A decadência dos EUA e a ascensão da China são os fenômenos econômicos e geopolíticos mais relevantes do nosso tempo. Eles dão o tom dos conflitos internacionais e explicam a estratégia agressiva dos EUA para preservar e se possível ampliar a sua hegemonia.
Entre os meios usados pelo império para manter o domínio global destacam-se a chamada guerra híbrida e as revoluções coloridas, que transformaram a realidade do Oriente Médio e levaram a mudanças de regime no leste europeu favoráveis a Washington e contrários aos interesses da Rússia. Esta, sob o governo Putin, transformou-se na mais forte e poderosa aliada da China na batalha por uma nova ordem internacional esboçada em iniciativas como a formação do Brics, a criação do Banco Asiático de Investimentos e Infraestrutura e de uma nova “Rota da Seda”.
Os países da América Latina e Caribe também são palcos deste duelo, com os EUA em aliança com as forças conservadoras locais, principalmente as de extrema-direita, trabalhando para destruir as experiências de governos progressistas que, eleitos pelo povo, que derrotaram a Alca (em 20015) e deflagraram um processo de transição geopolítico na região hostil a Washington, que estimulou golpes de Estado em Honduras (2009), no Paraguai (2012) e Brasil (2016) para reverter o cenário político.
Objetivos na Venezuela
Neste momento, a Casa Branca não poupa esforços e conspira abertamente para derrubar o regime bolivariano liderado por Nicolás Maduro, que significativamente é apoiado por Moscou e Pequim. São dois os principais objetivos dos EUA na Venezuela: apoderar-se das maiores reservas de petróleo do mundo e conter a expansão da China na região que os imperialistas norte-americanos consideram como seu “quintal’. O resto é retórica sem substância real.
A China é a nação mais rica e mais próspera do globo hoje. O histórico das estatísticas econômicas revela a superioridade do seu socialismo de mercado sobre o capitalismo neoliberal do Ocidente. O governo estadunidense, presidido pelo bilionário Donald Trump, iniciou uma temporada de guerra comercial contra o gigante asiático com o objetivo de interromper e reverter a sua ascensão. Até agora não teve êxito, mas estende sua estratégia agressiva não só para o campo comercial. Suas apostas provavelmente contemplam também a chamada guerra híbrida e lembram os eventos de 1989 na Praça da Paz Celestial, nos quais ficaram impressas as impressões digitais subversivas do poderoso império.
Abaixo reproduzimos reportagem publicada recentemente no jornal “Valo Econômico”, assinada por Katsuji Nakazawa e intitulada “Exigências dos EUA abalam as bases do poder na China”, sobre o alarme que autoridades chinesas fizeram soar sobre a necessidade de prevenir contra a tentativa de fazer vingar no país uma “revolução colorida”. As frases entre parênteses foram observações críticas acrescentadas pela Redação do Portal CTB.
Aniversário da revolução
A polícia da China terá de impedir uma “revolução colorida” neste ano, o 70º aniversário da fundação da República Popular da China. A afirmação foi feita recentemente por uma importante autoridade da ordem pública, surpreendendo analistas da China no exterior.
A advertência veio de Zhao Kezhi, conselheiro de Estado e ministro da Segurança Pública, uma autoridade com poderes de vice-premiê, encarregada de manter a ordem pública. É raro que autoridades chinesas se referirem publicamente à necessidade de evitar levantes populares num país em que o regime do Partido Comunista é tido como perfeito.
Mas, no discurso feito na reunião nacional anual do ministério, em 17 de janeiro, Zhao disse que a polícia precisa “enfatizar a prevenção e oposição a ‘revoluções coloridas’, e lutar com firmeza para proteger a segurança política da China”. A transcrição do discurso se encontra no site do ministério.
Defender o sistema socialista
“Temos de defender com firmeza a liderança do Partido Comunista Chinês e o sistema socialista de nossa nação”, afirmou ele, acrescentando que a polícia precisa ainda “reagir contra todos os tipos de infiltração e atividades subversivas de forças estrangeiras hostis”.
