Uma ameaça antiga adquiriu mais poderio no país com a vitória dos ultraliberais no pleito presidencial vencido por Jair Bolsonaro (PSL): a privatização irrestrita de todos os serviços públicos e de toda a atividade econômica passível de dar lucro. Desde a posse do novo presidente, a ofensiva privatista aumentou, e um de seus objetos de desejo é a educação, com o aval e apoio incontestável do governo, que prefere privatizar o ensino a investir na educação pública, que teve seu orçamento drasticamente cortado.
O projeto é antigo, mas os privatistas ficaram mais entusiasmado após o golpe de tirou Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República. Em 2017, o Banco Mundial sugeriu acabar com a gratuidade do ensino superior no documento “Um ajuste justo – propostas para aumentar eficiência e equidade do gasto público no Brasil”. “O modelo atual é insustentável”, vociferou o coordenador da área de Desenvolvimento Humano do Banco, Pedro Olinto.
Na campanha eleitoral do ano passado, já com o país submetido ao governo de Michel Temer (MDB), a proposta da cobrança de mensalidades para alunos em melhores condições econômicas nas universidades públicas apareceu várias vezes durante os debates do primeiro turno presidencial. Foi defendida por João Amoedo (Novo) e Henrique Meirelles (MDB) e chegou também a ser mencionada por Geraldo Alckmin (PSDB). Este, no entanto, recuou depois da declaração causar repúdio e disse que se referia apenas a pagamento de cursos de especialização em universidades. Bolsonaro, que não detalhou projetos e não participou de debates eleitorais, silenciou sobre o assunto.
Mas desde 1º de janeiro os programas federais têm repassado verbas que seriam destinadas para as escolas públicas para o setor privado. Assim, mantêm seus financiadores de campanha para futuras eleições. Também ocorrem cortes em programas que beneficiam a permanência nas universidades dos estudantes de baixa renda, expondo ainda mais o caráter de classe dos ocupantes do Executivo.
Recursos privados
O secretário de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), Arnaldo Lima, quer que as universidades institutos federais sejam “Vales do Silício tropicais” (região que abriga muitas start-ups e empresas de tecnologia nos Estados Unidos), a partir de uma injeção de capitais privados em seus orçamentos. Essa é a principal proposta do projeto governamental Future-se. O programa tem caráter opcional, mas Lima ameaçou que as universidades que ficarem de fora minguarão aos limites da PEC do Teto de Gastos.
As Associações de Pós-graduandas e Pós-graduandos da Universidade Federal de Minas Gerais (APG UFMG), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (APG PUC Minas), Universidade Federal de Uberlândia (APG UFU), Universidade Federal de Viçosa (APG UFV) e da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (APG UFVJM) reagiram em nota conjunta: “O projeto Future-se tem como sentido geral a subordinação da Universidade pública à lógica dos interesses privados do mercado. Enfraquece a missão pública e estratégica dos Institutos Federais de Ensino Superior (IFES) que se fundamentam em um financiamento estável e previsível imune às oscilações conjunturais inerentes às fontes de financiamento privadas. Ademais, a criação de fundos financeiros como fonte de receita submete os IFES a toda sorte de incertezas e riscos típicos das aplicações financeiras, mesmo as mais seguras. Acopla-se assim as universidades ao processo de financeirização da economia”.
Cobrança de mensalidade
O Ministério da Educação postou no Portal Nacional de Educação (PNE) a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, no dia 13 de julho. Diante da repercussão negativa, o PNE divulgou nova nota no dia seguinte, 14, um domingo, com texto do ministro da Educação, Abraham Weintraub, dizendo que “a graduação não será paga pelos alunos das federais” – abrindo a possibilidade, no entanto, do pagamento de outros cursos, como a pós-graduação.
No texto do dia 13, o PNE havia afirmado que “estudantes que obtiverem mais de 3 salários mínimos por pessoa, equivalente a R$ 2.994 (dentro do grupo familiar) terão que arcar com as mensalidades nas universidades públicas pelo País”.
Antes, em maio, os deputados federais governistas do PSL decidiram apresentar Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para que estudantes com determinado nível de renda familiar paguem mensalidade nas universidades públicas, segundo o que anunciou o presidente do partido, deputado Luciano Bivar (PE). “A gente está pretendendo que uma parte da universidade seja custeada, paga por alunos que têm condições. Por exemplo, se cortou 30%, vamos colocar 30% dos estudante que pagam”, disse.
A tese tem o apoio do governador da Bahia, Rui Costa (PT): “Alguém que pagou a vida inteira para os seus filhos em escola particular cara não tem condições de contribuir com a universidade? Qual problema que tem isso? Isso é proibido por quê? Eu não vejo problema nenhum. Isso é considerado um tabu. Quem é contra não é contra que rico pague, mas acha que isso é início da privatização da universidade. Que o passo adiante é cobrar de todo mundo. Então, fica esse discurso temeroso”. O governador baiano, no entanto, fez questão de salientar que é contra a privatização de universidades públicas.
O que diz a Constituição
O ensino público gratuito é garantido pelo artigo 206 da Constituição, que menciona a gratuidade como um de seus princípios, incluindo cursos universitários, de graduação, mestrado e doutorado em universidades municipais, estaduais e federais e institutos tecnológicos.
Para mudá-lo, é necessário aprovar um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), com o voto favorável de três quintos dos parlamentares, depois de duas discussões na Câmara e no Senado. Há ainda decisões semelhantes do Supremo Tribunal Federal que impediram cobrança até de taxas de matrícula em instituições públicas. Desde a promulgação da Constituição, em 1988, houve oito propostas de emendas para permitir algum tipo de cobrança nas universidades. Todas foram rejeitadas ou arquivadas. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a permitir que as universidades públicas cobrassem por cursos de especialização lato sensu.
Embora instituições públicas de ensino sejam historicamente elitizadas no país, políticas compensatórias, como a Lei de Cotas, amenizaram essa distorção, como mostram as Sínteses dos Indicadores Sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o órgão, o percentual de alunos que frequentavam o bacharelado presencial nas instituições públicas por meio de reserva de vagas quadruplicou de 2009 a 2016, de 5,6% para 22,7% (de 45.676 para 270.648 matrículas).
A sanha do atual governo contra o ensino e a política (na posse do ministro Weintraub, em abril, Bolsonaro, pai de um senador, um deputado federal e um vereador, disse: “Queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”) tem o objetivo claro de manter os trabalhadores e demais setores oprimidos da população alheios à cultura e à participação consciente na vida nacional, com a perspectiva da perpetuação da exclusão social e do favorecimento ao capital nas relações econômicas. Como diz o milenar ensinamento de Epiteto ( 50 d.C. – 135 d.C.), filósofo grego que viveu a maior parte de sua vida como escravo em Roma, na época de Nero: “Só os educados são livres”.
Carlos Pompe, jornalista da Contee