1 – CUT: das raízes aos frutos
A idéia de criar uma central unitária de trabalhadores no Brasil ressurgiu quando a ditadura militar emitiu os primeiros sinais de que não contava mais com forças para se manter em pé. Mas a luta pelas centrais sindicais percorreria uma trajetória dramática desde então.
No final da década de 1970, o movimento sindical e as demais organizações democráticas começaram a deixar para trás o longo inverno ao qual foram condenados pela noite de terror que caiu sobre o país com o golpe militar de 1964. Em meados de 1977, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) descobriu que 120 mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (SP) perderam 34,1% de poder aquisitivo nos salários em conseqüência da compressão nos índices de custo de vida, determinada nos anos de 1972, 1973 e primeiros meses de 1974 pelo ex-ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto.
Outras categorias também foram atingidas. Mais de 10 mil jornalistas do Estado de São Paulo foram lesados em 12% e cerca de 100 mil bancários viram seus salários reajustados 17,8% a menos do que o índice de inflação. O estudo do Dieese desencadeou um movimento vigoroso para pressionar o governo pelo ressarcimento do prejuízo. Catorze sindicatos paulistas e outros tantos de outros Estados iniciaram, em agosto de 1977, a campanha pela reposição daquelas perdas. Reuniões e assembléias se espalharam pelo país. Outros sindicatos também consultaram o Dieese.
Tudo começou quando a revista Conjuntura Econômica, de julho daquele ano, divulgou a revisão das contas nacionais feita pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) — ligado à Fundação Getúlio Vargas. A revisão apontou um aumento de 20,5% no custo de vida de 1973, e não 13,7% como fora divulgado.
O substituto de Delfim Neto, Mário Henrique Simonsen, que assumiu o Ministério da Fazenda em março de 1974, reconheceu o erro em relatório enviado ao presidente da República, general Ernesto Geisel, e publicado pelo jornal Gazeta Mercantil. “Em 1973, o governo, procurando aproximar-se da meta de 12% de inflação, reprimiu ao máximo possível os aumentos de preços via tabelamento e controle (…). Assim, o índice, em dezembro de 1973, registrava a carne de primeira ao preço de 6,60 cruzeiros, quando o preço no mercado paralelo se situava em torno de 14 cruzeiros, ou seja, 112% a mais (…). Se os cálculos fossem corrigidos para tomar por base os preços reais do mercado e não os preços oficiais das tabelas, o aumento global do custo de vida em 1973 subiria 26,6%”, explicou o ministro.
Posições políticas de juristas e estudantes
Também em 1977, um movimento que surgiu em 1973, chamado “Carta das Mães da Periferia de São Paulo”, que lutava contra o alto custo de vida, transformou-se em “Movimento do Custo de Vida” (mais tarde rebatizado como “Movimento Contra a Carestia”). Uma assembléia popular com mais de sete mil pessoas lançou o abaixo-assinado pelo congelamento dos preços — que reuniu 1,3 milhão de assinaturas entregues ao presidente Geisel.
Outros importantes atores da luta pela redemocratização do país também irromperam no cenário político, como os juristas e os estudantes. Os primeiros marcaram sua posição com a “Carta aos Brasileiros”, divulgada em 11 de agosto de 1977, iniciativa de professores da Faculdade de Direito de São Paulo, entre eles Goffredo da Silva Telles. Assinada por 100 juristas, o documento exigia a volta do Estado de Direito e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.
Os estudantes já haviam se destacado na luta contra a ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970. A União Nacional dos Estudantes (UNE) praticamente deixou de existir desde então. Em setembro de 1977, a Polícia Militar ocupou a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) para impedir a realização do 3º Encontro Nacional dos Estudantes, que discutia o relançamento da UNE, mas, mesmo jogando bombas — que feriram gravemente alguns estudantes — e prendendo milhares, não teve êxito. O Encontro criou a Comissão Pró-UNE, cujo resultado foi a reorganização da entidade no seu 31° Congresso, realizado no dia 31 de maio de 1979.
Campeonato Paulista de Futebol
O movimento sindical passou dez anos sem promover grandes manifestações no Brasil. Desde 1968, quando os operários de Contagem (MG) e de Osasco (SP) cruzaram os braços contra o arrocho salarial, não ocorriam greves no país. Em 12 de maio de 1978, os trabalhadores da Scania, no ABC paulista, paralisaram suas atividades, afrontando a ditadura militar. As greves de Contagem e Osasco representaram o fim de um ciclo; a da Scania o início de outro, inspirando paralisações parciais em setores da Mercedes Benz e da Ford. Logo, o movimento se alastraria por São Paulo, Osasco, Campinas e outras regiões do país, numa explosão de greves que perduraria até dezembro daquele ano e se estenderia para o ano seguinte.
A campanha salarial dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema de 1979 começou em fevereiro. Assistindo à final do campeonato paulista de futebol no estádio do Morumbi entre Corinthians e Ponte Preta, o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Luis Inácio Lula da Silva, teve uma idéia: convocar uma assembléia capaz de lotar um campo de futebol. No dia 13 de março de 1979, mais de 80 mil metalúrgicos ocuparam o gramado e as arquibancadas do estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. A multidão repassava o discurso de Lula, que falava sem microfone. Começava a greve dos metalúrgicos daquele ano.
Solidariedade de diversas categorias
Dois dias depois, quando 170 mil trabalhadores já estavam parados em todo o ABC paulista, a greve foi considerada ilegal. Na madrugada de 22 para 23 de março, enquanto os metalúrgicos permaneciam em vigília no sindicato, de Brasília o ministro do Trabalho, Murillo Macedo, falava com o governador paulista, Paulo Maluf. Pouco depois, tropas da Polícia Militar garantiam a intervenção no sindicato. Com o estádio de Vila Euclides fechado, os trabalhadores faziam suas assembléias na Igreja Matriz de São Bernardo do Campo. Os metalúrgicos contavam com a solidariedade de diversas categorias, da Igreja Católica e de setores da oposição que atuavam legalmente no Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
O fundo de greve dos metalúrgicos, que teria papel fundamental na sustentação da campanha salarial de 1980, nasceu dentro da greve de 1979 com o objetivo de reunir a diretoria afastada, a comissão de negociações e os ativistas sindicais para traçar as diretrizes e dar direção ao movimento. Um manifesto “Ao Povo de São Paulo”, denunciou a intervenção federal nos sindicatos dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Santo André e São Caetano. O documento — assinado por diversos sindicatos, associações profissionais e outras organizações populares — convocava a população para um ato público de protesto que se realizaria no dia 23 de março de 1979 na Câmara Municipal de São Paulo.
Viagem do patronato aos Estados Unidos
O vigor da campanha possibilitou a Lula negociar uma trégua de 45 dias. No dia 27 de março de 1979, a greve foi suspensa com a condição de que nesse período fosse resolvida a questão salarial. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema exigiu também a reabertura do estádio de Vila Euclides, estabilidade no emprego por 120 dias, não desconto nos salários dos dias parados e a volta da diretoria cassada. Ao final da trégua, um acordo razoável foi assinado e a intervenção, suspensa.
O patronato também havia se preparado para aquele embate. Escaldados pelas greves de 1978, no dia 24 de janeiro de 1979 um grupo de doze dirigentes dos setores de recursos humanos de grandes empresas de São Paulo viajou para a Europa e Estados Unidos onde participaram de cursos sobre a realidade sindical daqueles países. Estudaram casos internacionais de negociação coletiva, conflitos trabalhistas, greves, técnicas de cálculo de produtividade do trabalho e diferentes políticas salariais em aplicação no mundo. O programa de visitas a empresas, sindicatos e países foi abreviado porque a maioria deles devia voltar ao Brasil para participar das mesas de negociações com os metalúrgicos do ABC paulista.
Questão delicada para os empresários
Os aumentos salariais acima do índice oficial começavam a despertar a atenção dos trabalhadores. A visita dos dirigentes empresariais à Europa e aos Estados Unidos teve como finalidade principal estudar formas de discutir o assunto nas mesas de negociações. Segundo a lei salarial vigente à época, o item produtividade deveria ser solucionado entre as partes. O ministro da Fazenda, Delfin Netto, afirmara à revista IstoÉ que, após o reajuste automático dos salários previsto na lei, “eles poderão sentar à mesa e discutir à vontade o aumento da produtividade”. E acrescentou: “Há sérias dúvidas sobre como vai funcionar isto ou aquilo, as pessoas ficam preocupadas com a forma de calcular a produtividade sem deixar de entender que essa é a discussão verdadeira, que se trata de sentar à mesa para discutir a distribuição funcional da renda. E vai aprender, na minha opinião. Todos vão aprender.”
