A venda das empresas de telecomunicações brasileiras é celebrada como um caso de sucesso do modelo de privatizações desenvolvido durante o Governo Fernando Henrique Cardoso. De fato, diversos aspectos relativos à popularização do acesso à telefonia fixa, celular e à própria internet são atribuídos ao manancial de investimentos realizados por parte da iniciativa privada.
Essa versão é amplamente conhecida e quase um consenso para a imensa maioria da sociedade brasileira, com fácil acesso a telefones celulares e compras online. Todavia, esse mesmo processo de privatizações trouxe também em seu âmago enormes contradições aos interesses nacionais, cujos efeitos de longo prazo estão se manifestando paulatinamente. Talvez, justamente por essa lentidão nas mudanças, apesar destas virem se acelerando nos últimos anos, seus impactos demoraram a ser percebidos de maneira mais ampla.
Ao estabelecer o anteparo normativo para as alterações na telefonia, o mesmo arcabouço jurídico que deu base ao processo de venda também estabeleceu o “serviço de valor adicionado”, cujo objetivo central foi permitir a disponibilização do acesso à internet por meio de uma ampla gama de empresas, desvinculado do controle do monopólio estatal de então.
Infelizmente, neófita que a sociedade brasileira é em várias dimensões dos jogos de poder internacional, não foram detectadas naquele momento as profundas consequências futuras para o país, devido à inserção desse aparentemente pequeno item na lei.
Estava sendo definido então o modelo de internet no Brasil para aquela etapa e para as décadas seguintes. Para os brasileiros envolvidos era quase impossível antever a dimensão que a rede mundial de computadores iria assumir, com um papel cada vez maior nas comunicações e serviços, desequilibrando com o tempo tanto a economia quanto a soberania nacional.
Por outro lado, o governo norte-americano e sua longa manus – o Banco Mundial e o FMI – compreendiam perfeitamente o que estava em jogo. A possibilidade de uma só potência controlar todas as comunicações do planeta, com os decorrentes benefícios econômicos e militares.
Após a vitória da Guerra Fria e a consolidação como única superpotência mundial, os EUA conseguiram impor sua agenda neoliberal em boa parte das demais nações. Dentro dessa abordagem, as privatizações de empresas nacionais passaram a ser uma pedra angular de sua política internacional, sendo as comunicações eleitas como setor prioritário.
Em negociação desde o início da década de noventa, em 1998 a Organização Mundial do Comércio (OMC) já havia formalizado a abertura dos mercados de telecomunicações mediante o denominado Basic Telecommunication Agreement (BTA). Por conseguinte, mais de 100 nações iniciaram o processo de abertura e, sobretudo, privatização de suas empresas estatais.
De forma concatenada, a privatização das telecomunicações passou a ser também uma exigência do Banco Mundial para a concessão de novos empréstimos. O Brasil, ao longo dos anos 90, era altamente dependente do financiamento externo, ou seja, foi obrigado a aquiescer na venda das empresas estatais e na abertura para o modelo norte-americano de exploração da internet com a Lei Geral de Comunicações, em 1997.
Dessa forma, na nova legislação brasileira, além da venda das empresas estatais, concomitantemente era criado o já mencionado “serviço de valor adicionado”, definido pela Lei como “atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde”. Assim, as empresas estatais, quando da edição da lei, não teriam o monopólio do fornecimento de acesso à internet, sendo tal serviço fragmentado em centenas de empresas privadas.
No caso brasileiro, esse modelo tanto impediu o controle da rede física da internet pelo Estado como retirou incentivos para o único ator que à época poderia investir pesadamente em pesquisas para criar sua camada lógica, ou seja, para o desenvolvimento de aplicativos que de fato concorressem com os do Vale do Silício.
Mais do que um mero incentivo à liberalização econômica ou à busca pelo avanço da democracia, as exigências de privatização das empresas de telecomunicações tinham um propósito bem menos idealista. Objetivava-se na verdade a criação dos “serviços de valor agregado” o mais descentralizadamente possível. E esse projeto advinha de uma política de Estado cuidadosamente pensada por parte do Departamento de Defesa norte-americano (DoD).
Para além de ganhar a corrida tecnológica pela rede mundial de computadores, pretendia-se que a indústria da tecnologia da informação dos EUA também ganhasse o controle dos mercados mundiais, alavancando o conjunto da economia do país.
Por Vladimir de Paula Brito
Doutor em Ciência da Informação, é agente da Polícia Federal.