Crise do coronavírus mostra que caminho socialista é melhor do que o capitalista, diz cônsul de Cuba

Pedro Monzón lembra que saúde não é mercadoria

Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena

“A crise do Covid-19 é realmente um momento muito importante no desenvolvimento da humanidade. Muitos países estão pensando agora na importância da solidariedade, na importância de que os serviços de saúde sejam gratuitos e que a educação tenha também esse caráter. Estão começando a se convencer de que o mercado não pode governar tudo. É preciso haver políticas que estejam a serviço da humanidade.”

É a reflexão que faz o cônsul-geral de Cuba em São Paulo, Pedro Monzón, em entrevista ao TUTAMÉIA em que analisa a situação mundial frente aos desafios econômicos e humanistas impostos pela pandemia.

Para ele, o mundo não será o mesmo depois da pandemia, ainda que os mecanismos econômicos do capitalismo continuem presentes: “Tomara que não renasçam com força depois dessa crise; tomara que não seja possível restabelecer os sistemas tais como eram antes dessa crise. De qualquer maneira, mesmo que isso ocorra, a experiência trágica dessa pandemia não será esquecida. Eu creio que vai ter influência no comportamento da sociedade no futuro.”

Para ele, “a pandemia está indicando que o caminho socialista é melhor do que o capitalista. O socialismo, que não ignora o mercado, mas não se subordina ao mercado, é melhor que o capitalismo, que subordina tudo ao mercado, onde todos os serviços públicos praticamente não existem pois tudo se privatiza”.

Bacharel em Ciências Políticas, mestre em Estudos Orientais, professor da Universidade de Havana e do Instituto Superior de Relações Internacionais de Cuba, Monzón diz: “Antes mesmo de começar a crise, o capitalismo e imperialismo no mundo estavam submetidos a desafios importantes, como o surgimento da China como importante potência mundial, já a segunda economia do mundo, ameaçando ser a primeira, a importância política da Rússia, a importância política de outros países –entre os quais se incluía, antes, o Brasil–, a importância da existência da países socialistas como o Vietnã e Cuba, ou seja, a importância de haver um mundo diverso, no qual o imperialismo não consegue, de maneira nenhuma, ter o controle total.”

No entender dele, “o imperialismo já vinha perdendo terreno. Não tinha o controle absoluto do planeta, não pode ter o controle absoluto. A reação de Trump, desesperada e agressiva, não objetiva mais do que tentar evitar essa tendência no mundo, que se denomina multipolarização ou multilateralismo. O mundo deve se desenvolver a partir de intensas relações multilaterais, diálogo, debates, discussões, e não sob o governo de uma potência”.

Monzón diz: “Os Estados Unidos vêm tentando evitar que essa tendência se estabeleça definitivamente e seguem pensando e tentando se impor como os donos do mundo, considerando que o mundo é uma aldeia e que eles são os chefes dessa aldeia. A proposta que fizeram agora em relação à Venezuela demonstram que eles se veem como país que governa o mundo. Os Estados Unidos precisam se acostumar com a ideia de que não podem controlar o planeta. E quando terminar a pandemia do Covid, esse processo de emergência de outros países vai continuar”.

“A China já demonstrou liderança moral, liderança humana. Os Estados Unidos estão trabalhando para resolver individualmente, egoisticamente, seus interesses. A Rússia também está demonstrando, politicamente, liderança. Os Estados Unidos estão perdendo a liderança econômica, estratégica e moral neste planeta”, afirma o cônsul geral de Cuba em São Paulo.

Na conversa com TUTAMÉIA, ele falou também sobre o impacto da pandemia em seu país, denunciou o bloqueio econômico reforçado por Trump, destacou o papel dos médicos cubanos no combate ao coronavírus em âmbito mundial, reafirmou o desejo de Cuba de ter boas relações com o Brasil e denunciou as ameaças de invasão à Venezuela feitas por Trump.

Veja a seguir alguns trechos da fala de Pedro Monzón.

