No último país a abolir a escravidão na América, ministros do TST avalizam eliminação de direitos trabalhistas, escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia.
Um dos aspectos menos conhecidos da herança de deixada por Fernando Henrique Cardoso em sua passagem pelo Planalto (1994-2002) encontra-se no Tribunal Superior do Trabalho, o ponto máximo da estrutura de direitos trabalhistas do país.
Além de afirmar, no discurso de posse, que a herança de Getúlio Vargas “atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade brasileira”, FHC indicou os dois magistrados do TST que, no futuro, iriam assumir a postura mais destacada no esforço para desmanchar o conjunto de direitos trabalhistas confeccionados ao longo de 80 anos de história.
Com posse marcada para 19 de fevereiro na presidência do TST, Maria Cristina Peduzzi, 66 anos, advogada de carreira, ingressou no Tribunal em 2001, penúltimo ano de Fernando Henrique na presidência da República. Em entrevista à Folha (16/12/2019), ela deixou clara sua concordância com a reforma promovida em 2017 por Michel Temer, cuja aplicação tem sido contestada não só por sindicatos de trabalhadores mas também por magistrados de instâncias inferiores, que consideram que as mudanças contrariam determinações constitucionais.
“Penso que, se a lei foi editada, o juiz tem o dever de aplicá-la, exceto se houver declaração de inconstitucionalidade” disse Maria Cristina. Sinalizando concordância com uma segunda investida sobre direitos trabalhistas, agora em gestação na equipe de Paulo Guedes, a ministra afirma que a CLT “precisa de atualização. A considerar a revolução tecnológica, a reforma (trabalhista) foi tímida. Olha só os litígios que existem, não só no Brasil, mas no mundo, a propósito do Uber”.
Na entrevista, a futura presidente tocou em outros assuntos delicados nas negociações entre sindicatos, empresas e governo. Ao falar do trabalho intermitente, alvo permanente de críticas de sindicalistas e de estudiosos, ressaltou um ponto positivo: “veio colocar no mercado de trabalho pessoas que antes estavam à margem”. Também se disse favorável a liberação do trabalho aos domingos: “no mundo todo, o comércio abre aos domingos. Vamos acabar num dia desses não distinguindo segunda de domingo”.
Questionada sobre a “precarização” de várias atividades, a presidente respondeu com uma justificativa: “vivemos hoje a Quarta Revolução Industrial. Convivemos com modos de produção que eram impensáveis à época em que a CLT foi editada”.
Indicado por Fernando Henrique para o TST em 1999, Yves Gandra Filho atravessa os últimos dias de gestão, antes de entregar o bastão a sucessora. Católico filiado a Opus Dei, como presidente do tribunal ele chamou a atenção de advogados trabalhistas e magistrados pelo empenho a favor das mudanças promovidas pela reforma Temer-Meirelles, num engajamento sem qualquer distanciamentos.
“É natural encontrar diferenças de pensamento entre colegas que atuam numa mesma atividade”, disse um juiz do Trabalho ao 247. “Mas nunca tivemos um presidente com um pensamento tão diverso da maioria, uma postura que parece contrariar a própria idéia de Justiça do Trabalho, que é garantir direitos dos assalariados”.
Filho de Yves Gandra Martins, uma das referências jurídicas nos meios católicos ultra-conservadores, em 2017 Gandra Filho chegou a ser cotado para ocupar uma vaga no Supremo, aberta pela morte de Teori Zawaski, mas acabou ultrapassado por Alexandre de Moraes.
Num país onde a principal queixa trabalhista refere-se a uma situação difícil na vida de qualquer pessoa — tomar o calote na hora da demissão, drama que atinge 7 milhões — em 2017 Gandra Filho chamou atenção durante uma audiência no Senado.
Discutindo acidentes de trabalho, recomendou aos presentes que tivessem cuidado em fixar indenizações de valores muito altos, pelo risco de estimular a auto-mutilação dos trabalhadores. Lembrando o exemplo de soldados que se feriam de propósito para escapar de uma batalha, disse que “se você começa a admitir indenizações muito elevadas, o trabalhador pode acabar provocando um acidente ou deixando que aconteça porque para ele vai ser melhor”. (Justificando, 16/05/2017).
A noção de que os direitos de trabalhadores representam uma página virada na História é bastante comum — mas é um erro imaginar que se trata de uma fatalidade sem remédio no mercado de trabalho na terceira década do século XXI.
Ao mesmo tempo em que se confirma uma tendência ao crescimento da informalização pelo uso de aplicativos, que proporciona ganhos impensáveis, há sinais na direção oposta, a favor da regulamentação das relações de trabalho e do reconhecimento dos direitos dos empregados.
Em setembro, aprovou-se na Califórnia — estado que tem o DNA da revolução tecnológica de nossa época — uma legislação que bate de frente com os costumes da indústria de aplicativos. Pela decisão, que teve apoio do governador Gavin Newsom, os motoristas de aplicativo, a começar pelo Uber, terão direito a registro profissional e outros benefícios — ou a empresas não poderão atuar no Estado.
Embora se possa prever uma longa batalha nesse terreno, já que nenhuma empresa irá desistir voluntariamente da oportunidade de assegurar um ganho extra de pelo menos 30% nos lucros, muitos observadores prevêem uma expansão da formalidade no próximo período, inclusive para outras áreas do setor de serviços, que exploram a mão de obra através de aplicativos — e até agora se recusam a reconhecer que mantém uma relação de trabalho. (Conjur, 13/9/2019).
Na Catalunha, o governo autônomo definiu regras compensatórias que favorecem empresas tradicionais de transporte publico em detrimento das operadoras de aplicativo.
Lembrando que o Brasil já possui o trágico recorde de último país a abolir o trabalho escravo na América, é mais do que recomendável valorizar garantias e direitos trabalhistas que sempre ajudaram a distinguir a Civilização da Barbárie. Afinal, é para isso que serve a Justiça.
Alguma dúvida?
Por Paulo Moreira Leite
Via Brasil 247