A criminalização da pobreza e o preconceito andam de mãos dadas numa completa simbiose. Fruto da desigualdade social e econômica, a pobreza é vista pela maior parte da sociedade como algo sujo, atribuindo à população que vive na pobreza características vis.
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A história brasileira nos mostra que a maior parte da população pobre do país é negra, isso porque mesmo com o fim da escravidão, recaíram leis que impediam pessoas negras de possuírem terra, por exemplo, fazendo com que pessoas livres permanecessem escravas de um sistema econômico que usa como desculpa a meritocracia enquanto se aplica a desigualdade de oportunidades.
Essa herança traduz uma equação que não fecha, quanto maior a desigualdade maior a pobreza e a violência, sinônimo de criminalização.
Além da pobreza também criminalizam todas as “minorias”, e os instrumentos que as aglutinam, como os movimentos sociais – que são a expressão da organização de pessoas que lutam para alcançar mudanças sociais, principalmente aquelas que questionam o sistema capitalista e a propriedade privada.
Movimentos que têm sua pauta em torno da moradia e da terra sofrem discriminação desde seu surgimento, são vistos como vândalos e baderneiros, e suas estratégias de luta como ocupações e manifestações de ruas, são criminalizadas.
Será preciso nos reinventar, nos reorganizar e mais uma vez voltar para as bases. A resposta está nas bases, de onde nunca deveríamos ter saído. É nas bases que se constrói consciência política e de classe. A resistência nos dias de hoje ecoa como sobrevivência em um sistema que acena para o aprofundamento do neoliberalismo em sua face mais nefasta.
No cenário atual, políticos querem tornar manifestações sociais atos de terrorismo, criminalizando os protestos de rua. Está em processo a tramitação, de forma bastante silenciosa, do projeto de lei que prevê alterações na lei antiterrorismo. Dentre as alterações querem retirar um artigo que salvaguarda movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional. Não nos resta dúvida que ações como essas beiram uma ditadura, onde as pessoas já não podem se manifestar, nem emitir opiniões contrárias às ordens estabelecidas.
Essa imagem que foi construída em torno dos movimentos sociais e da pobreza está ainda mais forte nesses últimos anos. Basta analisar as últimas manifestações. Se de um lado tínhamos manifestações de pessoas majoritariamente brancas e com as camisas da CBF, tidas como legitimas, de outro tínhamos as manifestações da classe trabalhadora que eram classificadas como baderna, que faziam manifestação no meio da semana para atrapalhar a vida das pessoas. Essas expressões estavam presentes nos noticiários, nas redes sócias e nas ruas.
A criminalização da pobreza e dos movimentos sociais não é um fenômeno novo, tem suas origens nos porões da “casa grande”, mas agora ela se descortina de forma bastante notória, sem máscaras.
Quem nunca ouviu alguém dizer que andava na rua e quando se aproximou um rapaz, comumente chamado de “elemento”, apressou o passo com medo de ser um ladrão? Ou as recentes reportagens, onde policiais atiraram contra um cidadão, porque confundiram um guarda-chuva com uma metralhadora? Ou ainda que atearam fogo em um acampamento de reforma agrária porque é considerado por muitos uma organização criminosa?
Segundo o IBGE 2017 cerca de 50 milhões de brasileiros vivem na linha da pobreza e têm renda inferior a meio salário mínimo. Como o Estado deveria tratar essa população? Sem sombra de dúvidas seria com políticas públicas que diminuísse a desigualdade e desmistificando o estereótipo da criminalização.
Tal estereótipo é reforçado pela mídia, através de noticiários e da teledramaturgia, e reforçado pela população ao naturalizar esse fenômeno.
A pergunta que nos resta é como construir um processo que desconstrua algo que está tão arraigado na memória das pessoas? Numa conjuntura em que se acirram todas as formas de preconceito e estereótipos, que cassam o direito dos movimentos sociais atuarem, quer seja na área da formação humana, quer seja na luta por direitos.
Será preciso nos reinventar, nos reorganizar e mais uma vez voltar para as bases. A resposta está nas bases, de onde nunca deveríamos ter saído. É nas bases que se constrói consciência política e de classe. A resistência nos dias de hoje ecoa como sobrevivência em um sistema que acena para o aprofundamento do neoliberalismo em sua face mais nefasta.
E a quem interessa a criminalização dos movimentos sociais? Se boa parte das conquistas sociais foram alcançadas através da organização popular, do diálogo, das pressões e mobilizações, eliminar os movimentos e qualquer forma de pressão popular através da criminalização interessa aqueles que querem retirar direitos e não avançar nas conquistas sociais que beneficiem a população pobre.
Interessa ao sistema capitalista a manutenção da desigualdade social, para que continuem a exploração de mão de obra barata e o enriquecimento em detrimento do trabalho humano. Por isso podemos afirmar que a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais é uma construção do neoliberalismo e quanto mais se aprofundam as mazelas do capitalismo, mais se atacam as organizações e formas de resistência. Por isso nesse momento a resistência é popular é fundamental para manutenção de direitos sociais conquistados ao longo de anos.
Vania Marques Pinto é secretária de Políticas Sociais, Esporte e Lazer