SOBRE O BLOQUEIO ECONÔMICO

O bloqueio é tão antigo quanto a própria revolução cubana. Surgiu como resposta à revolução cubana, como resposta ao desejo de Cuba de ser independente. Os Estados Unidos não podiam aceitar aquilo, como hoje não podem aceitar a Venezuela, a Nicarágua e nenhum país que queira ser independente. Por isso decretaram o bloqueio, com a ideia de sublevar a população, gerar inconformismo, doenças, fome, desespero, para que o povo se rebelasse contra o governo e acabasse com ele, destronasse o governo revolucionário.

Isso não deu resultado por uma série de razões, mas essencialmente porque somos um povo unido, um povo culto, que teve sempre lideranças, direções de muita estatura, entre as quais se distingue o comandante Fidel Castro. O bloqueio não conseguiu nos dominar, não conseguiu que nos rendêssemos durante tantos anos, apesar de termos passado muito trabalho, de ter enfrentado muitas dificuldades.

É preciso lembrar que o bloqueio não afeta somente as relações bilaterais entre Cuba e os Estados Unidos, mas afeta as relações entre Cuba e o mundo inteiro. O bloqueio pretende isolar completamente Cuba do mundo inteiro. E é muito efetivo no terreno econômico, porque muitas empresas que têm interesses nos Estados Unidos não querer dar margem para que sofram punições, para que tenham conflitos com os Estados Unidos, que fazem uma perseguição implacável.

No governo Trump, isso se agudizou. Trump tomou medidas inéditas, e talvez seja hoje o momento mais difícil do bloqueio contra Cuba, pois estão bloqueando a entrada de petróleo, de gás, prejudicando o turismo. Também no terreno de medicamentos e equipamentos médicos, agora, como o covid, o bloqueio se manteve intacto. Medicamentos necessários, e que não temos, seguem bloqueados, assim como equipamentos médicos fundamentais na alta medicina. Há pouco tempo, foi bloqueada a chegada de um avião da China que trazia suprimentos médicos, que tiveram de chegar de outra forma.

O bloqueio é implacável. O bloqueio é tão duro que há reclamações das Nações Unidas e de muitos países, de partidos políticos e organizações para que se levantem o bloqueio contra Cuba e todos os bloqueios durante a pandemia. Os Estados Unidos não atenderam a um só pedido. Ao contrário, apertam o bloqueio. Essa política não tem qualificação. É desumana, covarde, abusiva, arrogante.

VENEZUELA

A ameaça armada de Trump contra a Venezuela é algo insólito, absurdo. Não tem nenhum sentido. Este é um momento em que se impõe a solidariedade. Mais que a solidariedade –porque alguns podem pensar que ser solidário tem implicações políticas, que é uma eterna ideia da esquerda–, a racionalidade. Essa política dos Estados Unidos não é racional. É uma ideia bestial, que vai contra os próprios interesses do povo dos Estados Unidos.

Se eles começarem uma guerra, e nada pode ser descartado, pode se esperar tudo de um país tão arrogante como os Estados Unidos, vão cometer uma grande loucura.

Uma coisa é fazer ameaças, numa tentativa para ver se, de alguma maneira, conseguem alterar a situação política na Venezuela. Outra coisa é invadir. Invadir suporia incendiar toda a América Latina, possivelmente todo o hemisfério sul. É impossível evitar que muitos outros países não caiam em uma situação de guerra.

A Venezuela é um país que está muito preparado, muito bem organizado, tem muitas armas, está pronto para o combate. O povo inteiro, ou uma parte importante do povo vai tomar as armas e vai defender seu país.

O fato de que Maduro e seu governo tenham resistido aos embates, às agressões dos Estados Unidos durante todos esses anos é uma demonstração de que o governo legítimo do companheiro Maduro tem um bom respaldo de uma parte importante do povo e do Exército. Se assim não fosse, já teria sido varrido do mapa.

Isso não aconteceu, o que demonstra que não é fácil enfrentar uma guerra contra Maduro. E as ameaças também não vão surtir efeito, porque o governo seguirá mantendo suas posições. Apesar do bloqueio promovido pelos Estados Unidos e por outros países –uma parte importante da crise econômica na Venezuela é devida a esse bloqueio.

