por Craig Murray | Tradução de Ruben Rosenthal*
Dia 25. Nesta tarde, Baltasar Garzon, advogado espanhol de Julian, deixou a Corte para retornar a Madrid. Na saída, ele naturalmente se deteve para apertar a mão de seu cliente, colocando seus dedos através da fina fenda na cela de vidro à prova de bala. Assange ficou meio de pé, para apertar a mão de seu advogado. Dois guardas de segurança que estavam dentro da cela imediatamente puseram suas mãos em Julian, forçando-o a sentar, e impedindo o aperto de mão.
Isto não foi, de forma alguma, o pior que ocorreu no decorrer do dia, mas é uma imagem impressionante da força bruta sem sentido, que é usada continuamente contra um homem acusado de publicar documentos. Que um homem não possa sequer apertar a mão de seu advogado para se despedir, é contra o espírito de membros do judiciário que pretendem assumir que a lei é praticada. Considero aquele momento surpreendente, como representativo dos eventos do dia na Corte.
O segundo dia de procedimentos começou com uma declaração de Edward Fitzgerald, advogado de defesa de Assange, que nos sacudiu rudemente. Ele declarou que no dia anterior, o primeiro do julgamento, Julian tinha sido despido completamente por duas vezes, e revistado enquanto nu, por 11 vezes algemado, e por 5 vezes trancafiado em diferentes celas.
Além disto tudo, todos os seus documentos referentes à Corte foram tomados dele pelas autoridades da prisão, incluindo as comunicações permitidas entre ele e seus advogados. Assange foi deixado sem condições de se preparar para a participação nos procedimentos de hoje.
A magistrada Baraitser olhou para Fitzgerald, e declarou, com uma voz que sugeria menosprezo, que ele já havia levantado estas questões anteriormente, e ela replicado não ter autoridade sobre a prisão do Estado. E que ele (Fitzgerald) deveria levar o caso às autoridades da prisão.
Fitzgerald permaneceu de pé, o que deu origem a uma nítida carranca em Baraitser, e respondeu que certamente iria fazer novamente aquilo, mas que este comportamento repetido das autoridades da prisão prejudicavam a capacidade da defesa, de se preparar (adequadamente). Ele acrescentou que independente da jurisdição, em sua experiência, era prática habitual dos magistrados e juízes de encaminhar comentários e solicitações aos oficiais do serviço prisional, quando a condução de um julgamento estivesse sendo afetada, e que estes normalmente escutavam com simpatia aos magistrados.
Baraitser negou de imediato o conhecimento de tal prática, e declarou que Fitzgerald deveria apresentar a ela argumentos por escrito, estabelecendo o caso legal de jurisdição sobre as condições em uma prisão. Isto foi demais até mesmo para o advogado de acusação, James Lewis, que se levantou para dizer que a Promotoria também queria que Assange tivesse direito a uma audiência justa, e que ele podia confirmar que a Defesa estava realmente sugerindo uma prática normal.
Mesmo assim, Baraitser ainda se recusou a intervir junto às autoridades prisionais. Ela declarou que se as condições na prisão eram tão ruins, ao ponto de tornar impossível uma audiência justa, a defesa deveria trazer uma moção para que as acusações fossem retiradas com base nestas alegações. Ou então, deixar isto de lado.
Tanto a Acusação como a Defesa pareceram surpresas com a pretensão de Baraitser, de desconhecer o que eles se referiram como sendo uma prática comum (para o magistrado de uma corte). Lewis pode ter ficado genuinamente preocupado com a descrição do tratamento de Assange na prisão no dia anterior. Ou ele pode ter escutado uma sirene de aviso, alertando da possibilidade de “anulação do julgamento”.
Mas o resultado final foi que Baraitser não fará nada para evitar que Julian seja submetido a abuso físico e mental na prisão, nem tentar dar a ele a capacidade de participar de sua (própria) defesa. A única explicação plausível que me ocorreu é que Baraitser foi avisada que este continuado mal tratamento e confisco de documentos foi autorizado por alguém do alto escalão do governo.
