Não é somente a cúpula do Partido Democrata que torce o nariz para o senador de Vermont. Boa parte da mídia corporativa também empreende uma batalha contra sua postulação à presidência dos Estados Unidos.
Após a vitória de Bernie Sanders na primária do Partido Democrata realizada em New Hampshire, algumas manchetes da mídia comercial estadunidense chamaram a atenção nas redes sociais. Isso porque muitos veículos destacaram mais o segundo lugar alcançado pelo ex-prefeito de South Belt, Pete Buttigieg, e o terceiro lugar da senadora de Massachusetts Amy Kloobuchar do que o triunfo do senador de Vermont.
O fato despertou interesse do editor-chefe do site FiveThirtyEight, Nate Silver. “Pessoalmente, eu diria que o candidato que venceu 1,5 estado (Sanders) é o favorito em relação ao candidato que venceu 0,5 estado (Buttigieg), especialmente se esse candidato também estiver liderando pesquisas nacionais”, disse, em referência a uma postagem de um jornalista do The New York Times que miminizava o triunfo de Sanders no estado.
O comportamento da mídia corporativa é tão acintoso que passou a ser tema de seus próprios articulistas. Margaret Sullivan, no Washington Post, mostra as sucessivas “paixões” midiáticas, às vezes fugazes, durante o processo de escolha dos democratas. Começou em 2019 com Beto O’Rourke, passando por Kamala Harris, brevemente, e Elizabeth Warren por um período de aproximadamente um mês. O coração dos veículos foi arrebatado mais tarde pelo “sólido” ex-vice-presidente Joe Biden até surgir um encantamento por Pete Buttigieg, que seria o nome capaz de salvar o centrismo da legenda. Em New Hampshire, ele teve que dividir espaço com Amy Klobuchar.
Nesta trajetória, o senador de Vermont nunca teve a atenção ou o afeto positivo por parte dos media. “O subtexto por trás de grande parte do desdém é um sentimento profundamente arraigado de que Sanders, se indicado, teria poucas chances de vencer a eleição geral. Mas também é em parte – e mais insidiosamente – pelo fato de que muitos jornalistas não se identificam facilmente com Sanders da mesma maneira que fazem com, digamos, Warren ou O’Rourke ou Buttigieg”, diz o texto. A estranheza com a candidatura teria um fundo ideológico. Ou mesmo de classe.
O grupo estadunidense de observação e análise de mídia Fair, que defende uma maior diversidade na área e examina as práticas contrárias ao interesse público, também destacou o comportamento dos veículos, ironizando que, no caso de New Hampshire, “perder é vencer e vencer é perder”.
Fair ressalta que a terceira colocada, Amy Klobuschar, recebeu cobertura positiva da CNN, Bloomberg, CBS Minesotta e do Christian Science Monitor. Sincera, a rede de rádio NPR foi direta ao dizer que o destaque da eleição no estado havia sido Klobuchar pelo fato de o Partido Democrata estar “em busca da alternativa a Sanders”.
A sanha em buscar um “anti-Sanders”, evidente na cúpula da legenda, se reproduz de forma cândida no mainstream midiático. A Reuters fez sua cobertura da primária ao vivo com a legenda “Pete Buttigieg termina em segundo na primária de New Hampshire, Amy Klobuchar em terceiro”.
Má vontade que não é novidade
A postura dos grandes veículos de comunicação dos Estados Unidos em relação a Sanders não é exatamente nova. Em 2016, quando ele concorria com a ex-secretária de Estado Hillary Clinton pela postulação da legenda, o bombardeio também era desmedido.
À época, Fair chegou a destacar o que considerou um recorde. O Washington Post conseguiu publicar, em 16 horas, 16 manchetes negativas para o senador de Vermont entre 6 e 7 de março daquele ano. O observatório alertava que, embora as manchetes não refletiam necessariamente todas as nuances dos textos, alguns mais equilibrados do que os títulos sugeriam, “apenas 40% do público lê além das manchetes”. A tática de manipulação por meio das chamadas, aliás, não é exclusividade da mídia estadunidense, como se verifica cotidianamente no Brasil.
A organização lembra, no caso do Washington Post, um ponto central para se entender um pouco dos interesses por trás de uma cobertura tão negativa em relação a um candidato. O jornal foi vendido em 2013 ao CEO da Amazon, Jeff Bezos, que embora se apresente como adversário ideológico do Partido Democrata, por ser “libertário”, mantinha laços amistosos com o governo Obama, firme apoiador da candidatura de Hillary então. À época, a Amazon tinha mais de US$ 600 milhões em contratos com a Agência Central de Inteligência do país, a CIA.
