Por Élida Graziane Pinto
Tempo importa tanto quanto valor pecuniário para a execução orçamentária. A ordenação de prioridades ao longo do exercício financeiro passa não só pelo volume de recursos destinados a determinada ação governamental, mas também pela velocidade de efetivo processamento da despesa.
Desde a Lei 13.979, de 6 de fevereiro deste ano, a necessidade de enfrentamento sanitário da pandemia da Covid-19 estava pautada no ordenamento jurídico brasileiro. Vale lembrar que o correspondente “Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus Covid-19” (disponível aqui) foi publicado pelo Ministério da Saúde em 13 de fevereiro, ou seja, uma semana depois daquela Lei.
Todavia, um semestre escoou por nossos dedos, sem que tivéssemos executado sequer 1/3 (um terço) dos créditos extraordinários abertos em favor do Sistema Único de Saúde no âmbito da ação 21C0. Dos R$39,33 bilhões de dotação disponível, somente foram efetivamente pagos R$12,18 bilhões até às 17h do dia 12/07/2020 (como podemos acompanhar aqui).
Para que tenhamos a dimensão da falta de prioridade real para o gasto diretamente destinado à política pública de saúde em meio à maior pandemia dos últimos cem anos, esses R$12,18 bilhões correspondem a meros 5,6% do total de R$216,2 bilhões pagos pela União até agora para fazer face à Covid-19 em vários eixos de ação.
À frente do SUS, estão despesas com o auxílio emergencial a pessoas em situação de vulnerabilidade (R$121,8 bilhões), auxílio financeiro a Estados e Municípios (R$24,9 bilhões), cotas de fundos garantidores de operações e de crédito (R$20,9 bilhões) e concessão de financiamento para pagamento de folha salarial (R$17 bilhões), tal como depreendemos do portal de monitoramento do Tesouro Nacional.
Até os planos de saúde, no âmbito da assistência privada e suplementar que atende a menos de 1/4 da população brasileira, tiveram maior reforço financeiro que o SUS, porque puderam contar com a liberação de R$ 15 bilhões das suas reservas técnicas (tal como noticiado aqui).
Um semestre se passou, superamos a fronteira das 72 mil mortes e nos acomodamos imprudentemente com a faixa média de mil mortes diárias para passarmos agora aos temerários planos de reabertura econômica e de relaxamento do isolamento social.
Aos seis meses de omissão fiscal se soma a interinidade gerencial no Ministério da Saúde que chega a dois meses, neste 15 de julho, sem titular efetivamente designado para a pasta.
A pandemia está fora de controle na União que se nega ao imprescindível papel de coordenar nacionalmente o federalismo sanitário brasileiro. A bem da verdade, o governo federal apenas tem terceirizado o custo político da sua (ir)responsabilidade para Estados e Municípios (como debatemos aqui).
Paradoxal é o contraste entre a ação, por diversas vezes, capturada por inúmeras fraudes e desvios nos entes subnacionais, de um lado, e a omissão politizada do Executivo federal, de outro, o qual tenta transferir a responsabilidade das mais de 72 mil mortes para prefeitos e governadores. Eis uma guerra política que desvenda a primazia do patrimonialismo na agenda política brasileira.
Os meses se sucedem sem que os números de contaminações e mortes arrefeçam. Mas os calendários de reabertura parecem se embasar na quimera político-econômica de que o caos pode ser tolerado ou simplesmente banalizado.
Enquanto isso, todos os entes federados devem aprovar ainda neste mês de julho suas respectivas leis de diretrizes orçamentárias para 2021, ancorados na frágil tese de que a calamidade findará em 31 de dezembro deste 2020.
Não há segurança jurídica, contudo, para as estimativas de arrecadação tributária constantes dos aludidos PLDO’s para os próximos três anos, em contexto de inviabilidade fática de cumprimento do que determina o art. 4º da LRF para o escopo das diretrizes orçamentárias. Tampouco há qualquer avaliação sistêmica acerca do custo total de enfrentamento da pandemia nas searas sanitária, social e econômica. Assim, as projeções para a dívida pública são simulações precárias e sujeitas a cenários altamente instáveis. Também estão sujeitos a severo risco de solução de continuidade, noutro prisma, os serviços públicos essenciais.
Ideal seria que a resposta governamental estabilizasse as expectativas de todos os agentes públicos e privados em um plano bienal de enfrentamento da Covid-19. A calamidade pública, reconhecida pelo Congresso em 20 de março para vigorar até o final deste ano, tende a espraiar seus efeitos no próximo exercício financeiro e, até que haja vacina ou medicamento efetivamente eficaz para o tratamento da doença, prudente seria alargar o horizonte interpretativo da crise que temos vivido para além do que foi concebido neste último semestre.
Mesmo que seja aviada, nos próximos dezoito meses, alguma vacina ou medicação eficaz, o horizonte do parque industrial da saúde demandará elevados níveis de gasto público até mesmo para produzir, em larga escala, no Brasil todos os insumos e produtos necessários à universalização da solução sanitária. Nesse sentido, é preciso urgentemente reestruturar a capacidade produtiva de entidades como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto Butantan, a Fundação para o Remédio Popular (FURP), a Fundação Ezequiel Dias (Funed) etc. que perfazem, dentro do SUS, nossa capacidade produtiva minimamente autônoma de vacinas e medicamentos.
Apresentar regras curtas para uma realidade que desafia o médio prazo é frustrar a segurança jurídico-econômica, já que tais regras não são capazes de oferecer estabilização de expectativas para as principais variáveis fiscais.
Devemos aproveitar o escopo das diretrizes orçamentárias para 2021, em debate atualmente nos parlamentos de todos os entes da federação, para alargar o alcance da nossa reflexão, sob pena de repetirmos nos próximos três semestres o fiasco omissivo do que se sucedeu no Brasil desde a edição da Lei 13.979/2020.
Mortes evitáveis se acumularam às dezenas de milhares em nosso país neste último semestre. Estamos tão entorpecidos pela naturalização dessa marcha fúnebre que nem mesmo a média diária superior a mil óbitos verificada nas últimas duas semanas foi capaz de constranger/ evidenciar a omissão fiscal e a interinidade gerencial que se arrastam por meses a fio.
Tempo perdido, vidas perdidas por omissão e patrimonialismo. Nosso silêncio conivente aceita regras fiscais sabidamente míopes e insuficientes, feitas apenas para atender sobreviventes cínicos de uma inconstitucional opção governamental de “deixar morrer”… O custo dessa omissão — direta ou indiretamente — recairá sobre todos nós que banalizarmos cada morte evitável a pretexto de falsa restrição fiscal (aliás, a quem aproveita um teto alegadamente imutável, quando ele já foi alterado pela Emenda 102/2019?).
Precisamos ampliar o foco das regras fiscais, até mesmo alargando temporalmente o alcance do regime jurídico excepcional da calamidade pública, tanto quanto devemos impugnar toda sorte de patrimonialismos político-econômicos. Assumir um plano bienal nesse sentido é esforço necessário de construção de roteiro civilizatório do qual não podemos abdicar para não banalizarmos nenhuma morte a mais.