A questão era delicada para os empresários. A produtividade do trabalho — criação de mais valor por hora trabalhada — crescia verticalmente e eles temiam que esse mecanismo levasse os trabalhadores a autocontrolar o processo por meio da organização nos locais de trabalho. A batalha por aumentos salariais acima do índice oficial ganhava volume rapidamente. A greve dos metalúrgicos exerceu influência sobre o restante das categorias no país e, ao longo daquele ano, mais de três milhões de trabalhadores cruzaram os braços em 15 Estados. Surgiram novas lideranças sindicais em várias regiões do país.
O auge da mobilização dos metalúrgicos
O grande impulsionador dessa retomada histórica das mobilizações foi o ato unificado do dia 1° de maio de 1979 — Dia Internacional dos Trabalhadores —, organizado por mais de 60 entidades sindicais. Pela primeira vez a data seria marcada por manifestação de massa desde que, no dia 1° de maio de 1968, estudantes e operários jogaram pedras no governador Abreu Sodré em São Paulo, tomaram o palanque da Praça da Sé e fizeram um protesto contra a ditadura militar. Era o auge da mobilização dos metalúrgicos do ABC paulista e os dirigentes sindicais diziam que a unidade dos trabalhadores seria vital na batalha contra os salários miseráveis, a falta de garantia no emprego e o custo de vida elevado.
O evento reuniu mais de 150 mil trabalhadores no estádio de Vila Euclides. Vinicius de Moraes recitou O Operário em Construção e correu a notícia de que o delegado Sérgio Paranhos Fleury — o chefe do Esquadrão da Morte, bando de policiais que atuava no Dops — morrera estranhamente afogado no litoral paulista. Esses acontecimentos ajudaram a mudar a face do Brasil. A redemocratização começava a ganhar impulso e o movimento sindical saiu fortalecido desses grandes embates com a ditadura militar. Aquela manifestação unitária seria o primeiro passo para um debate que marcaria o movimento sindical nos anos seguintes: a criação de uma central sindical.
2 – Agudo conflito de classes
Como se formaram as contradições que resultariam num agudo conflito de classes, que começaria a moldar concretamente as condições para a criação de uma central sindical de caráter unitário.
O ano de 1979 terminou com várias categorias se preparando para grandes lutas. A inflação atingiu o mais alto nível desde 1964, chegando a 77,2% — segundo informou a Fundação Getúlio Vargas (FGV). No meio do ano, no dia 26 de agosto, o “Movimento contra a Carestia” promoveu a “Passeata das Panelas Vazias”, exigindo congelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade, salário mínimo nacional e um abono salarial para todos os trabalhadores. Essas reivindicações constavam de um abaixo-assinado com 1,3 milhão de assinaturas entregue ao presidente da República, general Ernesto Geisel, no ano anterior.
Para enfrentar a crise, os dirigentes sindicais diziam que em 1980 os trabalhadores deveriam reivindicar uma escala móvel de salários como forma de recompor a perda do poder aquisitivo. As correções deveriam ocorrer assim que a inflação atingisse uma taxa em torno de 5%. Nem a então recente mudança na política salarial atenuaria a perda do poder de compra dos trabalhadores.
A Carta de Gragoatá
O general João Baptista Figueiredo substituiu Geisel na Presidência da República, no dia 15 de março de 1979, em meio à crescente onda de reivindicações trabalhistas. “Hei de fazer deste país uma democracia”, jurou o novo presidente. Uma das primeiras iniciativas do seu governo foi a elaboração de uma nova política salarial, com o regime de revisão semestral dos salários mediante a fixação de uma proporção da inflação. Conforme as faixas de salário, divididas em quantidades de salários mínimos (até 3 salários mínimo, de 3 a 10 salários mínimos e acima de 10 salários mínimos), o reajuste decrescia de baixo para cima. Mas a inflação galopante fazia com que em seis meses os salários perdessem mais do que perdiam antes em um ano.
Estavam dadas as condições para a explosão das lutas dos trabalhadores. O movimento sindical havia se reunido entre os dias 2 e 6 de agosto de 1979 em Niterói (RJ) e aprovara a “Carta de Gragoatá” recomendando, “desde já”, o começo de uma ampla campanha de mobilização e conscientização política sobre os significados sociais da recessão econômica. O documento dizia que, se necessário, os trabalhadores deveriam recorrer à greve geral para evitar que todo o custo da crise fosse descarregado em suas costas.
O “Encontro Nacional de Dirigentes Sindicais”, realizado no bairro de Gragoatá e organizado pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade) — entidade fundada em 1978 por um grupo de intelectuais tendo o arquiteto Oscar Niemeyer à frente —, concluiu que a recuperação da economia deveria ser fundada num programa de gastos em habitação popular, transportes coletivos e urbanos, educação, saúde, lazer e saneamento básico — além da dinamização da agricultura por meio da promoção da reforma agrária. Para isso, seriam necessárias reformas financeira e tributária. E seria necessária também a mudança de regime político.
Entendimento entre as elites
A “Carta de Gragoatá” pedia ao Congresso Nacional que refletisse sobre a necessidade de uma anistia geral, ampla e irrestrita, que libertasse os presos políticos e restituísse às suas ocupações todo e qualquer brasileiro afastado por motivos políticos, que desmantelasse os aparelhos de repressão e que revogasse as medidas de exceção. O documento dizia que a luta pela conquista da democracia era inseparável da resolução dos problemas sindicais.
O direito de greve e a estabilidade no emprego deveriam ser convertidos em princípios constitucionais aprovados em uma Assembléia Nacional Constituinte livremente eleita e soberana. Segundo o documento, a abertura política acenada pelo governo, apesar de ser em grande parte determinada pela ação dos movimentos grevistas que romperam as barreiras legais à autêntica atividade sindical, procurava reduzir os trabalhadores à condição de meros espectadores do entendimento entre as elites para modelar as transformações políticas segundo seus interesses.
Poderoso foco de luz
Uma central única dos trabalhadores deveria coordenar o processo de luta pelo fortalecimento dos sindicatos por meio da sindicalização e da organização nos locais de trabalho. A “Carta de Gragoatá” também disse que, pressionado pelo povo, o governo foi forçado a enviar ao Congresso Nacional um projeto de anistia que, embora parcial e restrito, era resultado do avanço das forças democráticas e populares. Mas denunciava que aquela ação governamental discriminava social e politicamente milhares de trabalhadores afastados de seus empregos pela brutal repressão da ditadura militar, que ficaram à margem dos benefícios da anistia.
O país começava a erguer-se contra a ditadura militar. A pequena fresta aberta com a proposta de anistia foi suficiente para lançar um poderoso foco de luz sobre os males da política econômica daquele regime para os trabalhadores. Os ditadores cumpriam um programa de governo assentado num modelo econômico ao qual alguns economistas deram o nome de “capitalismo selvagem”. Era a superexploração repressiva da força de trabalho, fundada na concentração da propriedade e das rendas e no controle político do país segundo os interesses do capital estrangeiro. No começo de 1980, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro era o 10° do mundo e o 3° da América, mas, no continente, o país ostentava o vergonhoso 18° lugar em qualidade de vida.
O “descalabro” salarial de Delfim
Criou-se, portanto, uma contradição entre a promessa do presidente Figueiredo e a realidade em que vivia a maioria dos brasileiros. Como conciliar algumas liberdades políticas com aquele perverso modelo econômico? “No compromisso que tomei perante a nação de fazer deste país uma democracia está implícito, também, e isso muita gente esquece, não permitir a transformação do Brasil em uma anarquia. Para não permitir a anarquia eu tenho a lei ao meu lado e ela vai ser cumprida”, disse Figueiredo. Ele se referia, evidentemente, às leis ilegítimas e fascistas elaboradas nos gabinetes dos governos que assumiram o poder após o golpe militar de 1964.
A virada do ano de 1979 para o de 1980, portanto, estava prenhe de lutas. Com base na nova política salarial, o governo havia decretado um reajuste para o mês de outubro de 50%, frente a uma inflação de 59%. O ministro do Planejamento, Delfim Netto, dizia que os aumentos reais dos salários eram as causas da disparada da inflação. Para ele, havia um “descalabro” salarial no país que precisava ser contido. Delfim Netto chegou a reunir-se com Lula e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos, Arnaldo Gonçalves, para propor uma trégua nas greves durante dois anos como instrumento de combate à inflação. O ministro ofereceu em troca algumas vantagens trabalhistas. A proposta, evidentemente, foi recusada.
