Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi
A Terra Indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal, localizada entre os municípios de Prado e Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, foi a que registrou, neste estado, o maior número de propriedades certificadas a particulares desde a publicação da Instrução Normativa (IN) 09/2020 pela Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Entre a data em que a normativa foi publicada, no dia 22 de abril, e o dia 10 de agosto, 41 propriedades foram certificadas em sobreposição à terra indígena por meio do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Incra.
Essas parcelas, que somam 9.148 hectares, pertencem a 13 proprietários. E pelo menos oito deles são autores de ações contra a demarcação da Terra Indígena do povo Pataxó – todas elas derrotadas, no ano passado, por decisão da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em conjunto, eles são donos de 29 das 41 certificações aprovadas pelo Incra – e de 78% dos 9.148 hectares certificados em sobreposição à Terra Indígena. A soma inclui as parcelas certificadas por uma empresa, a Agropecuária Nedila, cujo proprietário é autor de uma das ações que buscaram anular a demarcação da Terra Indígena.
Além destes oito fazendeiros, outros quatro autores destas ações constam como coproprietários de dois imóveis que tiveram parcelas certificadas sobre a Terra Indígena após a publicação da instrução normativa da Funai. Eles não são detentores diretos das parcelas certificadas em sobreposição à TI Barra Velha, mas provavelmente são donos de outras matrículas dos mesmos imóveis. As informações constam de outra base do Incra, o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).
É o caso de Claudia Nicchio, Jaqueline Kelly Nicchio Von Gleihn e Claudio Nicchio, que figuram como autores de uma das ações contra a demarcação da Terra Indígena dos Pataxó. Eles aparecem, no SNCR, como proprietários da fazenda Conjunto Bom Jardim, de 923 hectares.
O outro proprietário deste imóvel é Adhemar Tadeu Nicchio, que também consta como autor da mesma ação, o Mandado de Segurança (MS) 20334, que foi negado pelo STJ. No dia 16 de maio, menos de um mês após a publicação da IN 09, ele obteve a certificação de uma parcela de 257 hectares da fazenda sobre a TI Barra Velha do Monte Pascoal.Passe o mouse sobre as terras indígenas no mapa para ver informações sobre os territórios. Clique nas propriedades para ver informações sobre as certificações.
Insegurança jurídica
Para procuradores de 23 estados do Ministério Público Federal (MPF), a normativa da Funai aprofundaria os conflitos pelo acesso à terra. O caso da TI Barra Velha do Monte Pascoal parece exemplar: apesar das decisões judiciais que atestaram a legalidade do processo demarcatório, os fazendeiros derrotados na justiça é que acabaram favorecidos pela medida.
“O Estado brasileiro, por meio da Funai, está incorrendo em um grave problema jurídico”, avalia Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e advogado da comunidade Pataxó da TI Barra Velha nas ações que tramitaram no STJ.
“Esse fato causa uma tremenda insegurança jurídica e uma instabilidade social para aquelas áreas. Certificar fazendas dentro de áreas indígenas sem o processo de demarcação finalizado tende a causar graves prejuízos, tanto para os indígenas quanto para os não indígenas. Com a finalização da demarcação, essas certificações passam a ser nulas, como de fato são, por determinação constitucional”, analisa.
Para Aruã Pataxó, presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat), existe risco da disputa judicial superada no STJ ressurgir, devido à ação contraditória da Funai.
“Quando a Portaria Declaratória sair, vai ter outra briga judicial, porque a Funai reconhece dois limites. De início, reconhece a tradicionalidade indígena nesta área, e depois, reconhece os limites de fazendeiros ali”, preocupa-se a liderança.
Vitória Pataxó no STJ
A TI Barra Velha foi demarcada no município de Porto Seguro na década de 1980 com 8.627 hectares. Como grande parte do território de ocupação tradicional Pataxó ficou de fora desta demarcação, os indígenas mobilizaram-se para garantir a revisão dos limites da área.
Depois de anos de luta dos Pataxó, em 2009, a Funai publicou o novo relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área. A demarcação revisada recebeu o nome de TI Barra Velha do Monte Pascoal e corrigiu os limites da Terra Indígena, que passou a possuir 52.748 hectares, os quais englobam a demarcação anterior.
Em 2013, entretanto, um conjunto de fazendeiros e o Sindicato Rural de Porto Seguro buscaram anular a demarcação na Justiça. Eles ingressaram com seis mandados de segurança no STJ, pedindo que a corte impedisse a publicação da Portaria Declaratória da área pelo Ministério da Justiça – passo seguinte do processo demarcatório.
