Novo presidente e vice Cristina Kirchner herdam crise socioeconômica de Maurício Macri.
Vencedores das eleições presidenciais na Argentina em 27 de outubro, Alberto Fernández e Cristina Kirchner tomam posse nesta terça-feira 10 com o desafio de reverter a grave crise socioeconômica sob a qual vive o país vizinho. Até agora, os peronistas já indicaram que o combate à pobreza deve ser prioridade, mas restam dúvidas sobre qual êxito a nova gestão vai apresentar durante o percurso.
A herança do governo de Maurício Macri é alarmante. Em setembro, o Instituto de Estatística e Censos (Indec) informou que o país bateu recorde no índice de argentinos em estado de pobreza. Em 2019, o número chegou a 35,4%, o equivalente a mais de 15 milhões de pessoas nessa situação, entre os cerca de 45 milhões que vivem no território.
Segundo a Universidade Católica Argentina (UCA), Macri encerra o governo com 40,8% de argentinos abaixo da linha da pobreza, segundo dados divulgados em 5 de dezembro. Em 2018, o número era de 33,6%. É o valor mais alto da década, dez pontos a mais que o índice deixado por Cristina Kirchner em 2015.
Na sexta-feira 6, Fernández apresentou um corpo ministerial com 20 integrantes e afirmou que a redução da pobreza será seu foco de governo. Uma das medidas anunciadas, por exemplo, é o programa “Argentina Sem Fome”, inspirado no “Fome Zero”, carro-chefe dos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
No entanto, para a economista do Instituto Jubileu Sul, Sandra Quintela, as medidas concretas ainda não estão claras para superar a crise.
O que se pode perceber até agora é que o perfil dos ministros do governo Fernández é heterodoxo, corrente econômica contrária à abordagem ortodoxa, ligada às medidas neoliberais e de austeridade. O ministro da Economia, por exemplo, é o jovem Martín Guzmán, de 37 anos, pesquisador que colaborou com o economista Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel.
Para a especialista, a tendência é de ampliação da participação do Estado na economia. Um dos anúncios que ela ressalta é o da criação do Ministério de Desenvolvimento Produtivo, que deve se voltar, segundo ela, para o estímulo de pequenas e médias empresas, contrariando a política do governo anterior em privilegiar lideranças vindas de grandes corporações.
Ainda assim, destaca Sandra, Fernández anda cuidadoso no tema. “Ele está bastante cauteloso. Vamos esperar. O quadro está muito forte de instabilidade”, avalia.
O “bode na sala” é o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). A Argentina tem uma dívida de 101 bilhões de dólares com credores internacionais. Dentro desse valor, 56 bilhões de dólares formam a dívida só com o FMI. A quantia foi acertada em 2018, pelo governo Macri, e configurou a maior linha de crédito de todos os tempos oferecida pelo banco.
O dinheiro ainda não foi totalmente entregue pelo FMI. Até agora, o Fundo emprestou 44 bilhões de dólares ao país e, portanto, falta uma parcela de 11 bilhões. Fernández já declarou que não quer receber essa fatia. “Tenho um problemão e vou pedir outros 11 bilhões?”, afirmou em uma entrevista. Seus novos ministros da área econômica defendem reestruturar a dívida, mas o sucesso da negociação não é uma certeza.
A articulação econômica na América Latina também é um mistério. Diante das intensas adversidades com o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, o futuro do Mercosul é incerto. O bloco é formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – a Venezuela está suspensa e Fernández se encontra isolado ideologicamente entre três presidentes à direita.
O ministro Ernesto Araújo afirmou, na semana passada, no Rio Grande do Sul, que está disposto a tentar uma aproximação quando Fernández se alinhar com os interesses dos países parceiros, mas este cenário ainda é imprevisível.
A própria parceria bilateral entre Brasil e Argentina é uma incógnita. A Argentina foi o 4º país que mais comprou do Brasil entre janeiro e outubro de 2019 e o 3º que mais vendeu, uma parceria estratégica para ambos.
No entanto, Sandra considera que o país vizinho possa realinhar suas parcerias, devido à rivalidade com o presidente brasileiro. A China, vendedora de uma série de produtos que o Brasil também comercializa, já estaria em “sobreaviso”.
Fora do campo econômico, Fernández já mostrou entusiasmado em enfrentar debates sobre a desigualdade de gênero. Em novembro, durante entrevista ao jornal Página 12, o novo presidente adiantou que enviará um projeto de lei ao Parlamento com a proposta de legalizar o aborto.
Os parlamentares argentinos discutiram a questão em 2018. Sob protestos de movimentos feministas, Macri permitira a análise de um projeto que descriminalizava o aborto até a 14ª semana de gestação, mas o Senado rejeitou a iniciativa.
Fernández também anunciou a criação do Ministério da Mulher, da Igualdade e da Diversidade.
“Estou convocando muitas mulheres, algumas estarão na primeira linha e outras na segunda. Definitivamente, acredito que temos que acabar com a discriminação contra a mulher”, disse.
A propósito, a participação de Cristina Kirchner nas decisões do governo é outro enigma. A ex-presidente optou por se distanciar dos holofotes e escolheu Fernández para liderar a chapa, mas a pergunta é qual será seu papel no governo de fato.
O diálogo com o Parlamento também cria expectativas. No Senado, a coalizão é favorável. Por outro lado, dos 257 assentos na Câmara dos Deputados, os kirchneristas obtiveram 120 postos, menos que a maioria. Os desejos e desafios são grandes, mas a Casa Rosada vai precisar de habilidade para negociar.