Numa longa e dura audição no Congresso dos EUA, Michael Cohen comparou Donald Trump a um chefe da máfia, e acusou-o de o ter obrigado a mentir sobre os pagamentos para abafar relações extraconjugais.
Em muitos aspectos, a aguardada audição do antigo advogado pessoal de Donald Trump no Congresso norte-americano esta quarta-feira (27), tem sido tudo aquilo que prometia ser: horas e horas de um espetáculo televisivo impensável há poucos anos, com Michael Cohen a descrever um Presidente dos EUA em exercício como uma espécie de chefe da máfia, habituado a mandar ameaçar os inimigos e a mentir de forma descarada para atingir os seus objetivos
Mas a forma como os congressistas do Partido Republicano trataram esta testemunha da Comissão de Supervisão da Câmara dos Representantes, pondo em causa a sua credibilidade de uma forma por vezes brutal, indica que os dois lados da barricada – o Partido Democrata e o Partido Republicano – podem estar já a montar o cenário para uma peça ainda mais dramática: a abertura de um processo de impeachment do Presidente Trump na Câmara dos Representantes.
“Vergonha” de defender Trump
Quando Michael Cohen chegou ao Congresso para ler o seu depoimento inicial, por volta das 9h30 locais, as palavras que ia disparar contra Trump já eram conhecidas, uma vez que foram previamente divulgadas pela imprensa norte-americana.
“Tenho vergonha de ter participado na ocultação dos atos ilícitos do sr. Trump, em vez de prestar atenção à minha própria consciência. Tenho vergonha, porque sei o que o sr. Trump é. É um racista. É um vigarista. É batoteiro.”
Para além das questões de carácter, que foram muito discutidas em milhares de notícias sobre Donald Trump nos últimos anos (desde que anunciou a sua candidatura à presidência dos EUA, em Junho de 2015), o depoimento de Michael Cohen voltou a implicar o presidente norte-americano em crimes durante a campanha e já na Casa Branca.
Michael Cohen voltou a dizer, no Congresso, que Donald Trump o reembolsou dos pagamentos a uma antiga atriz de filmes pornográficos. Meses antes das eleições de novembro de 2016, a atriz, conhecida como Stormy Daniels, pediu 130 mil dólares para não contar que teve relações sexuais com Trump – um escândalo que poderia prejudicá-lo nas eleições. Cohen diz que fez esse pagamento por ordem de Trump, e que este lhe passou cheques quando já era presidente dos EUA.
Não é claro se esta informação vai acrescentar algo às investigações que ainda estão a decorrer – a do procurador Robert Mueller, supervisionada pelo Departamento de Justiça, mas também as do Congresso.
Cohen levou com ele a cópia de um cheque assinado por Trump, com dinheiro retirado da sua conta pessoal, mas isso pode ser pouco relevante. No ano passado, depois de meses a negar ter feito quaisquer pagamentos para abafar antigos casos amorosos, o Presidente norte-americano admitiu que passou cheques em seu nome pessoal, querendo dizer que o caso não pode ser visto como um problema de campanha eleitoral, mas sim da sua vida privada.
Crimes sem acusação
Mas a questão é que a decisão final sobre se Trump pode vir a responder em tribunal por quaisquer crimes, enquanto está a cumprir mandato na Casa Branca, cabe ao chefe do Departamento de Justiça. E o recém-empossado general William Bar, é conhecido por defender a tradição do departamento de considerar que um presidente em exercício não pode responder em tribunal.
Como colaborador muito próximo de Trump durante mais de uma década, entre 2006 e 2018, Michael Cohen foi arrastado para o centro da investigação sobre as suspeitas de conluio entre a campanha de Trump e a Rússia nas eleições de 2016, liderada pelo procurador especial Robert Mueller.
Em abril de 2018, o FBI fez buscas nos seus escritórios e em sua casa, e o então advogado do presidente transformou-se rapidamente num alvo importante do procurador Mueller – em dezembro de 2018, foi condenado a três anos de prisão, depois de se ter declarado culpado de vários crimes de fraude fiscal e bancária.
Por isso, é difícil que Michael Cohen tenha dito alguma coisa na sua audição no Congresso que a equipe do procurador especial não conheça. O que empurra tudo o que se passou esta quarta-feira para uma realidade paralela, que parece estar a ganhar forma num Congresso dividido: estará o Partido Democrata a preparar terreno para a abertura de um processo de impeachment?
Pressão sobre o Partido Democrata
Em causa está a forma como os congressistas do Partido Republicano trataram Michael Cohen, bombardeando o antigo advogado – e os milhões de norte-americanos que acompanharam a audição ao vivo – com duras acusações contra o seu carácter.
Afinal, Michael Cohen admitiu, em dezembro, que mentiu ao Congresso em 2017 sobre os negócios de Trump na Rússia – por isso, argumentaram os congressistas republicanos, como se atreve o Partido Democrata a pôr no lugar de testemunha principal, na Comissão de Supervisão da Câmara dos Representantes, um “mentiroso compulsivo condenado”?
A atitude agressiva dos congressistas republicanos revela também que o partido permanece ao lado do Presidente Trump – e se esteve ao lado dele até agora não é provável que o abandonem por causa do depoimento de um antigo advogado que trataram como se fosse um ser abjeto.
É uma forma de desacreditar Michael Cohen como principal testemunha num possível processo de impeachment contra Trump, desejado por alguns dos congressistas do Partido Democrata da ala mais progressista, eleitos em novembro do ano passado.
Mas se a maioria da Câmara dos Representantes abrir um processo de impeachment, isso está longe de significar que o presidente será destituído. Para que isso aconteça, é preciso que o Senado julgue as acusações desse impeachment e que condene o presidente com uma maioria de dois terços – um cenário pouco provável num Senado de maioria republicana e em que os congressistas conservadores se mantêm ao lado de Trump.
Seja como for, o episódio joga luz sobre a personalidade do presidente dos EUA, que se arvora ditador do mundo e cujo governo está empenhado neste momento em desestabilizar e destruir a Venezuela para se apoderar das maiores reservas de petróleo do mundo sob a falsa bandeira da defesa da democracia e dos direitos humanos.
Fonte: artigo de Alexandre Martins no site português Público