A legislação brasileira jamais admitiu a pena de morte. Só a aceita em casos de guerra. Apesar disso, através de uma decisão monocrática, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra da Silva Martins Filho, provocado pela Petrobras, deu decisão que praticamente condena à morte nove sindicatos e a própria Federação Única dos Petroleiros (FUP). A título de multa, determinou que essas entidades recolham judicialmente a bagatela de R$ 32 milhões.
A punição é decorrente de os trabalhadores, após cumpridas todas as exigências legais, terem exercido, nos dias 25 e 26, o direito constitucional de greve, na disputa que travam com a empresa pelo pleno cumprimento do Acordo Coletivo de Trabalho. Gandra Martins Filho rejeita a legalidade da greve poucos dias depois de assinado o Acordo. Os petroleiros alegam que artigos do ACT não estão ameaçados por conta da política de privatização imposta pelo governo de Jair Bolsonaro. Governo eleito com o apoio de Gandra Martins Filho, como noticiou Denise Rothenburg. no Correio Braziliense, em 27 de outubro de 2018.
Além de punir pela greve, o ministro exorbitou no valor da multa: R$ 2 milhões por dia de paralisação cobrado de cada um dos nove sindicatos filiados à FUP (Norte Fluminense, AM, SP, CE/PI, RN, BA, PE/PB, PR.RS) e da própria Federação. Exorbitou, ainda, na forma da cobrança. Sem oferecer prazo para que o dinheiro fosse pago, mandou bloquear R$ 5,826 milhões encontrados em 26 contas bancárias dessas mesmas entidades, transferindo esse valor para uma conta judicial.
Como ainda faltam R$ 26,171 milhões para atingir o total da multa aplicada, Gandra Martins Filho mandou a estatal repassar direto para a conta judicial as mensalidades dos sindicatos descontadas tradicionalmente nos contracheques de seus empregados sindicalizados.
Portanto, não bastasse ter raspado todo o caixa dessas dez entidades, o ministro ainda determinou o bloqueio das futuras receitas. Algo que, no entendimento de alguns operadores do direito ouvidos pelo Blog, é ilegal. Seja como for, sem dúvida comprometerá a sobrevida das entidades sindicais.
“Essa medida acarreta na prática a extinção da atividade desses sindicatos (morte no sentido figurado) e a Constituição Federal assegura a liberdade de atividade sindical (em sentido figurado, a vida)“, concorda um desembargador aposentado do TRT.
A ação pedindo Tutela Cautelar Antecedente no TST diante da promessa da greve, contra a greve (TutCautAnt – 1000961-35.2019.5.00.0000) foi impetrada pela Petrobras na sexta-feira, 22 de novembro, contra 13 sindicatos e a FUP. Por sorteio, foi distribuída ao ministro Caputo Bastos, que por questões pessoais já se disse impedido de julgar causas da estatal. Na redistribuição, parou nas mãos de Gandra Martins Filho. Na mesma sexta-feira ele despachou estipulando a exorbitante multa.
Na decisão expôs que “a greve não é um direito absoluto, estando sujeito aos limites da lei (CF, art. 9º, §§ 1º e 2º), a qual considera abusivo seu exercício após a assinatura de acordo coletivo de trabalho (Lei 7. 783/89), salvo se houver descumprimento de cláusula do acordo (art. 14, parágrafo único, I), o que, como visto, é impossível de ter ocorrido, em tão curto espaço de tempo em relação a cláusula de caráter programático (10 dias após a assinatura do acordo).”
No domingo (24/11), os petroleiros ingressaram com um Agravo, junto ao próprio relator do processo. No Agravo, alegaram que “as cláusulas tidas por descumpridas (41, 73 e 86) já constavam de acordos anteriores, e o descumprimento vem de antes do acordo, tendo a Autora induzido em erro este juízo, ao não reconhecer tal fato”. As entidades sindicais destacaram ainda que como anunciaram com antecedência, o movimento não envolve o risco de abastecimento alegado pela companhia junto ao Tribunal, tal como ressaltado no Informativo da FUP.
O relator do processo recusou-se a rever sua decisão. Com isto o Agravo terá que ser julgado no plenário da Seção de Dissídio Coletivo do TST, mas por conta do recesso de final de ano, isso só acontecerá em 2020. Depois, caberá recurso ao próprio plenário do TST e, por fim ao Supremo Tribunal Federal.
Por conta do bloqueio das contas, feito sem que o prazo de dez dias fosse dado aos réus para o recolhimento do dinheiro, a FUP, na terça-feira (26/11), ingressou com Mandado de Segurança questionando a penhora do dinheiro.
O MS 1000982-11.2019.5.00.0000 foi equivocadamente distribuído para a própria Autoridade Coatora, ré no caso, ministro Ives. Redistribuído, foi para o ministro Agra Belmonte. Como não houve liminar, sua apreciação dependerá ainda das informações a serem prestadas pelo próprio Gandra Martins Filho. O prazo é de cinco dias, o que dificultará que o caso seja apreciado no Órgão Especial do TST antes do recesso de final de ano.
Ou seja, é longo o caminho a ser percorrido sem que estas entidades tenham recursos em caixa e ainda estando com suas receitas confiscadas. Caso nenhuma outra medida seja tomada, as entidades serão inviabilizadas financeiramente. Algo a ser comemorado pela equipe do governo de Bolsonaro que não quer negociar com sindicatos, menos ainda os mais combativos.
