Por Marcos Hermanson, no Brasil de Fato
Dados foram divulgados esta semana pela CNI; economistas ouvidos pelo Brasil de Fato explicam os motivos
Você se lembra de ouvir seus long plays em uma vitrola Gradiente, ou de ter na cozinha um fogão bege da Prosdóscimo? Sua infância foi povoada por consoles de videogame produzidos pela Dynacom, ou será que você chegou a ver um autêntico carro Gurgel circulando pelas ruas da cidade? Se a resposta foi sim para ao menos uma dessas perguntas, então você provavelmente viveu uma época em que a indústria nacional tinha mais relevância na vida da população.
Nesta semana a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou números do setor industrial no país, atualizados para 2019. Segundo estes dados, a indústria de transformação ocupa hoje apenas 11,3% do total do PIB, menor patamar desde 1947, enquanto a indústria como um todo – o que inclui a extração de minérios, petróleo, gás natural e a construção civil – representa 22% do PIB.
Em 1986, auge do indústria no Brasil e época em que as marcas mencionadas acima ainda eram mais presentes na vida dos brasileiros, esse setor respondia por 27% dos empregos com carteira assinada dentro do território nacional. Hoje ele representa apenas 15% do total.
Enquanto produtos básicos como a soja, o milho e outras commodities respondem por 50% das nossas exportações, os produtos manufaturados são 83% de tudo que o país importa.
O mundo já fala na quarta revolução industrial e nas economias do conhecimento, mas o Brasil continua a exportar principalmente produtos agrícolas e importar, a muito custo, bens de alto valor agregado, alguns dos quais antigamente produzíamos aqui.
E o que explica esse processo? Foi o que o Brasil de Fato perguntou aos economistas Márcio Pochmann e Paulo Kliass.
Uma tendência mundial?
“No mundo atualmente nós temos dois tipos de desindustrialização. A primeira é a chamada desindustrialização madura, em que, à medida que o país for elevando a renda da população, ela vai concentrando a sua renda na aquisição de bens industriais. Fogão, geladeira, microondas, automóvel”, diz Pochmann, que é economista e já atuou no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e no Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Isso significa dizer que quando chega esse patamar, o acréscimo de renda que vai vir para essa população deixa de ser direcionado para o consumo de bens industriais e passa a ser concentrado nos serviços”.
Para Paulo Kliass, doutor em economia e especialista em políticas públicas, não foi esse o processo observado no Brasil. “Tem muita gente que diz ‘não, mas não é necessariamente ruim a desindustrialização. Veja o que acontece nos Estados Unidos, nos países europeus, nos países escandinavos, tem também uma redução da participação da indústria’. Isso é verdade, mas eles têm redução da participação da indústria a troco de uma participação maior dos setores de elevadíssimo valor agregado. Na nossa desindustrialização, não. A gente tá caminhando para trás, substituindo a indústria por exportação de produtos primários e uma área de serviços de baixíssima qualificação”, afirma ele.
Os motivos
Não há consenso sobre o que causou o processo de desindustrialização vivido pelo país desde os anos 80, mas é possível apontar fatores comuns na leitura de grande parte dos economistas. Entre eles, a incapacidade da indústria nacional em acompanhar o avanço tecnológico; os juros e a taxa de câmbio alta; a transferência de plantas industriais e a financeirização da economia.
“[Na] desindustrialização chamada precoce, que é o nosso caso, e de alguns outros países latino-americanos, a indústria perdeu importância porque a população simplesmente não teve a capacidade de adquirir bens industriais. No Brasil os serviços que crescem não são os que estão vinculados à produção, mas à concentração de renda: trabalho doméstico, segurança, passeador de cachorro, limpador de piscina, personal trainer, várias ocupações que dependem não da indústria, mas da renda concentrada de poucas famílias” afirma Pochmann.
“Com o Plano Real o Brasil combinou altas taxas de juros para atrair capital estrangeiro, com valorização cambial. Então o setor produtivo teve que conviver com um custo de produção muito inadequado: moeda valorizada e taxa de juros muito elevada, o que tornou muito cara a atualização tecnológica do setor industrial”.
Kliass e Pochmann concordam que as altas taxas de juros dificultam a aplicação do investimento na produção, enquanto a taxa de câmbio elevada facilita a importação. Essa combinação praticamente impossibilita as indústrias brasileiras de competirem em pé de igualdade com as estrangeiras.
“Nessas últimas três décadas, o processo de desindustrialização interna fez a gente passar a importar bens que antes eram produzidos internamente. Em 1990, na fase mais aguda do neoliberalismo, propunha-se a liberação completa das fronteiras [e o] fim das proteções para a indústria nacional, com a ideia de que o importado é melhor e mais eficiente, e que o Brasil só teria a ganhar com essa abertura de fronteiras”, diz Kliass.
“A abertura feita pelos governos dos Fernandos, Collor e Cardoso, não permitiu uma pariação prévia do setor produtivo. Simplesmente o expôs a competição internacional sem que houvesse condições isonômicas de competição”, afirma Pochmann.
Quem lucra com isso?
“A desindustrialização vai mudando a composição das frações de classe no Brasil. Houve famílias [donas de indústrias] que se desfizeram de sua atividade industrial, vendendo para empresas estrangeiras, se associando ao rentismo. Então uma parte da burguesia industrial virou rentista, abandonou a indústria, vendeu seu setor produtivo e passou a viver de renda. Outra parte se transformou em comerciante. Passou a produzir na Ásia e a vender internamente”, diz Pochmann.
Ao mesmo tempo em que aponta esse caráter rentista das elites nacionais, ao seu ver desinteressadas em um processo de industrialização, Kliass defende como solução a retomada do papel indutor do Estado: “Reforçar a presença do Estado nos setores estratégicos. Na área financeira, por exemplo, pela capacidade de investimento e crédito, e na área do petróleo. Aumentar a produção de conhecimento, com políticas públicas para a educação nas universidades e nos laboratórios de pesquisa. Mudar a política comercial no sentido de encontrar nichos estratégicos onde o Brasil tem ganho de competitividade em relação ao resto do mundo e protegê-los, assim como as economias avançadas protegem os seus”, conclui ele.