As operárias ocupam mais as fábricas. Que ocupem também a política!

Operários, de Tarsila do Amaral (1886-1973), é a mais conhecida representação da classe operária no Brasil. Pintada em 1933, durante a “fase social” da artista, a tela mostra o rosto de 51 trabalhadores da indústria, enfileirados à frente de um prédio e de seis chaminés de fábricas. São operários de diferentes idades e origens, mas com igual semblante de monotonia. E há, claro, 13 mulheres. Em média, uma a cada quatro pessoas retratadas ali é do sexo feminino.

No conjunto da obra de Tarsila – que pintou cerca de 240 telas –, Operários se destaca sob diversos aspectos, a começar pelas dimensões. Com 150 centímetros de altura por 205 de largura, é, de longe, o maior quadro da pintora paulista. Além disso, na opinião da própria Tarsila, tratava-se de sua obra mais importante. Com sensibilidade e engenho, a mulher que personificou o Modernismo brasileiro conseguiu, a um só tempo, expressar tanto a diversidade quanto a identidade do operariado.

Em certa medida, Operários verteu em imagem o que a professora e ativista alemã Clara Zetkin (1857-1933) expôs em palavras. No ensaio Separação Contundente, de 1894, Clara – uma das primeiras autoras marxistas – afirma que a presença feminina nas fábricas demarcou ainda mais a luta de classes na sociedade capitalista. “O feminismo burguês e o movimento de mulheres proletárias”, diz ela, “são movimentos sociais fundamentalmente diferentes”.

Com coragem e firmeza, Clara defendeu que as mulheres operárias deviam lutar ao lado dos “homens da própria classe” – e não com as mulheres burguesas, ainda que estas se declarassem “feministas”. Tais diretrizes, de natureza classista, serviram de base para marcos como o nascimento do movimento das trabalhadoras na Alemanha, a organização das Conferências Internacionais de Mulheres Socialistas e a proposição do Dia Internacional da Mulher.

Dopando os bebês

Sabemos que, desde as fábricas pioneiras de Lancashire, na Inglaterra, berço da 1ª Revolução Industrial (1780-1850), as condições de trabalho eram abusivas e insalubres para todos – mas particularmente subumanas para as operárias. Primeiro porque, nas grandes cidades, o trabalho fabril se tornou uma questão de sobrevivência. De tão arrochado, o salário dos homens operários – os “chefes de família” – tornou-se insuficiente para sustentar a casa.

A mulher, ao se proletarizar, conheceu a dupla jornada de trabalho, recebendo, para piorar, um salário inferior ao dos homens. A carga horária na indústria chegava a 80 horas semanais – incluindo, muitas vezes, o sábado e o domingo. Como não havia licença maternidade, as mães eram forçadas a voltar à atividade três ou quatro dias depois do parto. O fato de continuar responsável pelo cuidado dos filhos, mesmo no “chão da fábrica”, exauria ainda mais as operárias.

Não era fácil – embora fosse invariavelmente inevitável – levar bebês e mesmo crianças para o local de trabalho. As mães chegavam a dopar os filhos com narcóticos, conforme relata, em livro, a jornalista Cecília Toledo: “Tornou-se prática comum entre as operárias de Manchester (Inglaterra) alimentar os bebês três vezes ao dia e, para mantê-los quietos o resto do tempo, dar-lhes uma mistura, a ‘mistura de Godfrey’, composta de láudano – um tranquilizante à base de ópio, de largo uso entre as mulheres – e melado”.

A mortalidade infantil disparou no período. Mas a burguesia, gananciosa, indiferente às fraturas da sociedade, logo viabilizou a incorporação da mão de obra infantil nas fábricas. “A primeira preocupação do capitalista ao empregar a maquinaria foi a de utilizar o trabalho das mulheres e das crianças”, explica Karl Max.

O motivo, segundo o filósofo alemão, é que as máquinas permitem “o emprego de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento físico incompleto, mas com membros mais flexíveis”. O ciclo estava fechado. “De poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados sob o domínio direto do capital”, concluiu Marx.

Contra o patriarcado

É a genialidade do revolucionário russo Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lênin (1870-1924), que enxerga um contraponto – um “fenômeno progressista” – na inclusão da força de trabalho feminino na indústria. Em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (1899), Lênin reconhecia que as operárias viviam uma “situação particularmente difícil”. Mas ponderava que a atividade fabril dava condições para que as mulheres rompessem “o isolamento patriarcal” – os “limites das relações familiares e domésticas”.

Era uma reposta aos movimentos que propunham restringir às fábricas à mão de obra masculina. Segundo Lênin, “a tendência a proibir por completo o trabalho das mulheres e dos adolescentes na indústria ou a manter o regime patriarcal, que não admitia esse trabalho, seria reacionária e utópica”. Em favor das mulheres, “a grande indústria mecanizada acelera seu desenvolvimento, amplia sua independência, isto é, cria condições de vida infinitamente superiores à imobilidade patriarcal das relações pré-capitalistas”.

Uma vez que o trabalho fabril podia ser esse meio de emancipação, era preciso lutar para melhorar as condições de trabalho e, num estágio mais avançado, para transformar a sociedade. Há vasta pesquisa e documentação sobre a luta das operárias nos Estados Unidos e na Europa, sobretudo a partir da segunda metade do século 19. Nessas regiões, o movimento feminista andou de mãos dadas com o movimento sindical.