O termo revoluções coloridas é uma referência aos movimentos de democratização que varreram a extinta União Soviética, o Leste Europeu e o Oriente Médio nas últimas décadas, derrubando regimes autoritários duradouros (na verdade, trata-se de governos aliados à Rússia, substituídos por aliados de Washington; na Ucrânia foi instalado um governo golpista de feição neofascista apoiado pelos EUA e a Otan).
Muitos movimentos receberam o nome de cores de flores. A Revolução Laranja de 2004-2005 na Ucrânia é um exemplo, assim como a Revolução Jasmim de 2010-2011 na Tunísia, que desencadeou a Primavera Árabe.
A China também registrou clamores parecidos em 2011, mas mensagens disseminadas na internet foram rapidamente sufocadas, com as autoridades entrando em modo de gerenciamento de crise.
Números invejáveis
A economia da China cresceu 6,6% em 2018 e foi novamente estimulada no começo deste mês por um aumento de 8,5% no consumo no feriado do Ano Novo chinês. Embora os dois números sejam invejáveis pelos padrões globais, eles não dão aos líderes chineses conforto suficiente.
Olhando em retrospecto, a economia chinesa vem crescendo desde a introdução, em 1978, da política de “reforma e abertura”. Apesar dos altos e baixos, a população chinesa não interrompeu sua marcha em busca de mais prosperidade. Seu sentimento de satisfação com a política econômica tem sido a pedra fundamental da legitimidade do partido para governar.
É difícil prever o que acontecerá numa sociedade acostumada a crescer 10% ao ano se, de repente, o bolo crescer pouco. Mas essa incerteza provavelmente é o que levou o presidente Xi Jinping a alertar para o risco de um “cisne negro” em um pronunciamento recente. A expressão refere-se a eventos inesperados de grandes proporções.
Estratégia de Big Data
Por décadas a China alertou contra a teoria da Evolução Pacífica, uma crença de que o Ocidente, principalmente os Estados Unidos, estariam tentando transformar gradualmente o sistema socialista da China via meios pacíficos.
O Ocidente, diz a tese, faria isso espalhando ideias políticas e estilos de vida ocidentais e incitando o descontentamento, encorajando grupos a se mobilizar e a enfrentar o Partido Comunista.
A ansiedade é um reflexo do trauma sofrido pela China ao assistir o colapso da União Soviética, em 1991. A cautela da China com a teoria da Evolução Pacífica posteriormente se transformou em vigilância contra a ameaça mais iminente das revoluções coloridas.
No discurso de janeiro, o chefe de polícia, Zhao Kezhi, falou sobre como evitar uma revolução colorida. A polícia vai empregar uma “estratégia de Big Data”, disse ele, e usar tecnologia digital de ponta.
Na China, já aconteceu de um criminoso procurado pela Justiça ser presos num grande show de música. Câmeras de vigilância instaladas nas arenas e outros espaços públicos permitem o uso de sistemas de reconhecimento facial. O mesmo sistema monitora hóspedes que chegam a hotéis.
Supremacia tecnológica
Essa estratégia de Big Data é viabilizada por empresas de tecnologia como a Hikvision Digital Technology e Hytera Communications. Sediada em Hangzhou, a Hikvision é a maior fabricante de câmeras de vigilância do mundo, enquanto a Hytera, sediada em Shenzhen, é uma grande fabricante de equipamentos de rádio e sistemas de rádio para a polícia.
Essas empresas estão agora no centro da disputa entre os EUA e a China que, à primeira vistas parece envolver questões econômicas e comerciais, mas no fundo é uma luta pela supremacia tecnológica.
Os EUA começaram a impor sanções a essas companhias com a aprovação da Lei de Autorização de Defesa Nacional, no terceiro trimestre de 2018. A partir de agosto de 2020, empresas que estiverem usando em seus escritórios produtos fabricados por cinco companhias chinesas de tecnologia, incluindo a Hikvision e a Hytera, serão proibidas de fazer negócios com órgãos do governo dos EUA.
Mobilizar o Big Data e acelerar a “China Digital” são pilares importantes do “Made in China 2025”, o programa chinês de desenvolvimento de setores “high-tech”. Washington já exigiu que a China abandone totalmente a iniciativa.