Gandra Martins Filho é um homem conservador, católico tradicional, membro da organização de direita Opus Dei. Na presidência do TST, ocupada até fevereiro de 2018, esforçou-se pela aprovação da chamada Reforma Trabalhista de Michel Temer que, reconhecidamente tolheu direitos trabalhistas. em maio do ano passado, chegou a dizer que “se esses magistrados continuarem se opondo à modernização das leis trabalhistas, eu temo pela Justiça do Trabalho. De hoje para amanhã, podem acabar com [a Justiça do Trabalho]”.
Em consequência desta afirmação e da defesa que fez das Reforma Trabalhista, durante o XIX Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (XIX CONAMAT), no último sábado (4/5), o ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Ives Gandra Martins Filho foi declarado persona non grata à magistratura trabalhista.
Por tal perfil, as posições dele não surpreendem a muitos. Posição, por sinal, manifestada pela juíza Valdete Souto Severo, presidente da Associação de Juízes pela Democracia (AJD). Para ela, a decisão de Gandra Martins Filho não causa espanto, “por não ser a primeira vez que ele se manifesta de forma contrária a direitos trabalhistas. Ele foi um dos idealizadores e participou de grupos de trabalho para a reforma trabalhista, então não é de espantar. Mas é preciso que se denuncie isso porque vai ficar muito difícil sair defendendo uma estrutura de Poder Judiciário se aqueles que à compõem não compreendem a razão histórica da sua existência. A Justiça do trabalho só existe para dar efetividade aos direitos trabalhistas”. Prosseguindo, ela alerta:
“O fato de o Poder Judiciário Trabalhista, em um momento como este, investir contra os sindicatos, não apenas impedindo ou tentando impedir o exercício da greve, mas também aplicando multas que, sem dúvida nenhuma inviabilizam a atividade sindical, demonstra que a gente, na verdade, tem um quadro muito mais grave e profundo do que, a princípio, pode parecer“.
Ainda dela a advertência:
“É importante que se diga que esses direitos trabalhistas são condição, inclusive, para que a sociedade capitalista siga existindo. Porque, se retira-se direitos trabalhistas e as pessoas não conseguem mais reivindicar através da greve e sobreviver através do salário, não se tem sociedade…. não há como subsistir em uma sociedade capitalista que depende diretamente de pessoas que têm um mínimo de dignidade na vida e que consigam viver e consumir, sobretudo, com tranquilidade. Então a AJD é absolutamente crítica a qualquer ato judicial ou legislativo que fragilize ou suprima o direito fundamental de greve no Brasil“.
O mesmo desembargador aposentado que admitiu acima que a decisão é sentença de morte aos sindicatos, concorda com a queixa da FUP pela falta de prazo para o recolhimento da multa e vê na medida um abuso de poder:
“Do ponto de vista da ameaça de multa é abuso de poder por via judicial. A jurisprudência e a lei sempre foram contra multas excessivas. Mais recentemente limitou-se a multa em condomínios. No Tribunal de Justiça do Rio não se admite multa maior que o valor do principal. O bloqueio cautelar só se justifica ante fundado receio de não pagamento. O que só ocorreria se não feito depósito no prazo a ser intimado aos sindicatos“.
Também sob a promessa de OFF, ou seja, sem ser identificada, uma juíza do trabalho aposentada vê que a decisão não cumpre o princípio básico do Judiciário, que é o de solucionar conflitos:
“A decisão judicial, em vez de compor conflitos, vai acirrá-los. Aplica-se a lei friamente, sem pensar nas questões paralelas. Do ponto de vista principiológico, o juiz, mesmo correndo o risco de ser acusado de omissão, deve fazer valer o dever principal da Justiça de compor conflito. Não é razoável uma multa que feche o sindicato”.
Vem dela a comparação com a pena de morte do sindicato em um momento em que o país assiste ressurgirem métodos tipicamente fascistas:
“É como se você concebesse no ordenamento jurídico a pena de morte. O ordenamento jurídico brasileiro não comporta a pena de morte e isto é uma pena de morte para os sindicatos. A União e a sociedade têm interesse em pacificar o conflito, não destruir os sindicatos. Só que hoje temos um dado novo, o fascismo“
Ela recorda-se de um caso ocorrido no Espírito Santo que, também em uma negociação da Petrobras com sindicatos, houve decisão superior para se reter dinheiro dos sindicatos. O magistrado de piso primeiro fez uma série de questionamento ao autor da decisão, tentando ganhar tempo. Depois, em um acordo entre empresa e sindicato, o dinheiro foi liberado.
A FUP tem consciência de que apenas medidas jurídicas podem não solucionar o problema. Será preciso uma reação também política, uma vez que a intenção do ministro relator atende ao governo que ele ajudou a eleger:
“Multas para forçar o cumprimento de uma ordem judicial são comuns, mas devem guardar razoabilidade com o patrimônio de quem é executado. O valor da multa deixa claro que o objetivo do relator bolsonarista é destruir os sindicatos. Não apenas os forçar a não fazer greve. Por isso, a reação tem que ser jurídica, mas também política“, explica a fonte ao Blog.
Por Marcelo Auler
Via Marcelo Auler .