Já no Brasil, ao contrário, o papel das operárias nas conquistas históricas das mulheres só passou a ser recuperado recentemente. Um dos melhores trabalhos a esse respeito é o livro Os Direitos das Mulheres – Feminismo e Trabalho no Brasil (1917-1937), da professora Glaucia Fraccaro, doutora em História Social do Trabalho. De acordo com a autora, a Greve Geral de 1917, em São Paulo, desencadeou o ascenso do movimento operário feminino.

“As condições de trabalho eram péssimas, com largas jornadas, alto custo dos alimentos e nenhuma garantia de direitos ou benefícios. Além disso, os relatos de abuso por parte de feitores e gerentes de oficinas eram recorrentes”, declarou Glaucia, em 2017, numa entrevista ao Portal da Fitmetal. Mas, graças à mobilização das operárias de São Paulo – que ganhou eco pelo País –, em 20 anos as mulheres conquistaram uma série de direitos, como a licença maternidade, a igualdade salarial e a jornada de trabalho.

Dias atuais

Quando Tarsila do Amaral pintou Os Operários – mais de 150 anos depois do advento da Revolução Industrial –, a visão sobre o trabalho nas fábricas já estava, portanto, mais amadurecida, no Brasil e no mundo. As condições de trabalho avançavam, sindicatos operários e partidos comunistas brotavam, a resistência do trabalho ao capital crescia.

Hoje, o emprego industrial – aquele que constrangia a mulher a drogar seus filhos – virou referência do que se convencionou a chamar de “trabalho decente”. Na comparação com trabalhadores de outras áreas, os operários da indústria têm, em média, melhores salários e benefícios, além de maior proteção. As mulheres – e, em especial, as operárias, companheiras na linha de frente da luta – foram protagonistas dessa grande transformação!

Há outra revolução nos dias atuais: o percentual de mulheres em atividade na indústria é superior – e muito – ao de 86 anos atrás. Curiosamente, ao destinar 25% dos rostos de sua obra-prima às mulheres, Tarsila subdimensionou a proporção de operárias no Brasil daquele período. Segundo Glaucia Fraccaro, na virada dos anos 1920 para os anos 1930, as mulheres representavam 34% da força de trabalho nas fábricas dos grandes centros. “Em São Paulo, no setor têxtil, o número de trabalhadoras superava o de homens.”

Ao contrário do que ocorria nas tecelagens, as mulheres operárias eram minoria no setor metalmecânico – os homens respondiam por mais de 95% dos empregos metalúrgicos. Por muitas décadas, o preconceito e o assédio inibiram a atração da mão de obra feminina nesse ramo industrial, ainda mais nas “fábricas pesadas”. Isso também mudou.

A representação feminina cresce no setor há duas décadas, conforme o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). De 1999 a 2010, por exemplo, o número de operárias metalúrgicas passou de 176,6 mil para 350 mil. Em termos proporcionais, nem mesmo a retração dos postos de trabalho metalúrgicos conteve essa tendência. As mulheres, em 2006, eram 15,5% da categoria. Em 2010, foram a 16,4%. Subiram a 19,14% em 2014. No último levantamento, de 2017/2018, alcançaram 22%.

Sovietes

Que essas mulheres operárias consigam, agora, ocupar mais e mais a política também. Aqui está, por sinal, outra preocupação de Lênin, um entusiasta (como vimos) da entrada das mulheres na indústria e da conscientização de classe – mas não só. Seu livro O Socialismo e a Emancipação da Mulher (1920) mostra que, depois da Revolução de 1917, o “poder dos sovietes” aboliu “as abomináveis leis que punham a mulher num estado de inferioridade em relação ao homem”. Mas, para Lênin, “a igualdade diante da lei não é ainda a igualdade efetiva” – e o Partido Comunista ainda precisava se afirmar “no seio da classe operária”.

Uma das oportunidades era a eleição para o Soviete de Moscou, em 1920. Lênin exortou, assim, as operárias a ingressarem na política e participarem da disputa eleitoral: “É preciso que a operária conquiste a igualdade com o operário não somente diante da lei, mas também de fato. Por isso, as operárias devem participar em medida cada vez maior da gestão das empresas públicas e da administração do estado”.

“Mais operárias para o Soviete de Moscou! Demonstre o proletariado moscovita que está disposto a fazer tudo, e que tudo faz para lutar até a vitória, para lutar contra a velha desigualdade, contra o antigo aviltamento burguês da mulher!”, conclamava Lênin. “O proletariado não alcançará a emancipação completa se não for conquistada primeiro a completa emancipação das mulheres!”

Quase cem anos depois, o apelo de Lênin é atualíssimo para o Brasil! É provável que uma versão atualizada do Operários de Tarsila, baseada no novo perfil do operariado brasileiro, tivesse mais jovens e negros. A boa notícia é que também teria mais trabalhadoras, porque as operárias ocupam cada vez mais as fábricas. A ocupação da política é um desafio inadiável.

*André Cintra é jornalista, membro da equipe do Portal Vermelho. Assessora entidades e coletivos sindicais

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