Lula deu o tom da campanha
Os metalúrgicos paulistas iniciaram o ano de 1980 reivindicando aumento salarial de 15% acima do índice oficial. Os empresários, animados com a política de arrocho do governo, solicitaram aos dirigentes sindicais justificativas para aquele percentual. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, Benedito Marcílio, explicou: “O pedido de 15% de aumento real acima do INPC está diretamente ligado à manipulação de dados sobre o custo de vida, feita em 1973 pelo então ministro da Fazenda, Delfim Netto, hoje no Ministério do Planejamento, época em que os metalúrgicos tiveram prejuízos de 34% em seus salários.”
Ele fez a seguinte conta: em 1979, os trabalhadores conseguiram 63% de reajuste quando o custo de vida estava em 44%. Ou seja: conquistaram um aumento real de 19%. Para recuperar os 34% manipulados por Delfim Netto, faltavam, portanto, 15%. Lula, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, deu o tom de como seria aquela campanha salarial: “A categoria entendeu que os 15% atendem aos seus desejos imediatos e nada mais. Não temos de dar explicações aos empresários. Se explicações resolvessem, não teríamos entrado em greve em 1978 e 1979.”
Uma aspiração legítima
Logo no começo do ano, no dia 14 de janeiro de 1980, a Comissão Nacional da Unidade Sindical, representando sindicalistas de todo o Brasil, reuniu-se no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e decidiu que os trabalhadores deveriam lutar por um salário mínimo real e unificado, garantia no emprego, reforma agrária e combate à carestia. Para isso, foram programados o 1º de Maio unificado em âmbito nacional e a realização do 1º Congresso das Classes Trabalhadoras (Conclat) — que seria postergado para 1981 com a denominação de Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras.
No dia 1º de Maio, nos atos em todo o país um documento padrão seria divulgado, dando caráter unitário ao evento. Os representantes sindicais diziam que a realização da Conclat era uma aspiração legítima — uma vez que o governo permitia a realização de evento semelhante pelos empresários, o Congresso das Classes Produtoras (Conclap). Enquanto os trabalhadores se preparavam para esses dois eventos, a discussão sobre a produtividade voltava a pegar fogo.
3 – O batismo de fogo de Lula
A greve de 1980, comandada por Lula no ABC paulista. Depois deste evento, a face política do Brasil mudaria radicalmente.
O ministro do Trabalho, Murillo Macedo, que reclamava a paternidade da nova lei salarial criada pelo presidente da República João Baptista Figueiredo — para ele uma obra-prima —, a exemplo de Delfim Netto, dizia que, para combater a inflação, os aumentos salariais ficariam por conta da produtividade. “A atual política salarial fez com que se desse, pela primeira vez, papel de relevo à produtividade. Assim, precisamos produzir mais, com os mesmos meios — mesma tecnologia, mesmo capital e mesmo trabalho. Não há outra contribuição a ser dada pelo trabalhador, a não ser a de aumentar a produtividade”, disse ele. Com essa nova política salarial, dizia Murillo Macedo, as partes — empresários e trabalhadores — poderiam se entender nas mesas de negociações. Para o ministro do Trabalho, a fase de “gerenciar greves” — cerca de 150 em 1979 — estava superada.
Já Delfim Netto dizia que o problema do ganho de produtividade, segundo ele ao qual estava ligada a distribuição “funcional” da renda, ia depender de um “entendimento entre as partes”. Indagado sobre qual seria o limite desse entendimento, respondeu: “É o cumprimento da lei.” Quando a eclosão das greves de 1980 estava próxima, o comandante da Escola Superior de Guerra, almirante Carlos Henrique Rezende Noronha, declarou: “As greves devem respeitar a legislação vigente no país.” Estava armado o palco para um grande confronto.
Apoio de Lula ao empresário nacional
Para piorar a situação, membros do governo manifestaram “oficiosamente” a intenção de aceitar a concessão de um índice de produtividade de 10% e voltaram atrás. Um grupo de empresas multinacionais teria manifestado essa intenção, que foi prontamente rechaçada pelo ministro Delfim Netto. Obcecado com idéia de “combate à inflação”, ele chegou a ameaçar deixar o governo se a proposta fosse adiante — ignorando sua definição segundo a qual a distribuição “funcional” da renda estaria ligada ao ganho de produtividade por meio do “entendimento entre as partes”. A lógica do ministro se coadunava com os interesses dos empresários brasileiros, que julgavam o índice de 10% suportável apenas para as multinacionais.
Eles tomaram conta da comissão de negociações do Grupo 14 da Fiesp com a decisão de ceder o mínimo possível e recorreram ao governo para que as greves fossem reprimidas. Lula chegou a tocar no assunto durante a assembléia realizada no estádio de Vila Euclides no dia 3 de abril de 1980. “Os trabalhadores se dispõem a lutar ao lado do empresário nacional. Mas para isso é preciso que os empresários tirem a máscara e não paguem mais salários mínimos aos trabalhadores e que deixem de morar em palacetes enquanto a gente mora em favela, e deixem de comer peru enquanto a gente come ovo”, disse ele. Lula exercitava sua habitual capacidade de dizer as coisas com simplicidade e clareza, o que irritava o ministro Murillo Macedo.
Mudança no país começaria pelos metalúrgicos
Em assembléia realizada no dia 16 de março de 1980 no estádio de Vila Euclides, com a presença de 60 mil metalúrgicos, ele declarou: “Vocês que foram espezinhados, que sofreram durante 12 meses, dão hoje uma demonstração de que se alguma coisa tiver que mudar neste país, vai mudar a partir dos metalúrgicos do ABC.” Se referindo ao ministro do Trabalho, Lula disse: “Vocês viram o ministro mentindo na televisão. Vocês viram ele fazendo uma média com a política salarial que veio arrasar com os trabalhadores. Vocês viram ele dizer que os trabalhadores tinham que ficar atentos àquilo que os seus dirigentes queriam. E vocês sabem o que os dirigentes sindicais daqui querem: o bem-estar de cada um dos trabalhadores de São Bernardo do Campo e Diadema.”
Se precisasse recorrer à greve, Lula propôs “uma coisa bem melhor programada do que no ano passado”. Ou seja: receber o vale do dia 25, trabalhar até o dia 31 para garantir o recebimento integral no dia 10 de abril (a maioria dos salários era paga no dia 10 de cada mês), garantindo, com isso, pelo menos 25 dias de greve. Uma nova assembléia foi convocada para o dia 30 de março de 1980, um domingo de manhã. “Se até lá os patrões não tiverem feito uma proposta, a gente decide aqui que na segunda-feira à noite nenhum trabalhador liga a máquina, e pára o serviço de uma vez por todas”, discursou. Enquanto isso, os metalúrgicos realizariam demonstrações de força (fim das horas extras, operação tartaruga e manifestações) “para ir dobrando o ânimo dos empresários”.
Longos contatos com Delfim Netto e Golbery
A reposta do ministro veio em seguida. “Pode parecer constrangedor passar para a história como o responsável pela interrupção da carreira de vários dirigentes sindicais, porém, como empedernido defensor do processo democrático, aplicarei a lei e cumprirei as decisões da Justiça”, disse ele no dia 27 de março de 1980. Quando mais de 70 mil trabalhadores se reuniram em assembléia no dia 30 de março no estádio de Vila Euclides para aprovar a paralisação, as greves já haviam se espalhado pelo país. Professores, portuários, operários da construção civil, vigilantes, entre outros, também reivindicavam melhores salários. No mesmo dia, metalúrgicos de Santo André, São Caetano e outras cidades paulistas realizaram assembléias e igualmente decidiram pela greve.
A paralisação teria início na virada do dia 31 de março para o dia 1º de abril. Na segunda-feira, uma tensa reunião que durou 8 horas no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) terminou sem acordo. O ministro Murillo Macedo acompanhou os acontecimentos em São Paulo e ao saber que a reunião no TRT resultara em nada, comentou: “Pifou. Não deu.” No mesmo dia, ele reuniu-se com mais de 20 empresários — segundo o ministro, ali estavam 70% do PIB — e durante a conversa manteve longos contatos com Delfim Netto e o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva.
Justiça do Trabalho declara-se “incompetente”
No começo da madrugada do dia 1º de abril, numa assembléia realizada no auditório do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Lula pediu “cabeça fria para todo mundo” e transmitiu uma série de orientações que determinou o comportamento dos metalúrgicos nos dias seguintes. “Não se deve ir para a porta da fábrica, nem tomar o ônibus da empresa. Ficando em casa evitaremos provocações e repressões. Não tomem bebidas alcoólicas durante a greve. Se o sindicato for interditado, vão à igreja matriz de São Bernardo. Não acreditem nas notícias dos jornais, rádios e televisões. Cuidado com os boletins falsos. Evitem gastos supérfluos. Expliquem para suas esposas e filhos a razão da nossa campanha salarial. Eles são nossos aliados”, disse.
