A regra legal da igualdade formal entre os indivíduos e o respeito a dignidade humana tem validade muito distinta entre as diversas sociedades. Por que isto acontece? Como é construído, na vida concreta e cotidiana, o valor diferencial das pessoas?
A visão ainda dominante no Brasil defende que são as relações pessoais com poderosos que permitiria subordinar, na pratica, o mandamento legal. Este seria o “jeitinho brasileiro” popularizado pelo antropólogo conservador Roberto da Matta e repetido tanto em círculos acadêmicos – como na recente palestra “vira lata” do ministro Barroso na Inglaterra – quanto nos botecos das esquinas do Brasil.
Tudo funciona como se existisse algum lugar no mundo onde o acesso a relações pessoais vantajosas não decidisse o destino individual das pessoas e que isto fosse uma “jabuticaba”, a qual só existe no Brasil.
Nunca é dito, por exemplo, que o acesso a pessoas importantes tem como pressuposto a incorporação anterior de capital econômico ou cultural. Ou alguém conhece alguma pessoa que tenha contatos importantes sem dinheiro ou conhecimento? Isso mostra cabalmente que o capital de relações pessoais é dependente do capital econômico e do capital cultural e não o contrario como diz a “teoria” do jeitinho.
Na verdade, no Brasil como em qualquer outro lugar onde o capitalismo é estrutura dominante, o valor relativo dos indivíduos – e das classes sociais que condicionam o ponto de partida individual – é decidido pelo acesso diferencial a capital econômico e cultural.
Como a propriedade econômica é muito concentrada a luta social de 95% da sociedade é por capital cultural em suas diversas formas. A incorporação de “conhecimento” implica um dado simbólico que explica por que as relações entre as classes não podem ser reduzidas ao dado econômico.
É que o conhecimento é a versão secularizada do “espírito” em oposição ao “corpo” animalizado como a matriz de todas as hierarquias sociais existentes entre as classes sociais – assim como dos “gêneros”, “raças”, etc. Assim, como tudo que ligamos a noção de superior, nobre e virtuoso se liga ao “espírito”, como lugar do conhecimento e da sensibilidade, tudo que achamos inferior e desprezível está ligado ao corpo como lugar dos afetos incontroláveis e da animalidade.
A união de conhecimento valorizado e prestigioso e uma suposta maior “sensibilidade” no consumo e na estilização da vida constrói tanto uma solidariedade interna entre as classes superiores quanto a base de seu desprezo e preconceito contra as classes populares. Entre as classes populares a incorporação de conhecimento técnico e útil para o mercado de trabalho competitivo, separa a classe trabalhadora, ainda que crescentemente precarizada, do que chamo provocativamente de “ralé brasileira”.
Esta classe super-explorada e desprezada é condenada, pelo abandono e desprezo secular de toda a sociedade, a vender sua “energia muscular” – como as empregadas domésticas e os trabalhadores sem qualificação – como um animal ou um escravo. Como o acesso a conhecimento útil exige pré-condições afetivas, emocionais e morais, além de pré-condições econômicas, só uma sociedade que generaliza o acesso a estas pré-condições a todas as classes pode garantir um patamar mínimo de respeito à dignidade de todos.
Paga-se de bom grado um eletricista que resolve um problema na fiação da casa, mas paga-se com menos boa vontade um guardador de carros em uma rua escura e vazia. Sabe-se que se paga, muitas vezes, para proteger o carro do próprio guardador.
O guardador de carro não possui o mesmo respeito já que não realiza trabalho útil, cujo pressuposto é conhecimento útil incorporado. Sente-se em relação a ele ou o desprezo do insensível, ou a pena de quem tem bom coração. Desprezo e pena são duas faces de uma mesma moeda.
Só sentimos pena ou desprezo em relação a quem julgamos inferior. Isso comprova que as avaliações e as hierarquias sociais se impõem a todos os indivíduos sejam eles canalhas ou pessoas de bom coração. As sociedades mais igualitárias e “dignas” são – não por acaso – aquelas que generalizaram, para todas as classes sociais, o acesso a educação de qualidade.
Entre nós a continuidade da escravidão sob a forma do sub-trabalho barato e humilhante se expressa no ódio elitista contra políticos como Brizola e Lula que focaram sua ação na boa educação para os pobres. É o que faz, hoje em dia, com grande sucesso, apesar da escassez de recursos, o governador do Maranhão Flávio Dino no seu Estado. Não existe vida perdida ou classes condenadas. Boa escola para todos é a verdadeira revolução brasileira.
Jessé Souza é sociólogo e professor universitário. Foto: Hugo Harada
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