Morador de um beco na periferia de Porto Alegre, Zeca, 52 anos, vivia pedindo dinheiro para comprar leite Ninho para sua filha com deficiência motora e cognitiva. Em 2015, quando ele ganhou uma boa grana de um processo na justiça, a questão do leite parecia finalmente estar resolvida. Mas não. Ele foi direto a um shopping e gastou todo valor em um tênis marca, deixando muita gente perplexa. Assim ele explicou:
Todo mundo se comove com minha filha, e leite não vai faltar. Mas ninguém se importou comigo quando quase morri de frio na fila do posto tentando interná-la, quando sou perseguido pelos guardas de shopping como se fosse ladrão só porque sou pobre. Eu tenho direito a ter coisa boa também. Agora que eu comprei as roupas à vista, me respeitam. Volto no shopping sempre que posso só para passar na frente da loja e ver os vendedores dizer: “OI, SENHOR ZECA!”. Eles dizem meu nome.
A história de Zeca é comum a grande parte da população brasileira que teve o sentido de suas vidas alterado com a inclusão pelo consumo da era Lula. Esta coluna traz alguns resultados e histórias de uma pesquisa de campo sobre consumo popular e política feita durante uma década (2009-2019), em parceria com a antropóloga Lucia Scalco. Nosso interlocutor de pesquisa queria sentir o efêmero prazer e poder proporcionado pela compra de um objeto de status. Mais do que isso, ao dizer que era chamado pelo nome pelo vendedor da loja, ele estava reivindicando sua própria existência numa sociedade capitalista, marcada pela exclusão.
O consumo passou a ser um meio fundamental de reconhecimento, visibilidade e cidadania entre as camadas populares nos últimos anos, com consequências na democracia brasileira.
Nasceu a esperança
A periferia de Porto Alegre é um laboratório para observar as transformações políticas recentes do país. A cidade, governada pelo PT por 16 anos (1990-2006), foi um dos berços do Orçamento Participativo (OP) e um dos símbolos do Fórum Social Mundial. Porto Alegre era internacionalmente conhecida como um modelo de democracia radical. Hoje, a realidade é outra: Bolsonaro venceu em todos os bairros.
Durante os governos do PT, as reuniões do OP eram um canal fundamental de mobilização social. Seu maior legado foi fomentar o espaço coletivo, dando a oportunidade da mulher pobre pegar o microfone e falar sobre suas prioridades.
Após anos de mobilização popular, com a vitória de Lula em 2002, inicia-se uma nova era do PT – o lulismo –, caracterizada por políticas de redução da pobreza, inclusão social e financeira em conciliação com as elites. Mas a relação entre o estado e a população se tornava a cada dia mais individualizada e despolitizada, demandando menos esforço na construção do coletivo. “Toma aqui o seu cartão Bolsa Família, cumpra o check-list e tchau”. Aos poucos, houve uma gradual desmobilização das bases petistas e o esvaziamento da lógica coletiva. Mas isso não era um problema enquanto a economia ia de vento em popa.
No plano social mais do que na transformação das instituições, o lulismo focou-se no acesso: a direitos, universidades, crédito e bens materiais. As novas classes médias e os pobres andando de avião pela primeira vez se tornaram emblemas nacionais. Vale notar que o verbo “brilhar” foi amplamente utilizado por acadêmicos e formuladores de políticas públicas para descrever essa fase marcada pela esperança e emergência de uma nação.
Mas como esse grande momento nacional impactou na formação política dos sujeitos de baixa renda? Diferentes pesquisadores, como Wolfgang Streeck e Lena Lavinas, concordam que políticas públicas neoliberais, como a inclusão financeira e inclusão pelo consumo, levam à erosão da democracia, à retração de bens públicos e ao esvaziamento da política no tecido social. Nesses anos acompanhando os “novos consumidores”, vimos os espaços coletivos minguarem, os bens públicos se degradarem e o tio do pavê que comprava um carro se achar superior a seus vizinhos.
É inquestionável que o foco na inclusão pelo consumo causou enfraquecimento democrático em muitos níveis. Mas essa não é a história completa. Em paralelo, trouxe também um despertar político e uma transformação na autoestima e no orgulho das pessoas de baixa renda, o que chamo de autovalor.
Quanto mais as pessoas compravam “coisa boa”, mais conscientes eles se tornavam do quanto as elites não engoliam a figura do pobre orgulhoso. Pobre tem que ser eternamente humilde, servil e grato pelas migalhas que ganha.
Em uma sociedade que joga na cara o tempo todo que os pobres não são merecedores das coisas boas, a aquisição de bens de prestígio pelas camadas populares é um ato poderoso de enfrentamento de preconceitos. Como Katia, 37 anos, sobre seu recém-adquirido óculos Ray-ban:
“Eu sei que quando uma negona como eu usa um Ray-ban no ônibus, fedendo a água sanitária, as pessoas pensam que é pirataria. E eu me importo? [gargalhadas] Dane-se racista! Eu estou me achando uma negona muito gostosa e chique.”
Betinho, 17 anos, me disse uma vez que seu boné da Nike era como uma capa de super herói: “Eu deixo de ser o pobre favelado que ninguém vê”.