Na manhã do dia 2 de abril, quase 100 mil trabalhadores reuniram-se no estádio de Vila Euclides para ouvir a decisão do TRT de conceder de 7% a 8% de produtividade. Aquela instância da Justiça do Trabalha também declarou-se “incompetente” para decretar a ilegalidade da greve. Lula interpretou a decisão como “uma vitória da gente”. Ele tinha razão. Os trabalhadores, o governo, o país — todos, enfim — estavam acostumados à tendência de decretação sumária da condição de ilegalidade para qualquer tipo de greve. Além do mais, aquela decisão subvertia uma lógica muito comum em situações de conflito trabalhista: ao decidir que uma greve é ilegal, ou abusiva, a Justiça cria um efeito psicológico muito grande.
Vôos rasantes de helicópteros da FAB
Enquanto o advogado do sindicato, Almir Pazzianotto, expunha o resultado do julgamento do dissídio, dois helicópteros da FAB, com soldados do Exército exibindo metralhadoras, começaram a sobrevoar o estádio. Mesmo assim, a assembléia, depois de votar duas vezes devido ao barulho, rejeitou a decisão. “Permaneçam todos calmos. Isso é só intimidação”, disse Lula. Quando os trabalhadores começaram a dispersar, os helicópteros — agora eram três — voltaram a dar vôos rasantes, levantando poeira e papéis. Depois sobrevoaram a sede do sindicato.
A 5ª Seção do Estado Maior do 2º Exército informou em nota oficial que para aquele dia fora programada uma série de exercícios de treinamento de embarque e desembarque de helicópteros com soldados da tropa de elite do 2º Batalhão de Guardas. Informou também que os helicópteros, do mesmo modelo utilizado na Guerra do Vietnã, pertenciam ao 4º Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque, e transportavam, em vôos contínuos, oito soldados armados, além do piloto, co-piloto, dois artilheiros e o radiotelegrafista.
Respeito à decisão da Justiça do Trabalho
Em nota oficial do sindicato, que irritou os meios militares, Lula repudiou aquela demonstração de truculência. “Lamentamos que nosso Exército seja capaz de mandar seus helicópteros em vôos rasantes sobre quase 100 mil trabalhadores indefesos. Deploramos tão grande irresponsabilidade diante da vida e da segurança dos cidadãos. Somente o alto grau de consciência e a serena confiança dos trabalhadores evitaram uma tragédia de proporções incalculáveis. Responsabilizamos perante a nação os comandantes militares que ordenaram tais operações”, dizia o documento. Ao divulgar a nota, Lula afirmou que procurou, inutilmente, o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o comandante do 2º Exército, general Milton Tavares.
Sobre a decisão do TRT de declarar-se “incompetente” para decretar a ilegalidade da greve, Lula disse que “não haveria razão, pelo menos teoricamente, para a polícia ir para a porta da fábrica bater nos trabalhadores”. Segundo ele, a rejeição da sentença do TRT não deveria ser vista como uma radicalização, “mas sim como um direito dos trabalhadores de negociar com os empresários as questões sociais que interessam a eles”. A nota oficial também dizia que o sindicato recebeu “com todo o respeito a decisão da Justiça do Trabalho”. “A assembléia da categoria, hoje realizada, decidiu continuar a greve, não só pelas reivindicações econômicas, mas sobretudo pelas garantias sociais, principalmente a estabilidade no emprego”, afirmava o documento.
Negativa dos empresários em negociar
A estabilidade no emprego emperrara as negociações no TRT. Os empresários temiam que essa concessão fosse renovada constantemente, o que a tornaria eterna. O patronato nem quis conversar a respeito. “É inacreditável que justamente quando o governo, através dos ministros Delfim Netto e Murillo Macedo, diz que o maior problema nacional é o desemprego, os empresários não queiram negociar a estabilidade”, afirmou Lula. Murillo Macedo ainda tentaria salvar as negociações, sugerindo uma contraproposta de dois meses sem dispensa, mas já era tarde. Todos os sindicatos rejeitaram a decisão do TRT e a greve continuou também em várias cidades do interior do Estado.
No dia 3 de abril, a assembléia no estádio de Vila Euclides foi tensa. Lula afirmou que a categoria estava preparada para agüentar até 20 dias de greve e não temia a negativa dos empresários em negociar. O sindicato distribuiu bandeirinhas nacionais aos trabalhadores como forma de responder a uma eventual repetição da passagem de helicópteros militares sobre o estádio. Se isso ocorresse, os metalúrgicos deveriam agitar as bandeiras e cantar o Hino Nacional. Lula criticou a explicação dada pelo 2º Exército para a presença dos helicópteros na assembléia anterior. “Não é justo que o treinamento seja feito sobre a cabeça de 100 mil trabalhadores”, disse ele. O incidente dos helicópteros acabou sendo o principal tema da assembléia.
Arrecadação recursos e mantimentos
No domingo seguinte, o bispo de Santo André, dom Cláudio Humes, celebrou uma missa campal no estádio de Vila Euclides. Diretores do sindicato e membros da Comissão de Salários mantinham uma intensa busca de apoio à greve, visitando residências dos metalúrgicos e sociedades amigos de bairro. Lula alertou que o ministro Murillo Macedo estava acusando os metalúrgicos de pressionar os trabalhadores que não aderiram à greve e com isso incitava os empresários a ameaçar a categoria.
Prevendo o prolongamento da greve, os sindicatos do ABC paulista pediram que fossem criados “Comitês de Solidariedade” para arrecadar recursos e mantimentos. O Fundo de Greve deveria ser reforçado. Dom Cláudio Humes enviou cartas a todos os responsáveis pelas paróquias pedindo auxílio e que ajudassem a “conscientizar todo o povo para que se ponha sempre ao lado dos pobres”. “A igreja se colocou ao lado dos pobres, e nossa diocese também. A greve é justa e pacífica. Por isso, manifestei meu apoio. Penso que todos devem apoiá-la”, disse.
Para dom Cláudio Humes, “a luta dos metalúrgicos não era só deles, não só para o proveito deles, mas ajuda a todos os trabalhadores, pois pela força que os metalúrgicos dessa região têm fazem pressão sobre o próprio governo para que as estruturas sociais e econômicas do país sejam mudadas”. A ditadura militar preparava-se para intervir no sindicato e afastar Lula — o que para o governo significaria o fim da sua carreira política. Faltava o motivo. E ele foi buscado.
Um obstáculo que precisava ser vencido
A decisão do TRT de não decretar a ilegalidade da greve deixou o ministro Murillo Macedo confessadamente surpreso. No dia 3 de abril, uma quinta-feira, enquanto almoçava pato com laranja no restaurante “La Casserole”, em São Paulo, ele disse que só voltaria a falar do assunto no sábado ou domingo, quando retornaria da fazenda de um “amigo” em Jundiaí onde passaria a sexta-feira santa “para dormir um pouco”. Mas deixou ameaças no ar. “Esse negócio de que não tem piquete é conversa fiada. Não tem piquete ostensivo, mas existe inclusive um operário da Volkswagen hospitalizado por causa dos espancamentos que sofreu quando saía do trabalho. Lamento que aqueles que se intitulam líderes induzam os operários a continuar em greve, desrespeitando a lei”, disse.
Os empresários também davam a sua contribuição. Na mesma quinta-feira, Murillo Macedo recebeu um telefonema de Antônio Ermírio de Moraes, da Votorantim. “Estão voltando ao trabalho. Convenceram-se que perdem com a greve”, disse o empresário. A comissão de negociações do Grupo 14 da Fiesp, mesmo depois de os trabalhadores terem reduzido à metade as reivindicações salariais, declarou-se “em recesso” e foi elogiada pelo ministro. “Se a comissão está em recesso, isso é bom, pois há uma decisão judicial sobre a questão e esta decisão deve ser cumprida”, afirmou Murillo Macedo. O problema era que essa decisão não servia de justificativa “legal” para a intervenção e o afastamento de Lula. Havia, no caminho do ministro do Trabalho, um obstáculo que precisava ser vencido. Era o governador paulista, Paulo Maluf.