A Venezuela vai aguentar, vai suportar. E uma guerra na região, ainda mais neste momento de pandemia, vai ser desastrosa, simplesmente desastrosa. Os próprios Estados Unidos vão pagar caro por uma aventura desse tipo.

A PANDEMIA EM CUBA E OS TRATAMENTOS CONTRA O COVID 19

Estamos fazendo o que deve ser feito, o que foi indicado pela OMS e pelo governo de Cuba. Estamos trabalhando desde casa. Expor-se a uma contaminação neste momento não tem nada de heroico, heroicos são os médicos de Cuba que estão trabalhando para colaborar com a saúde de muitos países no mundo. Para nós outros, cidadãos comuns, sair de casa não é nada heroico, é simplesmente uma estupidez.

CUBA tem um sistema muito sofisticado e muito maduro para proteção contra desastres naturais, como furacões e ciclones. Eles não têm nada a ver com uma pandemia, mas os mecanismos utilizados para mobilizar a população e as instituições são os mesmos. Em poucas horas, conseguimos mobilizar todo o país.

O coronavírus é algo excepcional, claro, mas os mecanismos que estamos utilizando são os de sempre: mobilizar o país, e todo mundo está trabalhando em função de nos proteger contra essa pandemia.

Temos um controle forte de tudo o que está acontecendo. Temos hospitais, clínicas, em sistema de médicos de família em todo o país. Criamos instalações especiais para atender aos infectados. E 30 mil estudantes de medicina e trabalhadores sociais estão fazendo pesquisa casa por casa. Não vamos esperar que a infecção apareça; vamos buscar a doença onde quer que esteja.

Neste momento, temos 396 casos positivos; 27 já se recuperam e 11 morreram –todos eles, ou quase todos, com doenças pré-existentes, problemas cardíacos, diabetes ou problema de pressão.

Cuba tem um sistema de atenção à saúde muito completo, conhecido em todo o mundo. Atendemos sempre a toda a população: não é um sistema de elites, como em outros países. Em Cuba, o sistema de saúde está desenhado para atender a todo o povo de maneira gratuita.

Isso é muito importante. Por isso, para nós, enfrentar essa epidemia talvez seja mais fácil do que para outros países.

Além disso, Cuba desenvolveu, muito vinculado ao sistema de saúde, um setor farmacêutico e biotecnológico que nos permitiu produzir medicamentos fundamentais para o controle de muitas enfermidades, em particular também para o coronavírus.

Claro que ainda há muito o que descobrir sobre esse vírus e os tratamentos, mas Cuba tem um produto, que foi aplicado na China, e agora também em outros países, que se chama interferon alfa. O que faz é elevar a capacidade do sistema imunológico do ser humano e, dessa maneira, permitir suportar melhor a incidência do vírus.

Estamos usando o interferon junto com outros medicamentos. Também estamos trabalhando com gota homeopáticas, que estão sendo utilizadas para aumentar a imunidade das pessoas saudáveis. A homeopatia em Cuba é bastante desenvolvida, assim como a medicina natural. Na China, a medicina natural também desempenhou um papel importante no controle da epidemia.

SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL

A política exterior de Cuba é eminentemente solidária, por princípio. Desde o princípio da revolução, devem haver passado pelo mundo uns 400 mil médicos cubanos em mais de setenta países –em geral, países pobres. Todos conhecem o papel de Cuba no controle do ebola.

Receber o navio Breamar foi para nós algo normal. Seríamos incapazes de abandonar seres humanos naquelas condições. Também aterrissou um avião e fizemos a mesma coisa.

Médicos estão correndo risco, mas sabem disso. São médicos que, além de grande experiência profissional e alto conhecimento técnico, estão baseados em valores, em princípios. Não respondem ao interesse do mercado.

A saúde não pode estar subordinada ao mercado. A saúde do ser humano não é uma mercadoria, como a educação tampouco pode estar subordinada ao mercado. Não são mercadorias. Esse é um princípio básico do desenvolvimento de Cuba durante mais de meio século. São quase 60 anos praticando a mesma política.