Talvez o efeito político mais importante da inclusão pelo consumo foi um incipiente processo do que chamamos de insubordinação. No livro “Laughter Out of Place”, de Donna Goldstein, é descrita uma cena de uma patroa que leva sua empregada num restaurante em Copacabana dos anos 1990. A trabalhadora doméstica fica constrangida sem saber como agir naquele lugar, que sente que não lhe pertence. O Brasil do século 21 é justamente o contrário: um país em que os mais pobres começaram a achar que são merecedores de “coisas boas” e que cada vez mais se sentiam à vontade para transitar num shopping ou num aeroporto.
Kátia prosseguiu falando dos óculos: “Eu ponho meu Ray-ban e subo no elevador social de cabeça bem erguida”. Em um ato microscópico, ela contesta a segregação social e racial dos espaços que transitava.
Isso também ocorreu na época dos rolezinhos. Nossos interlocutores não eram mais os meninos de gangues que, anos atrás, assaltavam na calada da noite para ter um boné. Eles se orgulhavam de estar trabalhando e gostavam de ir ao shopping por onde entravam, como gostavam de enfatizar, pela porta da frente.
O ato de adquirir bens de status embaralha o monopólio de símbolos de prestígio das elites e ameaça romper com as relações servis que se perpetuam desde a escravidão. A autonomia de se comprar o que se deseja pode causar uma reação social devastadora.
Não é à toa que, na época dos rolezinhos em 2014, os shoppings centers fecharam as portas literalmente para os jovens de periferia. Era insuportável uma meninada brincando, cantando, namorando, comprando. Era insuportável ver a autoestima dos filhos dos novos consumidores. Era a metáfora do novo Brasil: o autovalor do pobre e o recalque das elites. Não demorou para a reação chegar, e o resto dessa história a gente conhece bem.
Então, o ódio emergiu
Quando falamos em “esperança” para se referir à era Lula, sempre ressaltamos que era uma esperança precária. Apesar da crescente insubordinação, nossos interlocutores falavam do ato de comprar como uma espécie de “último desejo”, demonstrando uma profunda consciência dos limites dessa inclusão.
Basta relembrar a história de Zeca, cujo prazer de ser chamado pelo nome após ter realizado uma compra cara, veio em meio a uma narrativa que enfatizava que ele havia quase morrido na fila do SUS. Dona Neli, 57 anos, trabalhadora doméstica e mãe de 16 filhos, sempre dizia que as meninas da favela engravidavam cedo e que os meninos morriam pelo tráfico. Ela não poderia dar uma casa ou pagar universidade, então comprava roupa boa porque “dignidade na aparência é só o que eu posso dar”. O pessimismo da narrativa não podia ser mais preciso: seu filho, Betinho, aquele mesmo que dizia que seu boné da Nike era uma capa de super-herói, foi assassinado com 12 tiros em uma chacina do tráfico.
O Brasil mudava rapidamente para melhor, mas também é verdade que as estruturas racistas, classistas e violentas se mantinham quase inalteradas.
Em 2014, o Brasil entrou em uma profunda crise econômica política e, em Porto Alegre, também de segurança pública. O resultado foi a degradação da vida cotidiana da periferia. Em pouco tempo, a grande narrativa de um país emergente e do “direito a brilhar” colapsou.
Grande parte da esquerda hegemônica desdenhou da crise econômica, mas foram os pobres que a sentiram na pele. Nossos interlocutores agora compravam e sonhavam menos. Com dificuldade de encontrar trabalho, não tinham mais cartões de crédito. Estavam com o nome sujo na praça, endividados em um dos sistemas bancários com os maiores juros do mundo.
Para muitos, o principal ganho da era Lula foi conforto material. Com a crise, eles não podiam mais comprar as coisas que tanto adoravam. Eles também perdiam as poucas coisas que restavam em assaltos que sofriam. Cássio, 18 anos, ex-rolezeiro, caixa de supermercado, foi assaltado duas vezes pelo mesmo sujeito na parada de ônibus na volta do trabalho às 23h. O celular roubado custara o salário de um mês inteiro de trabalho – em quem será que Cássio votou para presidente?
Foto: Robson Ventura/Folhapress.
Ao perderem seus bens, as pessoas perdiam um pilar de sua identidade, reconhecimento e cidadania, gerando uma crise que também foi existencial. Nada mais restava, nem os bens públicos, que se encontravam ainda mais deteriorados.
A angústia, a violência e o desalento cotidiano foram vividos de maneira individualizada e deslocada do coletivo, já que os fóruns comunitários foram esvaziados. Não havia mais nenhuma política de base de esquerda no cotidiano da periferia.
O que restou então? Uma mídia hegemônica que apenas batia na corrupção do PT, igrejas evangélicas oferecendo conforto e um candidato autoritário prometendo, pelo WhatsApp, acabar com “tudo que está aí”. A verdade é que, entre 2014 e 2018, um vácuo político tomou forma e ficou pronto para ser preenchido.
O problema não foi a inclusão pelo consumo em si, mas a forma como ela foi feita: a soberba da confiança de que só ela bastaria sem mexer de forma profunda na estrutura da desigualdade social. O problema foi ter virado as costas para as periferias acreditando que somente a autoestima dos novos consumidores seria suficiente para produzir uma fidelidade partidária eterna.
*Nomes foram omitidos para preservar a identidade das fontes.
Por: Rosana Pinheiro-Machado
Fonte: The Intercept Brasil (theintercept.com)