Trabalhadores arrastados de volta ao ringue
Informações de bastidores diziam que por trás da decisão do TRT de declarar-se “incompetente” para julgar a ilegalidade da greve estava a mão de Maluf. O jogo malufista consistia em afastar Murillo Macedo da corrida à sucessão paulista. Amigo do presidente do TRT, ele teria orientado a decisão no sentido de evitar que o ministro do Trabalho ganhasse pontos junto às instâncias que decidiriam quem seria o próximo candidato a governador do campo situacionista.
É difícil calcular o peso que esse entrevero teve no desfecho do conflito. Os fatos mostrariam que se de fato Maluf estava puxando o tapete de Murillo Macedo logo eles se comporiam para atacar mortalmente a greve dos metalúrgicos. Se por um lado é difícil avaliar a influência dessa politicalha no round seguinte, por outro é fácil dimensionar o tamanho do desgaste que a greve sofreu com o longo período de impasse. Os trabalhadores seriam arrastados de volta ao ringue numa condição muito desfavorável.
Um novo julgamento político
Aos poucos, os metalúrgicos das cidades do interior do Estado retornaram ao trabalho. No dia 9 de abril de 1980 foi a vez de os trabalhadores de São Caetano do Sul decidir pela retomada das atividades. Sentindo o enfraquecimento da greve, empresários e governo se mobilizaram para que o TRT fizesse um novo julgamento. No dia 11, o Grupo 14 da Fiesp fez uma petição para que a lei de greve fosse aplicada, argumentando que a Justiça do Trabalho havia promulgado “um acórdão e os trabalhadores não o acataram, não voltando ao trabalho”.
Para Lula, a decisão seria óbvia. “Caso haja a declaração de ilegalidade da greve, o movimento vai prosseguir e os trabalhadores só voltam à fábrica quando obtiverem o que reivindicam. Para a opinião pública também vai ficar caracterizado que o Tribunal, que antes se declarou incompetente para julgar a nossa greve, por pressões do governo e dos patrões voltará a se pronunciar para declarar a mesma greve ilegal”, disse ele.
O julgamento ocorreu no dia 14 de abril. E, como era de se esperar, desta vez os juízes declararam-se “competentes”. Eles alegaram que a paralisação apreciada em 1º de abril contava com o apoio de 35 sindicatos e, com a desistência de 33 — apenas os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e Santo André estavam parados —, a greve havia mudado de perfil. Para o TRT, os metalúrgicos que voltaram ao trabalho acataram a decisão de 1º de abril. A ação rocambolesca incluiu uma complicada manobra jurídica. Antes de se declarar “competente”, o TRT julgou uma preliminar de “litispendência”. (O termo vem do latim litis, de lis — lide —, e pendentia, de pendere — pender, estar ligado. Há litispendência quando se repete ação que está em curso.)
Constituição e Emenda Constitucional
A preliminar foi rejeitada. Segundo o juiz relator do processo, Wilson de Souza Campos Batalha, a “incompetência” declarada no julgamento anterior “contrariou vasta jurisprudência firmada pelo próprio Tribunal, desde 1941”, e “nada impedia que ele retomasse a competência já manifestada em ocasiões anteriores”. Para o relator, “a competência normativa” do TRT estava prevista na Constituição de 1967 e na Emenda Constitucional número 1, de 1969 — ambas outorgadas pela ditadura militar. A manobra era tão acintosa que o advogado dos metalúrgicos, Almir Pazzianotto, ao falar antes da votação fundamentou seus argumentos em obra do próprio juiz relator.
Segundo Amir Pazzianotto, no seu trabalho Tratado de Direito Judiciário, Wilson de Souza Campos Batalha dizia: “Não há dissídio coletivo para fins declaratórios ao fato da mora salarial nem para qualificação da greve, como licita ou ilícita”. Mas o TRT, naquela altura, estava em outra, a começar por Batalha, que votou contra a sua própria doutrina depois de enroscar-se, juntamente com os demais 27 membros da corte, em debates de horas sobre assuntos como a tal “litispendência”.
Participação dos empresários no episódio
A composição do Tribunal era ligeiramente diferente daquela da sessão anterior. Três juizes classistas, representantes dos trabalhadores, votaram pela competência. Um deles, Afonso Teixeira Filho, indicado pela Federação dos Sindicatos de Trabalhadores em Empresas de Transportes, corrigiu o voto anterior alegando que “tinha sido enganado quando da leitura do acórdão que negava competência ao Tribunal para julgar movimentos coletivos de paralisação do trabalho”. Outro, que estava em férias, voltou para mudar o voto do seu substituto. “Não foi surpresa”, disse Lula ao saber do resultado. “Havia uma ordem do Executivo”, afirmou.
A participação dos empresários no episódio era aberta. Eles foram orientados pelo “especialista” norte-americano Paul F. Shaw, segundo os jornais com 30 anos de experiência em relações industriais. “Estamos tentando mostrar à classe empresarial como lidar com queixas e reclamações, de acordo com as resoluções positivas em outras partes do mundo. Também levando o tipo de pesquisa necessária para uma negociação trabalhista e quais as medidas que as empresas devem tomar para se protegerem diante de um movimento grevista. Ou seja, a proteção da propriedade e das pessoas”, declarou Shaw.
Motivo para a intervenção no sindicato
As lições foram bem assimiladas. Os empresários casaram com perfeição a tática de endurecer as negociações e recorrer às forças de repressão comandadas pelo governo para atacar a greve. Embora brigando com os fatos, eles negaram essa combinação. “Foi coisa nossa e não vejo porque o governo teria interesse de forçar o endurecimento. O governo não colocou o dedo na questão. A decisão de não abrir negociações foi nossa”, disse o dirigente da Fiesp Luiz Eulálio Vidigal Filho. O governo participou sim dessa manobra — principalmente por intermédio dos ministros Murillo Macedo e Delfim Netto.
Com a decisão do TRT, estava dado o motivo para a intervenção no sindicato, finalmente decretada no dia 17 de abril de 1980. Naquela data, o ministro Murillo Macedo tratou a situação dos trabalhadores com escárnio. Minutos antes de assinar a portaria que decretava a intervenção, ele recebeu em seu escritório paulista o vice-presidente do sindicato, Rubens Arruda, que lhe perguntou: “Ministro, a intervenção está assinada?” Cinicamente, Murillo Macedo respondeu: “Não, senão não estaria recebendo um dirigente sindical.”
Prisões de vários dirigentes sindicais
Quinze minutos depois de se despedir de Rubens Arruda, às 18h30min, ele assinou a portaria que, além de determinar a intervenção, cassava a diretoria. Mas somente às 12h30min do dia seguinte chegou ao sindicato um funcionário da DRT para formalizar a intervenção. Ele chamava cada um dos diretores do sindicato pelo nome e lhes entregava um envelope amarelo, com o brasão de armas da República, contendo o decreto e a exoneração.
No dia 19, às 6 horas da manhã, Lula foi detido em sua casa pelo DOPS, numa operação coordenada que resultou em prisões de vários dirigentes sindicais em todo o ABC paulista. Uma assembléia no estádio de Vila Euclides decidiu que a greve prosseguiria, agora com nova exigência: a libertação dos dirigentes sindicais. Mas logo o estádio também seria novamente interditado. Diante da determinação do comando de greve, uma praça da cidade foi liberada para as reuniões dos metalúrgicos. Mas São Bernardo do Campo já era uma cidade sitiada, com permanente violência policial. O governo proibiu um show de Chico Buarque e outros artistas em solidariedade à greve e dificultou o quanto pôde a chegada de alimentos aos trabalhadores.
Greve de fome pela reabertura de negociações
As manifestações de solidariedade cresciam em todo o país. Trabalhadores, estudantes, dirigentes políticos, centrais sindicais estrangeiras e religiosos se organizavam para ajudar os metalúrgicos em greve. No dia 21, mais de dez mil pessoas reuniram-se num “ato público litúrgico”, na Catedral da Sé, em São Paulo, para protestar contra as arbitrariedades no ABC paulista. O ato arrecadou 50 mil cruzeiros e uma grande quantidade de alimentos. Cerca de 1.400 famílias de operários eram atendidas diariamente pela organização da greve, que distribuía 2,5 toneladas de alimentos por dia. O “Comitê de Solidariedade aos Metalúrgicos”, organizado desde o início da campanha salarial e que funcionava na Assembléia Legislativa, apresentou um balanço indicando que havia arrecadado 1,6 milhão de cruzeiros.