Em contraposição, os Estados Unidos estão fazendo pirataria, o que demonstra seu egoísmo, que é a conduta moral desse país, pensando apenas em seus interesses. Em primeiro lugar, Trump pensa em seus interesses pessoais e familiares; em segundo lugar, nos interesses da oligarquia que o respalda; e por último pensa nos interesses do povo, e provavelmente não ocupa nenhum lugar o povo pobre dos Estados Unidos. É um país muito egoísta, tem uma política muito egoísta, muito individualista.

A China demonstrou outra coisa. Controlou a epidemia, teve um sistema tremendo de atuação, de controle, de mobilização de recursos. Cuba, além dos 48 mil médicos que temos nesse momento em 66 países, trabalhando nesses países, já enviamos 15 brigadas com mais de seiscentos médicos preparados para o trabalho contra desastres.

Os Estados Unidos atuam como piratas, tratando de obter para si recursos que não lhe pertencem, enquanto a China está ajudando o mundo, a Rússia também está ajudando, e Cuba, uma ilhazinha tão pequena no Cariba, está como sempre dando um passo à frente na solidariedade internacional, o que corresponde, como já disse,  a uma política que já tem sessenta anos.

MÉDICOS CUBANOS NO BRASIL E NO MUNDO

Os médicos cubanos foram recebidos na Itália com os braços abertos. Nosso pequeno país está ajudando a esse país do primeiro mundo.

Já se falou que os médicos cubanos eram terroristas, escravos, falaram barbaridades, bestialidades contra os médicos cubanos.

Quem fala assim é porque não consegue entender que os médicos cubanos trabalham sobretudo pelo interesse em ajudar o próximo, em ajudar a humanidade. Estão focados nisso, não no mercado, não em ter um carrão ou uma mansão com ar condicionado ou quais outros bens materiais. Estão treinados para entregar tudo o que podem em benefício do ser humano. Já estive com muitas brigadas cubanas no exterior e conheço a conduta desses médicos. Desinteressada e completamente nobre, dedicada a atender os cidadãos 24 horas por dia.

Os médicos cubanos se apoiam em valores, na consciência humana.

Eles saíram do Brasil porque disseram, durante a campanha reacionária, muitas coisas agressivas contra eles, que não eram profissionais, que eram escravos. Depois das eleições essas afirmações foram repetidas, agressivas, mentirosas.

Teria que mudar muito a política do Brasil para que se pudesse chegar a um acordo com Cuba. Se a política do Brasil mudasse radicalmente e pudesse haver negociações no terreno da cooperação médica, Cuba sem dúvida daria um passo à frente, mas com todas as garantias necessárias.

DEMOCRACIA CUBANA

Cuba é uma democracia legítima.

Claro que há conceitos diferentes de democracia. Há democracias onde quem governa é o dinheiro; há vários partidos, e os candidatos que têm sustentação monetária podem promover sua imagem e sair presidente ou conquistar algum cargo, de maneira que se estabelece uma relação direta entre ter o dinheiro e o poder político. Portanto, o governo é do dinheiro.

Isso não é uma democracia. Democracia significa governo do povo, não o governo do dinheiro.

Em Cuba, quem governa é o povo. Quem elege é o povo. Os dirigentes chegam ao poder porque têm o respaldo do povo.

SOCIALISMO VERSUS CAPITALISMO

A lição do Covid, a lição da pandemia é uma lição que nos indica que deveríamos considerar seriamente a opção socialista. Essa é uma realidade. Claro que a opção socialista pode ter diferentes características, de acordo com o país e com cada povo.

Cuba tem o seu socialismo, China tem o seu, assim como o Vietnã. Há bases comuns, mas cada um tem suas especificidades.

Sem dúvida, a pandemia está indicando que o caminho socialista é melhor do que o capitalista. O socialismo, que não ignora o mercado, mas não se subordina ao mercado, é melhor que o capitalismo, que subordina tudo ao mercado, onde todos os serviços públicos praticamente não existem pois tudo se privatiza.

Tomara que cresça essa consciência. Tomara que os Estados Unidos aprendam. Eu tenho minhas dúvidas.

Tomara também que a pandemia faça com que os norte-americanos reflitam, e não elejam Trump novamente. Mas pode acontecer que Trump seja reeleito, porque a política é muito complexa, e esse povo tem sido muito enganado durante muito tempo.