O controle duro exercido pela China sofre a informação é bem representado pelo bloqueio a plataformas internacionais de redes sociais, como Google e Facebook. O temor é que o fluxo livre de informações possa ameaçar o sistema de governo do Partido Comunista (afinal, conforme mostraram informações vazadas pelo Wikileaks as grandes empresas de informática dos EUA estão associadas ao serviço de espionagem global montado pela CIA, NSA e Pentágono).
Enquanto isso, o WeChat e outras redes sociais chinesas podem ser usadas livremente nos países ocidentais. O Ocidente teme que, por meio delas, informações possam ser coletadas em todo o mundo pela China. Memes da internet que criticam o Partido são deletados e, em alguns casos, as contas são suspensas abruptamente.
Com uma confiança recém-adquirida em suas habilidades de tecnologia da informação, a China está trocando sua tradicional posição defensiva por uma mais ofensiva, tentando ampliar o alcance de sua rede de informações.
A batalha pela supremacia dos dados é o que está por trás da decisão de excluir a gigante tecnológica chinesa Huawei Technologies do fornecimento de infraestrutura para as redes de comunicação 5G da próxima geração. Os EUA querem impedir que informações de todo o mundo, inclusive do próprio país, fluam para a China.
Enquanto houver confronto, são mínimas as possibilidades de a China permitir buscas no Google e acesso ilimitado ao Facebook em seu território, sem censura.
Guerra comercial
Permitir isso afetaria a base da política de propaganda e de governança do partido. O mesmo vale para as negociações comerciais entre EUA e China, que entraram numa fase crítica antes do prazo final de 1º de março para que os dois países cheguem a um acordo.
O representante comercial dos EUA, Robert Lighthizer, que liderou a delegação americana em Pequim, na semana passada, disse que “questões estruturais” são importantes, assim como mecanismos para fazer a China cumprir os acordos. Mas a China insiste que é impossível mudar a base de seu sistema econômico. As divisões entre os EUA e a China são grandes.
O principal foco das negociações sino-americanas não está mais no desequilíbrio comercial bilateral. Está na “proteção da segurança política da China”, segundo disse o ministro da Segurança Pública, Zhao, em seu discurso.
As exigências comerciais dos EUA se aproximam do centro do regime do partido. A insistência de Washington para que Pequim elimine os subsídios às estatais chinesas é um exemplo disso.
O fortalecimento das empresas estatais é um dos pilares da “nova era” de Xi. O próprio presidente chinês faz vários apelos por estatais “mais fortes, melhores e maiores”. Se os EUA interferirem, as conquistas de Xi poderão ser invalidadas, e sua autoridade, minada (note-se que a política da China, neste e em outros aspectos, é uma antítese da receita neoliberal que o governo estadunidense pretendem impor a todo o mundo).
Até mesmo companhias estatais ineficientes podem ter lucro e sobreviver na China, pois recebem tratamento favorável do governo, que permite seus oligopólios.
Além do mais, mudanças de pessoal na cúpula das estatais são feitas com o mesmo mecanismo que o partido e o governo usam no rearranjo de suas lideranças. Executivos graduados de estatais são trocados regularmente segundo interesses do Comitê Central do partido. Eles não são executivos no sentido ocidental da palavra, e sim burocratas que desempenham um papel no Partido Comunista.
Assim, Xi não pode negar a si próprio esse pilar da “nova era”. Como a liderança chinesa não pode abrir mão de seu controle sobre o Big Data, que ela usa para manter a rede de vigilância que, acredita, irá evitar uma revolução colorida.
Antes das negociações comerciais da semana passada, o presidente americano, Donald Trump, não deixou claro se se reuniria com Xi, pressionando o líder chinês. O governo Trump ameaça aumentar as sobretaxas impostas a US$ 200 bilhões em produtos importados da China, de 10% para 25%, se não houver acordo até 1º de março. O tempo está acabando (na verdade já acabou sem que se chegasse a um acordo e um novo prazo final para o encerramento das negociações foi fixado: 27 de março, quando Trump tem um encontro marcado com Xi na Flórida).