O embate entre Sanders e a Amazon segue até hoje. As críticas do parlamentar se dão especialmente por conta da exploração da mão de obra por parte da corporação, com denúncias reiteradas de péssimas condições de trabalho e salários baixos. Em 2018, ele apresentou um projeto de lei no Senado apelidado de Stop Bezos – referência ao fundador da Amazon. O objetivo do projeto de lei era tributar empresas com 500 ou mais funcionários que ganham baixos salários e recebem benefícios federais.
“Acho justo dizer que o povo americano está cansado de subsidiar as pessoas mais ricas do país, que pagam salários tão baixos às pessoas que elas não conseguem sobreviver”, disse Sanders na coletiva em que apresentou a proposta. Em seguida, a Amazon anunciou o aumento do piso mínimo pago a seus empregados para US$ 15 a hora.
Em 7 de fevereiro, o presidenciável, junto com outra candidata, Elizabeth Warren, e mais 13 senadores divulgaram uma carta aberta a Bezos na qual manifestam “sérias preocupações” sobre a segurança dos funcionários, pedindo “medidas imediatas” para protegê-los de lesões nos locais de trabalho.
Se a luta de Sanders junto aos funcionários da empresa não tem rendido grandes manchetes na mídia corporativa, reflete em meio aos trabalhadores. Com uma campanha baseada em doações individuais, ele recebeu mais de US$ 1 milhão arrecadados junto a funcionários das cinco maiores empresas de tecnologia estadunidenses: Alphabet, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft. Em comparação com os outros candidatos, conseguiu significativamente mais apoio por parte de trabalhadores e motoristas do armazém e do centro de distribuição da Amazon.
O caso MSNBC
Um dos casos exemplares do tratamento dado pela mídia tradicional do país ao senador se popularizou por meio de um meme. Um repórter da MSNBC, emissora de TV a cabo, entrevista uma eleitora que afirma ter decidido votar em Bernie Sanders por conta da “cobertura cínica” feita pelo canal. Ela diz que acha absurdo o noticiário dizer que ele teria perdido metade dos votos em relação a 2016 em New Hampshire quando, na disputa atual, há vários candidatos concorrendo, e anteriormente eram só dois, o senador e Hillary Clinton.
A emissora, antes tida como “liberal” (o que, no caso dos Estados Unidos, significa estar relacionada à esquerda), hoje está mais no centro do espectro político e opta por uma cobertura amplamente negativa da campanha de Sanders. Levantamento feito pelo site In These Times, com base na cobertura da emissora em agosto e setembro de 2019 dos três principais candidatos democratas até ali, Sanders, Joe Biden e Elizabeth Warren, mostrava a diferença de tratamento.
Neste período, seis programas do canal se concentraram principalmente em Biden, e Sanders recebeu não apenas a menor cobertura, menos de um terço da conferida ao ex-vice-presidente, como também a mais negativa. As matérias em geral analisavam resultados das pesquisas e a chamada elegibilidade dos candidatos.
Pode parecer secundário que uma emissora de TV a cabo assuma esta postura contra um candidato, mas, quando se trata de política, tais canais estão longe de ser irrelevantes. O Norman Lear Center, da Universidade do Sul da Califórnia, acompanha a forma com que os programas de televisão favoritos dos estadunidenses se conectam às suas atitudes relacionadas a questões políticas. De acordo com o último relatório, a MSNBC, por exemplo, é vista dez vezes mais entre liberais, o público-alvo de Bernie Sanders, do que pelos conservadores. Junto com a CNN e o New York Times, é uma das principais fontes deste segmento.
Alex Shephard, do the New Republic, lembra que boa parte do público que tem na TV sua principal fonte de informação é justamente a faixa do eleitorado em que o senador tem mais dificuldade em ampliar seu alcance, os mais velhos. Pesquisa feita entre eleitores da primária de New Hampshire após a votação mostra que Sanders tinha 51% dos votos entre aqueles que têm entre 18 e 29 anos, percentual que caía para 19% na faixa etária dos 45 ao 64 e 14%, entre os que têm mais de 65 anos.
O grande problema da cobertura midiática não é apenas de Sanders ou do processo eleitoral, mas da própria mídia que não consegue ver sua credibilidade ruir. E alimenta o extremismo de direita, que, em todo o mundo, se aproveita da fragilidade da confiança na imprensa em geral para alavancar sua própria máquina de mentiras. Quando a mídia corporativa perceber o quão danoso é para ela mesma abrir mão do jornalismo e do dever de informar talvez seja tarde demais.