Um pequeno incidente que devo mencionar: tendo ficado na fila desde cedo, eu já estava na última fila, antes da entrada na galeria pública, quando foi chamado o nome de Kristin Hrnafsson, editor of Wikileaks, com quem eu estava falando naquele momento. Kristin se identificou, e foi informado pelo oficial da Corte que seu acesso à galeria do público fora barrado.
Eu estava com Kristin durante todos os procedimentos do dia anterior, e ele não fizera absolutamente nada demais. Ele é na verdade um tranqüilo cavalheiro. Quando ele foi chamado, seu nome e emprego foram mencionados. Portanto estavam especificamente banindo do julgamento, o editor do Wikileaks. Kristin perguntou o motivo, e recebeu em resposta que havia sido uma decisão da Corte.
Neste momento, John Shipton, pai de Julian, anunciou que os membros da família iriam todos sair também, e fizeram isto, deixando o prédio. Eles e outros então começaram a tuitar a notícia da saída da família. Isto pareceu causar alguma consternação entre oficiais da Corte, e 15 minutos depois, Kristin foi readmitido.
Ainda não temos idéia do que estava por detrás disto. Posteriormente os jornalistas começaram a ser informados pelos oficiais de que se tratara simplesmente de um caso de Kristin não respeitar a fila. Isto, no entanto, parece improvável, já que Kristin fora removido por funcionários que o chamaram pelo nome e título, e que não mencionaram que ele havia furado a fila.
Nada disto acima se relaciona com o caso oficial. Mostra mais da natureza draconiana do show político que é o julgamento, do que da charada que está sendo efetuada na corte. Houve momentos no dia de hoje, em que fui atraído pelo processo, e alcancei a imersão imaginária, como a que você pode entrar (em uma peça) no teatro. E cheguei a pensar: “Uau, este caso está indo bem para Assange”.
Então ocorre algum evento, como um destes contados acima, e um frio toma conta do coração, e você se lembra que não existe aqui um júri para ser convencido. Eu simplesmente não acredito que qualquer coisa dita ou provada no recinto desta Corte poderá ter algum impacto no veredito final.
Vamos então aos procedimentos (de hoje) no caso. Pela Defesa, Mark Summers declarou que as acusações vindas dos Estados Unidos eram inteiramente dependentes de três alegadas acusações do comportamento de Assange:
1. Que Assange ajudou Manning a decodificar uma chave para acessar material classificado. Summers declarou que esta era provavelmente uma alegação falsa, a partir das evidências da corte marcial de Manning.
2. Que Assange solicitou material de Manning. Summers declarou que isto estava provavelmente errado, a partir de informação disponibilizada ao público.
3. Que Assange, conscientemente, colocou vidas em risco. Summers declarou que isto estava provavelmente errado, tanto por informação disponibilizada ao público, como pelo envolvimento específico dos Estados Unidos.
Em resumo, Summers declarou que o governo norte-americano sabia que as alegações que estava fazendo eram falsas, e pode ser demonstrado que elas foram feitas de má fé. Isto consistiu, portanto, de abuso de processo e deveria conduzir ao encerramento da requisição de extradição. Ele descreveu as três acusações acima como “lixo, lixo e lixo”.
Summers então repassou os fatos do caso. Ele disse que as acusações dos EUA dividem o material vazado pelo Wikileaks em três categorias:
a. mensagens diplomáticas
b. resumos de avaliação de detidos em Guantánamo
c. regras de engajamento na Guerra do Iraque
d. registros de guerra do Afeganistão e Iraque
Summers descreveu, metodicamente, as quatro acusações de vazamento a, b, c, d, relacionando cada uma, por vez, aos três comportamentos alegados 1, 2 e 3. Desta forma fazendo doze contagens de explicação, ao todo. Esta abrangente descrição levou cerca de quatro horas, e eu não tentarei apresentar tudo aqui.
Prefiro apresentar os pontos principais, mas irei me reportar, ocasionalmente, ao alegado número de comportamento e/ou alegada letra de material vazado. Espero que o leitor consiga acompanhar, pois me levou tempo para preparar desta forma.
