Por J. Carlos de Assis, jornalista, economista e professor
Uma característica do Estado que se considera hegemônico é não esconder suas intenções. Ele acha que os aliados devem aceitar sem crítica tudo aquilo que faz, e não esconde dos adversários sua estratégia de conquista ou manutenção do poder. Nesse sentido, os Estados Unidos se comportam de forma absolutamente transparente diante do resto do mundo. Os documentos estratégicos não classificados do país indicam claramente fins e meios da política externa norte-americana em busca de afirmação absoluta de sua hegemonia.
O principal objetivo estratégico dos EUA é não permitir que alguma potência secundária chegue ao ponto de desafiar sua hegemonia na forma como aconteceu com a União Soviética na Guerra Fria. Nesse sentido, o inimigo principal é a Rússia, curiosamente capitalista, mas única candidata, por seu poderio nuclear planetário, a desafiar Washington no plano militar. Tendo em vista a aliança estratégica inesperada entre Rússia e China, segunda potência econômica, a hegemonia norte-americana, em perspectiva, está sob xeque mate.
O mundo reestruturou-se, depois de 1991, de uma forma muito similar aos tempos da Guerra Fria, inclusive geograficamente, porém não ideologicamente. Os contendores centrais permaneceram os mesmos, definindo suas esferas geopolíticas de influência de acordo com interesses estratégicos que subentendem ambições econômicas e militares explícitas ou implícitas. Ao sistema geopolítico bipolar, antes ofuscado pela ideologia, superpôs-se um sistema de interesse econômico determinado sobretudo pelas iniciativas do poder que se considera hegemônico.
Em torno desses dois eixos centrais os Estados periféricos estão sendo forçados a alinhamentos geopolíticos. O lado russo registrou perdas consideráveis tendo em vista o avanço da OTAN no Leste europeu. Quanto à OTAN – ou seja, os EUA -, desde o fim da União Soviética registrou um comportamento militante “engolindo” mais de uma dezena de países ex-socialistas em sua estrutura militar, inicialmente sem reação russa. Esse processo foi paralisado pela intervenção defensiva de Vladmir Putin na Chechênia, na Geórgia e na Ucrânia.
Para os russos, essas reações significavam um escudo geopolítico para proteger seu próprio território. Não havia nada semelhante em relação à intervenção norte-americana no Leste ou na Sérvia. Contudo, o marco que assinala uma quebra de paradigma na evolução do sistema internacional pós-guerra fria veio a ser a intervenção russa na guerra síria, sendo os opositores claramente apoiados por Washington e outros países da OTAN, depois que os ocidentais perpetraram o genocídio e desestruturação da Líbia na chamada Primavera Árabe.
Na Síria, na Coréia do Norte e no Irã, todos na esfera de influência da aliança Moscou-Pequim, agora prestes a ganhar a Turquia, a potência que se considera hegemônica está tendo que moderar seu apetite. Afinal, estamos na idade nuclear. Os EUA não podem desencadear uma guerra que se torne nuclear contra a Rússia e a China, nos seus territórios, senão ao preço de uma retaliação devastadora (de novo, a estratégia da dissuasão). Mas está testando seus jogos bélicos na periferia desses países centrais, medindo hipoteticamente a reação dos adversários.
Limitados em seus movimentos, os EUA voltam-se para sua periferia tradicional a fim de fincar nela as estacas de seu poder reivindicado como absoluto. É nesse ponto que um nordestino chamado Lula teve a ousadia de desafiar a estratégia maior norte-americana com ajuda de seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e do secretário geral deste, Samuel Pinheiro Guimarães. Eles bloquearam a ALCA, cujo projeto era claramente pró-americano e contra os interesses nacionais, e começaram a arquitetar uma verdadeira aliança sul-americana, Unasul, no plano político, e a reforçar o Mercosul, no plano econômico.
Mais do que isso. Lula foi uma peça chave na estruturação do grupo BRICS, que se tornaria, com clara oposição norte-americana, no embrião do Novo Banco de Desenvolvimento, destinado a financiar investimentos de infra-estrutura. Não só isso. Pela época do impeachment de Dilma, e sem muito entusiasmo da parte dela, o Novo Banco começou a dar passos largos para integração de outros países em desenvolvimento além do bloco. Isso era um insulto à banca de Nova Iorque e ao sistema mundial financeirizado.
Não é trivial a criação de um banco que tenha a China como suporte financeiro. Trata-se de um desafio direto ao poder bancário privado ocidental, que funciona como sangue-suga dos países em desenvolvimento, sob proteção norte-americana. Seu potencial é de deslocar para o Oriente, com condições muito mais favoráveis e sem condicionalidades políticas, o eixo financeiro mundial disponível para o Brasil e toda a América Latina. Seria uma nova base de desenvolvimento, talvez a definitiva para países que dependem de financiamento externo.
Apanhado no fogo cruzado de um conflito geopolítico que requer um sofisticado jogo diplomático em prol do interesse nacional, o Brasil, que já entregou grande parte do pré-sal às petroleiras mundiais, entra em campo armado de um ministro das Relações Exteriores aloprado, um idiota a ser mandado para a Embaixada nos EUA, um ministro da Economia obcecado em agradar o “investidor” norte-americano, e um presidente débil mental, cujo único propósito é beijar a bandeira norte-americana, ajoelhar aos pés de Donald Trump e ressuscitar a falecida ALCA, para completo abandono de nossos interesses.