A greve terminou em Santo André no dia 6 de maio, em meio a conflitos por toda a cidade. No dia 8, cerca de 3 mil mulheres saíram às ruas de São Bernardo do Campo pedindo a reabertura das negociações. À frente delas estava dona Marisa, esposa de Lula. No dia 9, Lula e outros dirigentes sindicais iniciaram greve de fome, pedindo a reabertura de negociações. A assembléia do dia 11 decidiu pelo fim da greve, afirmando, em documento, que o movimento não terminara, mas continuaria na forma de boicotes à produção. “Estas são nossas palavras de ordem: voltar à fábrica não significa produzir. Toda forma de boicote é válida”, dizia o documento, que chamava-se Boletim do Comando.
O sindicalismo combativo havia ressurgido
O principal peso no balanço positivo daquela campanha salarial foi a vitória política dos trabalhadores. Aquela heróica batalha era por algo bem maior do que aumento de salário. Reivindicava-se espaço político para os trabalhadores. Isso ficou bem demonstrado quando 100 mil pessoas marcharam saindo da Igreja Matriz dispostas a reconquistar o estádio de Vila Euclides no dia 1º de Maio de 1980. O povo, comprimido nas calçadas pela feroz repressão, cantou o Hino Nacional enquanto crianças e mulheres choravam. Mas aquele simbólico espaço foi reconquistado.
No dia 20 de maio de 1980, o juiz-auditor Nelson da Silva Machado Guimarães revogou a prisão preventiva de Lula e seus companheiros, atendendo a petição formulada pelo advogado Luis Eduardo Greenhalg. O regime tentava endurecer as penas — no dia anterior, um delegado havia pedido a prisão preventiva de mais cinco sindicalistas —, mas no país já existia um forte contraponto às arbitrariedades do governo militar. “Nós precisamos recuperar a confiança do trabalhador no sindicalismo brasileiro”, disse Lula no início da campanha salarial. A meta estava cumprida. Dali para frente, o Brasil não seria mais o mesmo. O sindicalismo combativo havia ressurgido e desafiava a legislação obsoleta.
4 – A última ação unitária
Os acontecimentos que redundaram na última ação unitária do movimento sindical contra o regime militar: a greve geral do dia 21 de julho de 1983. Logo em seguida, um grupo de dirigentes sindicais tomou a controvertida decisão de fundar a CUT.
O ano de 1981 começou sob o impacto dos intensos acontecimentos de 1980. A preparação da 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat) agitava os meios sindicais. O evento realizou-se nos dias 21, 22 e 23 de agosto de 1981 na cidade de Praia Grande, litoral paulista.
epresentando 1.126 entidades sindicais, os 5.247 delegados aprovaram a data de 1º de outubro como o “Dia Nacional de Protesto” e elegeram uma comissão que deveria encaminhar a organização de uma central única dos trabalhadores, a pró-CUT.
Segundo a deliberação da Conclat, no dia 1º de outubro, quando as reivindicações do evento seriam entregues ao governo — o manifesto pedia, entre outras coisas, o fim do desemprego, da carestia, não à redução de benefícios da Previdência Social, reforma agrária, direito à moradia, liberdade e autonomia sindicais e liberdades democráticas —, os sindicatos deveriam promover manifestações de trabalhadores, atos públicos e até paralisações parciais.
Assassinos dos “órgãos de segurança”
Em todo o país, intensificava-se a mobilização contra a crise econômica. No dia 29 de maio de 1981, o “Movimento Contra a Carestia”, sindicatos e outras entidades sociais lançaram uma campanha com o objetivo de impedir os aumentos dos preços dos alimentos por um período mínimo de 12 meses. No ano, a inflação ultrapassou os 120%, contra um reajuste salarial de apenas 95%.
A repressão também dava sinais de vitalidade. Em junho de 1981, um manifesto assinado por 68 entidades sindicais declarava apoio e solidariedade ao Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, que havia sofrido intervenção federal por promover atividades reivindicando melhores condições de trabalho, reajuste salarial e assistência médica à população. Os atentados terroristas, tramados nos porões da ditadura militar — onde atuavam os assassinos dos “órgãos de segurança” —, se espalhavam pelo país com o objetivo de impedir o avanço da abertura política.
Eleições quase gerais de 1982
No dia 2 de julho de 1980, o jurista Dalmo Dallari, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, foi seqüestrado e agredido em São Paulo. Bancas de jornais que vendiam publicações de oposição eram alvos de bombas. E sindicalistas sofriam ameaças de violência. Entre janeiro de 1980 e meados de 1981, os terroristas promoveram mais de oitenta atentados. Todos alvejaram entidades democráticas, concentrações populares, publicações de oposição e pessoas combativas.
No dia 30 de abril de 1981, véspera do Dia Internacional dos Trabalhadores, dois terroristas planejavam atacar o pavilhão do Riocentro, no Rio de Janeiro, onde realizava-se um show, quando a bomba explodiu antes da hora matando um deles. Mas esses eram os últimos suspiros do terror implantado com o golpe militar de 1964. Em 1982, haveria eleições quase gerais, que afundariam mais ainda o regime. O país havia mergulhado numa contradição que já mobilizava multidões. De um lado, o velho regime se batia para sobrevier e, de outro, as forças democráticas avançavam para erigir uma nova ordem política.
Quadro macroeconômico internacional complexo
Ainda em janeiro de 1981, a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) informou que o trabalhador brasileiro havia perdido 19% do seu poder aquisitivo desde 1979. A causa era a lei salarial tida como milagrosa pelo ministro do Trabalho, Murillo Macedo. Para piorar a situação, o estudo da RAIS mostrava que um novo decreto alterando a fórmula de cálculo de aplicação do INPC traria mais perda salarial.
Mesmo com a política recessiva implementada pelo ministro do Planejamento, Delfim Netto, os problemas da economia brasileira se agravaram. O país estava atado a um quadro macroeconômico internacional complexo, resultado do acentuado endividamento externo promovido para financiar o “milagre econômico” entre o final dos anos 60 e o começo dos anos 70 — quando a taxa de crescimento deu uma significativa acelerada e a ditadura militar aproveitou o feito para intensificar a violência política.
A cada minuto uma pessoa perdia o emprego
No começo dos anos 80, os juros internacionais foram brutalmente elevados pela administração do presidente norte-americano Ronald Reagan e a economia brasileira, pressionada pelos encargos da dívida externa, entrou em colapso. Em 1982, o governo recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e aceitou o seu monitoramento, o que incluía novas regras para a política salarial. Com a divulgação desses dados, os trabalhadores começaram a discutir a necessidade de uma greve geral no país. Outros decretos arrochariam ainda mais o rendimento dos trabalhadores e desencadeariam uma nova onda de manifestações populares.
A situação econômica do país se agravara consideravelmente. Em São Paulo, a cada minuto uma pessoa perdia o emprego. Mais de 700 mil trabalhadores estavam desempregados. Com a aplicação da receita do FMI, o custo de vida subia vertiginosamente. Os decretos impondo mudanças na lei salarial para reduzir a renda dos trabalhadores agravavam ainda mais a situação. A explosão social era inevitável. No começo de abril de 1983, desempregados promoveram uma série de depredações e saques a estabelecimentos comerciais em São Paulo.
Cenário para intervenção federal
O Palácio dos Bandeirantes — sede do governo paulista — teve suas grades arrancadas e a manifestação foi reprimida pela polícia. Pouco antes de a onda de saques ter início, a cidade viveu, durante três dias, o pesadelo do locaute (greve dos patrões) das empresas de ônibus, que pleiteavam aumento das tarifas. Atrasos, filas, irritação, dificuldade para chegar ao trabalho e voltar para casa; e os poucos ônibus em circulação, superlotados, contribuíram para a eclosão da revolta popular, que destruiu 26 ônibus — dois foram incendiados e os outros quebrados a pedradas e pauladas. Vários supermercados, padarias e açougues da Zona Sul, área de concentração industrial e operária, começaram a ser atacados no dia 4. A situação chegou a tal ponto que todas as unidades do 2º Exército entraram em prontidão, por ordem da Presidência da República.
No Estado do Rio de Janeiro, 30 mil soldados da Polícia Militar e seis mil policiais civis entraram em prontidão. A medida foi determinada pelo governador Leonel Brizola (PDT) após a ocorrência de saques contra o supermercado Guanabara, em Senador Camará. A onda de saques logo se espalhou pelo Estado. Os governadores Franco Montoro e Leonel Brizola diziam que existia um movimento dirigido com o objetivo de promover agitação a fim de desestabilizar os governos oposicionistas dos dois Estados. Para Brizola, havia o interesse de se criar um cenário que justificaria uma intervenção federal. “Há muita gente inconformada com a democracia”, disse ele.