Em relação a 1, Summers em grande extensão demonstrou conclusivamente que Manning tinha acesso a cada material vazado, a, b, c, d, fornecidos ao Wikileaks, sem necessidade de qualquer código de acesso da parte de Assange. E que Manning tinha este acesso bem antes de contatar Assange.
E Manning não precisava de código para esconder sua identidade, como a Promotoria alegou. A base de dados que um analista de inteligência como Manning podia acessar, bem como milhares de outros analistas, não requeria nome de usuário ou senha de acesso, em um computador de base militar. Summers citou o testemunho de diversos oficiais da corte marcial de Manning, para confirmar isto.
E nem quebrar o código de administração do sistema daria a Manning acesso a qualquer material adicional em alguma base de dados classificados. Summers citou evidência da corte marcial de Manning, onde foi aceito que a razão para Manning querer entrar na administração dos sistemas, foi para permitir que soldados pusessem seus video games e filmes nos laptops do governo, o que de fato aconteceu com frequência.
A magistrada Baraitser por duas vezes fez interrupções importantes. Ela observou que se Chelsea Manning desconhecia que não poderia ser localizada como o usuário que baixou as bases de dados, ela pode ter procurado auxílio de Assange para craquear o código, e esconder sua identidade. E Assange dar este auxílio ainda seria cometer um ato criminoso. (Obs.: na ocasião dos vazamentos, Chelsea ainda tinha a identidade masculina de Bradley Edward).
Summers apontou que Manning sabia que não precisava de um nome de usuário e senha, porque acessava estes materiais sem precisar destes. Baraitser replicou que isto não constituía uma prova de que ela sabia que não podia ser identificada. Summers respondeu, com lógica, que não fazia sentido argumentar que Manning estava procurando um código para esconder sua ID e senha, se não era requerido ID de usuário e senha (para acessar o sistema). Baraitser replicou novamente que ele não podia provar isto. Neste ponto Summers ficou algo irritado e impaciente com Baraitser, e novamente apresentou a evidência da corte marcial.
Baraitser também levantou o ponto que, mesmo que Assange estivesse ajudando Manning a craquear um código administrativo, e mesmo se isto não possibilitasse a Manning acessar quaisquer outras bases de dados, isto ainda consistiu de uso não autorizado, e constitui crime, ajudar e estimular uso indevido do computador (de uma base militar), mesmo se for para um propósito inocente.
Após uma breve intervalo, Baraitser retornou com uma surpresinha. Ela disse a Summers que ele tinha apresentado como fatos, as conclusões da corte marcial de Chelsea Manning. Mas que ela não concordava que sua Corte devesse aceitar como fatos, evidências apresentadas em uma corte marcial norte-americana, mesmo se aceitas, ou não contestadas lá, ou ainda evidências da promotoria.
Summers replicou que evidências aceitas, ou evidências da promotoria em uma corte marcial norte americana, foram claramente aceitas como fatos pelo governo dos EUA, e o que estava em questão no momento, era se o governo norte-americano estava acusando, contrariamente aos fatos que ele (governo) tinha conhecimento. Baraitser disse que retornaria ao seu ponto, uma vez que as testemunhas fossem ouvidas.
Baraitser não estava fazendo qualquer tentativa de esconder hostilidade ao argumento da Defesa, e pareceu irritada que ela tivesse a ousadia de levantá-lo. Isto eclodiu quando se discutiu c, as regras de engajamento na guerra do Iraque. Summers argumentou que este material não havia sido solicitado a Manning, e sim, fornecido por ele, em um arquivo acompanhando o vídeo “Collateral Murder1”, que mostrou o assassinato de jornalistas da Reuters e de crianças.
A intenção de Manning, conforme declarou sua corte marcial, era mostrar que as ações (mostradas) em Collateral Murder quebravam as regras de engajamento, mesmo que o Departamento de Defesa tenha afirmado de forma contrária. Summers declarou que ao não incluir isto no contexto, a solicitação de extradição pelos EUA era deliberadamente enganosa, pois nem mesmo mencionara o vídeo.
