violência doméstica como violações de Direitos Humanos, “na medida em que o poder público se comprometeu a prevenir, combater, reprimir e dar assistência às vítimas. Portanto, a omissão na prevenção, no combate, na repressão e na assistência às vítimas é o que faz esses e outros assuntos envolvendo a violência entre pessoas particulares temas de Direitos Humanos”.
Os números em relação à violência contra a mulher no país são crescentes e alarmantes e o contexto político nacional é desfavorável a avanços nas pautas de DHs. Nesse sentido, é urgente e fundamental que as denúncias e a luta contra essa violação dos Direitos Humanos sejam permanentes, até que revertamos essa situação.
Caso de Ribeirão das Neves
Em Ribeirão das Neves, município mineiro situado na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), as organizações que atuam na defesa dos direitos das mulheres e no enfrentamento à violência contra a mulher têm denunciado a omissão do Estado. Ribeirão das Neves possui uma população estimada em mais de 330 mil habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo a sétima maior cidade em população do estado de Minas Gerais.
Conforme estudo publicado em 2017, Ribeirão das Neves apresenta o segundo menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) das mulheres entre os 111 municípios considerados, demonstrando a vulnerabilidade em que se encontram as mulheres na cidade. Além disso, em 2018, o município era o terceiro de Minas Gerais com mais ações de violência contra as mulheres em andamento no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), e com a maior demanda de inquéritos instaurados entre as DEAMs na RMBH em 2019.
O município conta com uma Delegacia Especializada, que não é exclusiva para violência contra a mulher (Delegacia Especializada de Crimes contra a Mulher, o Idoso e o Adolescente), possuindo mais de 5000 inquéritos em tramitação, e realizando, em média, cerca de 100 novos atendimentos por mês relacionados à violência contra a mulher. O Relatório da Comissão de Mulheres da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, de 2019, apontou a defasagem de pessoal na DEAM de Ribeirão das Neves.
Em 2019, a delegacia contava somente com a delegada (que revezava atendimento em outra delegacia da região), uma escrivã, que é responsável por todas as oitivas – de vítimas, testemunhas e agressores – e três investigadores; não contava com assistente social e estava, no momento, com uma psicóloga voluntária realizando atendimento.
Já não bastasse essa situação precária, que compromete muito a efetividade da proteção às vítimas de violência e a punição aos agressores, comprometendo, inclusive, a atuação de outros órgãos da rede de atendimento às mulheres vítimas de violência, o município de Ribeirão das Neves está há dois meses sem uma delegada titular nessa delegacia. Em 17 de outubro de 2020 foi publicada a remoção da delegada Carla Pereira Amorim, até então em exercício na DEAM de Ribeirão das Neves.
A Rede Municipal de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher têm atuado no sentido de acionar as autoridades competentes para nomeação, em caráter de urgência, de nova delegada titular para a DEAM Neves, assim como para a designação de maior efetivo na delegacia para realização do trabalho de forma adequada, conforme preconiza a Lei Maria da Penha e outras legislações correlatas.
Ressalta-se, ainda, que o município não possui mecanismos importantes como Centros de Referência da Mulher e casa abrigo, fazendo-se valer da casa abrigo do Consórcio Mulheres das Gerais que, neste momento, se encontra superlotada. Ainda, só há um CREAS na cidade, quando seria recomendável no mínimo três, pois este é um importante órgão no acolhimento e atendimento às mulheres vítimas de violência – além de outras pessoas em situação de violação de direitos. Sabemos, por fim, que há subnotificação nos números de violência contra a mulher, pois muitas sequer chegam a procurar a rede de atendimento. Um dos motivos para isso, certamente, é a falta de efetividade das políticas, que desestimula as mulheres a buscá-las.
É importante frisar que não é objetivo deste artigo deslegitimar a rede de atendimento e as políticas já conquistadas no âmbito do combate à violência contra as mulheres. A legislação que conquistamos ao longo do tempo, assim como muitas políticas, equipamentos e instrumentos são fundamentais. O que busco, no entanto, é denunciar a lentidão para que todo esse conjunto de ações do Estado esteja estruturado o suficiente para combater radicalmente a realidade de violência contra as mulheres em nossas cidades e no país como um todo. Ribeirão das Neves não é um município isolado, e por isso possui uma série de desafios e limitações em sua rede de atendimento às mulheres vítimas de violência, assim como milhares de municípios brasileiros.
É urgente, portanto, que o poder público, federal, estadual e municipal, assuma sua responsabilidade de “prevenir, combater, reprimir e dar assistência às vítimas”, fortalecendo as políticas públicas e desconstruindo mais essa violação aos direitos humanos, caracterizada pela omissão diante da realidade perversa de violência contra as mulheres no Brasil.
*Marcela Menezes é servidora pública estadual, atua na pauta de direitos humanos. Está presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Ribeirão das Neves (CMDM/RN), representando o segmento da sociedade civil. Compõe o Coletivo Balaio e o Coletivo Justinópolis de Economia Solidária.
Artigo publicado originalmente no Jornal Brasil de Fato-MG