A grave situação dos trabalhadores
A suspeita do governador do Rio de Janeiro não era infundada. Era evidente que o movimento, iniciado de modo justo e espontâneo por trabalhadores, em seu segundo dia foi engrossado por baderneiros , aproveitadores e grupos interessados no retrocesso político, insuflando tumultos e depredações que não tinham relação com a luta dos trabalhadores. Mas a presença desses aproveitadores não ocultava uma verdade elementar: a situação de desespero dos trabalhadores, que exigiam o fim da repressão policial, a ativação de frentes de trabalho, passe livre nos transportes públicos e cesta de alimentos para socorrer os desempregados.
A Comissão Pró-CUT do Estado de São Paulo abriu uma campanha de coleta de alimentos para os desempregados. No dia 1º de Maio de 1983, os acontecimentos do começo de abril foram o principal assunto do ato realizada na Praça da Sé, na capital paulista. A greve geral também mereceu grande atenção. Em todo o país, nas manifestações organizadas pela Comissão Nacional Pró-CUT a paralisação foi enfatizada como uma necessidade para enfrentar a grave situação dos trabalhadores.
A política econômica desastrosa adotada pelos governos militares era a responsável por aquela situação. A inflação acumulada do ano de 1982 foi de 99,71%. O ministro do Planejamento, Delfim Netto, acabara de anunciar um empréstimo junto ao FMI de 4,4 bilhões de dólares. Uma nova “carta de intenções” assumindo compromissos com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial foi assinada.
A campanha contra os trabalhadores
A fogueira da greve geral começou a ser acesa com o decreto 2.025, de 30 de maio de 1983 — que pretendia extinguir os benefícios dos funcionários ligados ao Estado no âmbito federal, das administrações direta e indireta. O governo e a mídia desencadearam uma campanha contra esses trabalhadores com a alegação de que eram “privilegiados” que ganhavam acima da média e contavam com benefícios que a “sociedade” não podia bancar.
No dia 16 de junho de 1983, 35 entidades sindicais e associações de funcionários públicos aprovaram o estado de greve, em protesto contra o decreto 2.025. Diversos setores da sociedade — estudantes, partidos de esquerda, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), entre outros — se solidarizaram com os trabalhadores, manifestando publicamente suas posições. O governo recuou, mas no dia 29 de junho o presidente Figueiredo assinou um novo decreto, o 2.036, atacando diretamente os direitos dos funcionários das estatais federais — como o abono de férias, as promoções, os auxílios para alimentação e transporte, o salário adicional anual e a participação nos resultados.
Mobilização do governo contra a greve
No dia 5 de julho de 1983, a refinaria do Planalto (Replan), na cidade de Paulínia — interior do Estado de São Paulo —, a maior do país, parou. Na Replan, 153 trabalhadores foram demitidos. Isso correspondia a 10% do efetivo. Imediatamente, o ministro do Trabalho, Murillo Macedo, decretou a intervenção no Sindicato dos Petroleiros de Paulínia e afastou o presidente da entidade, Jacó Bittar.
Os petroleiros de Mataripe, no Estado da Bahia, também fizeram greve — e o sindicato foi igualmente interditado. Os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema pararam em solidariedade aos petroleiros e o sindicato da categoria foi outro que sofreu intervenção. No dia 14 de julho de 1983, um novo decreto — o famoso 2.045 — foi publicado pelo governo com o objetivo de arrochar ainda mais os salários. A medida atingia também os aluguéis e o Sistema Financeiro da Habitação (SFH).
A greve geral era iminente e uma intensa mobilização de membros do governo federal foi desencadeada para tentar evitar a paralisação. O ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, ficou encarregado de redigir um decreto regulamentando a convocação das polícias militares para o âmbito federal caso os governadores de oposição não reprimisse os trabalhadores. O ministro do Gabinete Civil, Leitão de Abreu, foi escalado para telefonar aos governadores e avisar que qualquer relaxamento dos efetivos policiais seria considerado, em Brasília, incentivo à greve e “à perturbação da ordem”. E o ministro do Trabalho, Murillo Macedo, foi enviado a São Paulo para reunir-se com lideranças sindicais.
A garantia de Magaldi contra a greve
Murillo Macedo chegou à capital paulista no dia 15 de julho de 1983 para receber uma comissão de 11 presidentes de sindicatos eleita pelo “Secretariado Nacional dos Trabalhadores nas Empresas Estatais”. Com a edição do decreto 2.045, os dirigentes sindicais julgaram que não havia mais o que conversar com o ministro e cancelaram o encontro. Dois representantes foram designados para informar a decisão — Geraldo de Vilhena Cardoso, presidente do Sindicato dos Telefônicos de São Paulo, e Rubens Craveiro dos Santos, presidente do Sindicato dos Ferroviários de São Paulo.
Em nota entregue ao ministro, os dirigentes sindicais diziam que o decreto “ratifica e amplia as decisões anteriores contra as estatais e os trabalhadores, reduzindo ainda mais as possibilidades de efetiva negociação por parte do senhor ministro do Trabalho”. O documento lembrava também que as declarações de Murillo Macedo aos jornais daquele dia evidenciavam a retirada da importância que os sindicalistas atribuíam ao encontro.
Num lance de marketing, o ministro do Trabalho zanzou com sua comitiva pela cidade até chegar à Fundação dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo, no bairro da Liberdade, onde se encontrou com dirigentes sindicais aliados do governo federal. (Murilo Macedo mantinha dois gabinetes em São Paulo — um na Rua Martins Fontes, onde funciona a DRT, e outro na Federação do Comércio.) Lá ele recebeu a garantia do presidente da Federação dos Empregados do Comércio, Antônio Pereira Magaldi, de que aquela categoria não participaria da greve.
O picolé pé-de-moleque de Tuma
O presidente da República em exercício, o vice Aureliano Chaves, também entrou na mobilização. Ele negociou com os donos de jornais, rádios e TVs o esvaziamento do noticiário sobre a greve e a aparição de personalidades que pregavam contra a paralisação. Em São Paulo, Aureliano Chaves mobilizou o comandante do 2° Exército, general Sérgio de Ari Pires, e o delegado da Polícia Federal, Romeu Tuma. Ambos reuniram-se com o governador Montoro para, segundo o general, “sintonizar os rádios para operarmos numa mesma freqüência”. Isso incluía a entrada daquela unidade do Exército em estado de prontidão e o contato permanente com o secretário de Segurança Pública, Manoel Pedro Pimentel.
Logo após a solenidade do aniversário da “Revolução Constitucionalista de 32”, no dia 9 de julho, Tuma encontrou-se com o general Pires. Na saída, o delegado comentou: “Estou chupando um picolé pé-de-moleque, mas pensando no Jair Meneguelli.” (O então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema respondia a inquérito por supostamente ter ofendido o presidente Figueiredo em um discurso.) “O que eu estranho é que metalúrgicos façam greve de solidariedade a uma categoria (os petroleiros) de altos salários e com estabilidade no emprego”, emendou Tuma. Para ele, a intervenção nos sindicatos não era antidemocrática, “pois foi efetuada dentro da ordem jurídica.”
O maior desafio ao regime de 1964
Mesmo sob essas ameaças, os dirigentes sindicais trabalhavam freneticamente para dar os últimos retoques nos preparativos da greve. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo distribuiu um milhão de panfletos convocando a paralisação. A Comissão Pró-CUT do Estado de São Paulo anunciou a distribuição de 1,2 milhão de comunicados orientando os trabalhadores. Um comando-geral da greve dirigia os preparativos por meio de uma central de informações instalada na Câmara Municipal de São Paulo. Outra comissão de dirigentes sindicais visitou a Assembléia legislativa.
Com toda essa mobilização, o dia 21 de julho de 1983 amanheceu com cerca de 3 milhões de trabalhadores de importantes categorias em vários Estados parados. As pressões e a feroz repressão desencadeada contra as direções dos sindicatos que lideraram a greve foram intensas. Só na Grande São Paulo, houve mais de 800 prisões. Mas o saldo da greve geral foi considerado amplamente positivo. O dia 21 de julho de 1983 ficou assinalado na história como a data em que os trabalhadores protagonizaram o maior desafio ao regime de 1964. Logo em seguida, nasceu a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
5 – A controvertida decisão do PT
O agudo conflito de classes iniciado de forma aberta no final dos anos 70, culminou com a derrota do candidato da ditadura militar, Paulo Maluf, no Colégio Eleitoral. Era um momento em que a união do povo avançava, mas o movimento sindical se dividia.