Neste ponto, Baraitser não conseguia mais esconder seu menosprezo (….) Segue-se uma citação literal por parte da magistrada: Senhor Summers, está sugerindo que as autoridades e o governo deveriam ter que fornecer o contexto para as acusações?
Um imperturbável Summers replicou afirmativamente, e então prosseguiu para mostrar onde que a Suprema Corte (do reino Unido) havia dito isto, em outros casos de extradição. Baraitser estava revelando sua total confusão de que ninguém poderia argumentar haver uma distinção significativa entre Governo e Deus.
O grosso do argumento de Summers foi refutar o comportamento 3, colocar vidas em risco. Esta acusação foi somente relacionada a: a, mensagens diplomáticas, e d, registros de guerra do Afeganistão e Iraque. Summers descreveu amplamente os esforços do Wikileaks com parceiros da mídia, por mais de um ano, para estabelecer uma campanha massiva de edição das comunicações (vazadas).
Ele explicou que transmissões não-editadas somente se tornaram disponíveis após Luke Harding e David Leigh, do The Guardian, publicarem a senha para o cache, como título do capítulo 11 do livro Wikileaks, publicado por eles, em fevereiro de 2011.
Ninguém havia colocado 2 e 2 juntos, em relação a esta senha, até que a publicação alemã Die Freitag fez isto, e anunciou, em agosto de 2011, que estava de posse das comunicações não editadas.
Summers então apresentou os argumentos mais fortes do dia: O governo norte-americano havia participado ativamente do exercício de edição das transmissões, e portanto sabia que não eram verdadeiras as alegações de publicação imprudente.
Uma vez que Die Freitag anunciou que possuía matérias (vazadas) não editadas, Julian Assange e Sara Harrison imediatamente telefonaram para a Casa Branca, Departamento de Estado e Embaixada dos EUA, para avisá-los que fontes podiam ser colocadas em risco.
Summers leu das transcrições telefônicas de conversas em que Assange e Harrison tentaram convencer oficiais norte-americanos, da urgência de providenciar procedimentos de proteção às fontes, e expressaram perplexidade, conforme os oficiais bloquearam o assunto. Esta evidência solapou completamente o caso do governo norte-americano, e provou a má fé em omitir fato de tal extrema relevância. Foi um momento muito marcante.
Com relação ao mesmo comportamento 3, colocar vidas em risco, em associação com d, materiais vazados de registros de guerra do Afeganistão e Iraque, Summers mostrou que a corte marcial de Manning aceitara que estes vazamentos não continham nomes de fontes em perigo, e mostravam que, de qualquer forma, Wikileaks tinha ativado um exercício de edição, como um enfoque de dupla precaução. Houve muito mais da parte da defesa.
Para a Acusação, James Lewis indicou que iria responder depois, mas desejava expressar que a acusação não aceita evidências da corte marcial como fatos. Particularmente, não aceita qualquer testemunho de Chelsea Manning, que atendia a seus próprios interesses, e a quem retratou como um criminoso condenado, clamando falsamente motivação nobre.
A Acusação, no geral, rejeitou qualquer noção de que a Corte deveria considerar qualquer dos fatos como verdade, ou (mesmo) de outra forma. Isto só poderia ser decidido em um julgamento nos Estados Unidos.
Então, para encerrar os procedimentos (do dia), Baraitser despejou uma tremendo petardo. Ela declarou que embora o Artigo 4.1 do Tratado de Extradição Reino Unido-Estados Unidos proíba extradições políticas, isto consta apenas deste Tratado. Esta isenção não consta da Legislação de Extradição do Reino Unido. Em face disto a extradição política não é ilegal no país, pois o Tratado não tem validade na Corte. Ela convidou a Defesa a tratar deste argumento pela manhã do dia seguinte.
Notas do tradutor:
1. O vídeo Collateral Murder, em sua versão não editada, apresentada pelo The New York Times, pode ser aqui acessado.
*Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.