Acorda, Brasil, enquanto isto é possível!

Não há pior cegueira que a de não ver o tempo
E nós já não temos lembrança
senão daquilo que os outros nos fazem recordar
Quem hoje passeia a nossa memória
pela mão são exatamente aqueles que, ontem,
nos conduziram à cegueira.

                   (O Barbeiro de Vila Longe)

Esta epígrafe, que integra o emblemático livro do escritor moçambicano Mia Couto “O outro pé da sereia”, parece refletir sobre o atual contexto sócio-político brasileiro, em especial quanto à eleição presidencial ainda em disputa, e não sobre a ficção literária deste premiado autor.

O resultado eleitoral do primeiro turno da eleição presidencial e as pesquisas quantitativas de intenções de votos para o segundo conduzem à conclusão de que a ampla maioria dos mais de 144 milhões de eleitores acha-se acometida da cegueira de não ver o tempo, em todas as suas dimensões: passado, presente e futuro; deslembrando-se dos 21 anos de regime militar, marcados pela crueldade, pela intolerância política e à diversidade social, pelo ódio ao inimigo, torturado e morto nos seus porões, tendo como os seus tristes legados, dentre muitos outros, o Ato Institucional 5/1968 (AI-5), o Decreto-lei N. 477/1969, as chacinas do Araguaia (1972 a 1975) e da Lapa (1976) e a execução fria e covarde de Rubens Paiva (1971), Vladimir Herzog (1975) e Manuel Fiel Filho (1976); deslembrando-se do “caçador de marajás” e de suas bravatas, vitorioso nas eleições presidenciais de 1989, em pleito com flagrantes e incontestáveis semelhanças com o de agora.

A deslembrança dos que votaram em Bolsonaro no primeiro turno, e dos que pretendem nele votar no segundo, consoante os institutos de pesquisas, alcança também os anos a fio de luta sem trégua em defesa das liberdades democráticas, peremptoriamente negadas pelo regime militar, da anistia ampla e irrestrita, da campanha por eleições diretas para presidente da República, da convocação da Assembleia Nacional Constituinte e da Constituição Cidadã.

Ao votar em Bolsonaro, como se tivesse com a sua memória acorrentada em algum lugar inacessível, os eleitores que assim o fazem desprezam todos esses fatos históricos inapagáveis e, ainda que não seja este o desejo da maioria, renegam a ordem democrática e o Estado Democrático de Direito, o que o candidato escolhido sempre o fez, jamais tendo dado um só passo que seja em prol deles, em toda a sua trajetória política de 28 anos de mandato como deputado federal.

Ao reverso, a sua pregação política prima pela apologia ao regime militar, à tortura, aos torturadores, à pena de morte sem limites, pelo desprezo aos negros, a quem chama de malandros, às mulheres, aos homossexuais, à intolerância ideológica, à liberdade de ensinar e aprender, e a todos quantos cultuam as liberdades democráticas.
Por isso, o segundo turno da eleição presidencial, desafortunadamente, reveste-se de natureza plebiscitária: de um lado, os que querem preservar a ordem democrática, não importando se concordam ou não com a candidatura de Fernando Haddad e com as forças políticas que ele representa; de outro, os que visam ou se mostram indiferentes à restauração do autoritarismo, do cerceamento de todas as liberdades e do fim das bases democráticas.

Para que se saiba, efetivamente, o que representa a candidatura de Bolsonaro, basta que se verifiquem quem são os seus apoiadores. Parafraseando o personagem de Mia Couto, são os mesmos que, num passado não tão distante, conduziram um imenso contingente da população à cegueira, que volta a bater às portas do país.

Pode-se procurar com uma lanterna acesa ao meio-dia, como o fez o grego Diógenes à procura de um homem honesto, que não se encontrará um só apoiador de Bolsonaro, que, em maior ou menor grau, tenha empunhado a bandeira da ordem democrática. Todos os que a cultuam — ou, ao menos, não a desprezam — estão com a candidatura de Haddad, seja por opção, seja para salvar a ordem democrática, renegada por Bolsonaro.

Os milhões que pretendem votar Bolsonaro, acreditando nas suas falsas promessas de representar o novo, de unir a todos e de lhes garantir o futuro que esperam, parecem dar razão a Rabelais, em Pantagruel — livro III —, que, ao narrar um sonho deste personagem, diz: “Isso e muito mais sonhei, mas não entendo uma única palavra desse sonho”.

Longe de se pretender negar o livre exercício do voto, mas, neste dramático contexto político brasileiro, há de se perguntar se, dentre os milhões de eleitores de Bolsonaro, os que nele, sinceramente, depositam as suas esperanças de uma nova realidade social entenderam uma única palavra desse sonho. O tempo com certeza dirá, se desalentadoramente, se confirmar a vitória dele, indicada nas pesquisas, e, por conseguinte, a derrota do Brasil decente.

Acorda, Brasil, enquanto isto é possível!

José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino.


Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.