No mesmo ano, o STJ atendeu de forma liminar ao pedido dos fazendeiros, barrando o andamento do processo administrativo da Terra Indígena – situação semelhante à que ocorreu com a TI Tupinambá de Olivença, também no sul da Bahia.
E assim como no território Tupinambá, em 2019, depois de admitir os indígenas como parte do processo, a Primeira Seção do STJ derrubou a liminar, por unanimidade, e reconheceu, em decisão de mérito, a legitimidade e a validade da demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal.
O argumento ruralista contra o reconhecimento do território Pataxó baseava-se na tese do marco temporal e numa das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, que veda a “ampliação” de terras indígenas.
“A TI dos Pataxó foi demarcada na década de 1980, muito menor do que seria o território Pataxó, que foi então revisto, através de um novo procedimento de demarcação. Os ruralistas alegavam que esse processo era ilegal porque a terra já estava demarcada, mas não é isso que nossa Constituição fala. Então, eles se apropriaram de uma tese que é inconstitucional e que nem mesmo no caso Raposa ela foi aplicada”, explica Modesto.
Dentro da área que passa por revisão de limites, há aldeias já consolidadas, fruto da luta dos Pataxó pelo reconhecimento e retomada de toda a extensão de seu território tradicional. É o caso da aldeia Trevo do Parque, do cacique Guaru Pataxó. Ele chama atenção para o fato de que a demarcação antiga da TI Barra Velha já é insuficiente, hoje, para a sobrevivência da população Pataxó do território.
“Esse território para nós é um território sagrado, uma herança que nossos antepassados nos deixaram. Essa terra é nossa mãe, para nós criarmos nossos filhos, nossos netos. É uma luta de muitos e muitos anos. Nossos avós, nossos tataravós estão enterrados aqui. O Monte Pascoal para nós simboliza um marco histórico, um monumento, uma corrente de força, de união e de esperança”, afirma.
“Essas terras já foram alvo de vários mandados de segurança. Conseguimos na justiça derrubar esses mandados, a Funai e o Ministério da Justiça poderiam tocar esses processos. Mas, agora, vem esses novos instrumentos para atrapalhar”
Demarcação emperrada
Em cinco das seis ações movidas contra a demarcação da terra indígena, os fazendeiros recorreram ao STF, onde os recursos ainda tramitam. A decisão do STJ, entretanto, derrubou qualquer impedimento para a publicação da Portaria Declaratória da terra indígena pelo Ministério da Justiça – a qual, desde então, vem sendo cobrada incessantemente pelas lideranças Pataxó e também pelo MPF.
Apesar disso, em 2019, o processo demarcatório foi devolvido pelo então ministro Sérgio Moro à Funai, para averiguações com base no Parecer 001/2017 da AGU, atualmente suspenso pelo STF.
A Instrução Normativa 09, mais uma das medidas do governo Bolsonaro voltadas a inviabilizar as demarcações de terras indígenas, acrescenta mais um obstáculo ao longo percurso do povo Pataxó na luta pela demarcação do seu território, e empurra a concretização do direito constitucional dos indígenas mais alguns passos atrás.
“Esses artifícios, essas normas que estão sendo criadas pelo governo Bolsonaro são para atrapalhar a demarcação das terras indígenas. O fato é que essas terras já foram alvo de vários mandados de segurança. Conseguimos na Justiça derrubar esses mandados, e então a Funai e o Ministério da Justiça poderiam tocar para frente esses processos sem nenhum impedimento jurídico. Mas, agora, vem esses novos instrumentos para atrapalhar”, avalia Aruã Pataxó.
“As terras indígenas são de usufruto exclusivo, inalienáveis, indisponíveis, além de ser este um direito imprescritível”, salienta Rafael. “Essa normativa pode, inclusive, gerar um direito de indenização contra a União, devido à criação de expectativa de direitos em favor de terceiros, por força de um ato viciado, nulo, sabendo-se que em terra indígena não pode haver propriedade privada. Nesse sentido, sem exagero, a Funai poderia estar incorrendo em um ilícito de improbidade administrativa”.
“Bolsonaro afirmou em campanha, e reafirma como presidente da República, que não vai demarcar nenhum milímetro de terra indígena, e agora está cumprindo a sua missão”, recorda o cacique Aruã. “Cabe aos órgãos de defesa de direitos e à própria Justiça impedir que isso aconteça e derrubar essa normativa da Funai”.