A fundação da CUT no 1º Congresso da Classe Trabalhadora por um grupo de sindicalistas ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT), ocorrido entre os dias 26 e 28 de agosto de 1983, representou a consolidação de uma divisão no movimento sindical que começou ganhar corpo em 1982. Logo após a realização da 1ª Conclat, em 1981, iniciou-se um movimento solicitando o adiamento do congresso marcado para 1982. Além de divergências internas na Comissão Nacional Pró-CUT, alegava-se a proximidade das eleições quase gerais daquele ano.
No dia 10 de maio de 1982, a executiva da Comissão Nacional Pró-CUT decidiu encaminhar uma consulta aos Estados que deveria ser respondida pelos Encontros Estaduais das Classes Trabalhadoras (Enclats). O controvertido resultado da discussão apontou para o adiamento do congresso. Em novembro de 1983, reuniu-se o outro Conclat e nele foi criada a Coordenação Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat) que, depois, em 1986, transformou-se em Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT). A temida divisão do movimento sindical naquele momento crucial da vida do país estava sacramentada.
Grande comoção nacional
O ano seguinte seria marcado pelos grandes atos a favor de eleições diretas para presidente da República. Era o movimento pelas “Diretas já!”, que mobilizaria multidões e traria mudanças radicais para o país. Não houve eleições diretas, mas no dia 15 de janeiro de 1985 Tancredo Neves elegeu-se presidente da República, derrotando o candidato da ditadura militar, Paulo Maluf, no colégio eleitoral. A posse do novo governo no dia 15 de março de 1985 pôs fim ao regime implantando com o golpe militar de 1964. Mas as incertezas sobre o futuro rondavam o país.
Tancredo Neves havia se submetido a uma agenda de campanha bastante extenuante e vinha sofrendo fortes dores no estômago durante os dias que antecederam a posse. Aconselhado por médicos a procurar tratamento, teria dito: “Façam de mim o que quiserem, mas depois da posse.” O presidente eleito temia que os militares mais reacionários se recusassem a passar o poder ao vice-presidente, José Sarney. Porém, a sua saúde não resistiu e, na véspera da posse, no dia 14 de março de 1985, ele foi internado com fortes dores abdominais.
Sarney assumiu a Presidência aguardando o restabelecimento de Tancredo Neves, que a partir de então sofreu sete cirurgias. No dia 21 de abril de 1985, os aparelhos de circulação e respiração artificial que o mantinham em estado vegetativo foram desligados e o presidente faleceu vítima de infecção generalizada, aos 75 anos de idade. Houve grande comoção nacional. O Brasil, que acompanhara tenso e comovido a sua agonia, promoveu um dos maiores funerais da história nacional. Calculou-se na época que, entre São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e João del Rey (MG) — onde Tancredo Neves foi sepultado —, mais de 2 milhões de pessoas viram passar o esquife.
Um grande momento nacional
Coração de Estudante, música do cantor mineiro Milton Nascimento, marcou o episódio na memória nacional. Vinte anos após, o corpo médico que tratou do presidente revelou que não divulgou o laudo correto da doença, à época — Tancredo Neves não faleceu em decorrência de uma diverticulite, como se divulgou, mas de um tumor benigno —, porque o anúncio poderia ser interpretado como câncer, causando efeitos imprevisíveis no andamento político do país.
Apesar da comoção que tomou conta do país, a alegria pelo fim do regime militar era indisfarçável. O povo brasileiro se sentia partícipe de um grande momento nacional. Era a vitória de uma luta que custou sangue e vidas de muitos patriotas que combateram o regime de terror inaugurado em 1964. Uma luta cuja síntese se deu no gigantesco comício na Praça da Sé, no 25 dia de janeiro de 1984, em São Paulo.
Trégua nas reivindicações salariais
Para os trabalhadores, além da ampliação das liberdades o país precisava começar a varrer as marcas deixadas pelos anos de chumbo. A forma de se fazer isso seria a realização de uma Assembléia Nacional Constituinte. A eleição de Tancredo Neves elevava a luta dos trabalhadores por liberdade e justiça social a um novo patamar, mas as velhas oligarquias, a estrutura social do país fendida em dois extremos e a máquina estatal montada para garantir os privilégios de poucos às custas do sacrifício de muitos continuariam exibindo poder no novo regime.
Por isso, mal ganhou as eleições o novo governo já vivia uma situação de tensão provocada pela disputa em torno da orientação econômica e política que o país deveria adotar. Prevendo o choque entre trabalhadores e patrões, que numa arena iluminada pela democracia poderia ter resultados imponderáveis, Tancredo Neves propôs uma trégua nas reivindicações salariais de seis meses para “dominar esta fera faminta e terrível que é a inflação”. A proposta foi feita durante um encontro com dirigentes sindicais ligados à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria e causou imediata reação dos trabalhadores.
Falta de unidade do movimento sindical
Vários encontros de dirigentes sindicais se realizaram e chegou-se a uma conclusão: os trabalhadores foram duramente castigados nos 20 anos de regime militar pelo arrocho salarial, pela falta de liberdade e pelo desemprego, e não havia mais nada o que ceder. Sem autonomia sindical, sem aumento real de salário, sem estabilidade no emprego, sem redução da jornada de trabalho e sem direito de greve não havia o que conversar sobre “pacto social”. Mas o ato de receber dirigentes sindicais mostrava que o novo governo estava disposto a levar adiante a ampliação de espaço para a atuação dos trabalhadores. Outra medida de impacto nesse sentido foi a reabilitação, pelo ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, dos sindicalistas cassados pelo regime militar.
Tancredo Neves voltou a conversar com lideranças trabalhistas sobre “pacto social”, mas havia um problema grave: a falta de unidade do movimento sindical. Isso ficou demonstrado com a quantidade de correntes recebidas pelo presidente eleito para tratar do assunto. O fracionamento, no entanto, não impediu que, pela primeira vez desde 1982, o 1° de Maio fosse comemorado de forma unitária pela Conclat, a CUT e outras correntes sindicais, tendo como bandeiras comuns a trimestralidade do reajuste salarial, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais e a Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana.
Postura combativa das centrais
Com as expectativas renovadas pelo regime batizado por Tancredo Neves de “Nova República”, os trabalhadores se mobilizavam. O povo vibrava com a derrota do regime militar e os trabalhadores em todo o país se levantavam contra a compressão salarial ocorrida nos tempos da ditadura militar. Só nos últimos quatro anos do velho regime, os salários caíram, em termos reais, 16%; e o desemprego aumentou 20%. Como moldura do quadro de lutas, colocava-se a expectativa natural quanto a melhorias da condição de vida nos tempos da “Nova República”.
Ao constatar que o pique da inflação era bem superior ao de seus salários, os trabalhadores se mobilizaram e conquistaram importantes vitórias. Para se ter uma idéia das proporções daquela maré de greves, em meados de maio de 1985 o Ministério do Trabalho divulgou um balanço apontando que em apenas uma semana 57 categorias haviam paralisado suas atividades. De janeiro até aquela data, 203 greves foram registradas no país. Em 1986, os trabalhadores passariam por uma fase de calmaria, com o “Plano Cruzado”. Mas logo a crise voltaria a se manifestar com intensidade — exigindo outra vez uma postura combativa das centrais sindicais, apesar da divisão que se acentuava.
6 – A incorporação da CSC à central
A incorporação da Corrente Sindical Classista (CSC) à CUT ocorreu num momento em que o país se deparou com uma encruzilhada histórica. Os velhos elementos que ao longo do tempo marcaram a divisão do país entre progressistas e conservadores voltaram a se manifestar com força na Assembléia Nacional Constituinte de 1988. E isso refletiu no meio sindical, provocando alterações na forma de atuar da CUT e da CGT.
No dia 1º de março de 1986, o governo do presidente José Sarney anunciou o “Plano Cruzado”. A moeda que substituiu o cruzeiro, o cruzado, perdeu três zeros. Outras medidas foram o congelamento dos preços e dos salários por um ano, e o chamado “gatilho salarial” — toda vez que a inflação atingisse ou ultrapassasse 20%, os assalariados teriam um reajuste automático no mesmo valor, mais as diferenças negociadas nos acordos coletivos. O “Plano Cruzado” extinguiu a correção monetária e criou o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) para corrigir a poupança e as aplicações financeiras superiores a um ano.
Os efeitos das mudanças foram a contenção da inflação e o aumento do poder aquisitivo da população. Um clima de euforia tomou conta do país — milhares de pessoas passaram a vigiar os preços no comércio e a denunciar as remarcações. Eram os “fiscais do Sarney”. O consumo cresceu em todos os extratos sociais. Quatro meses depois, o “Plano Cruzado” começou a fazer água. As mercadorias desaparecem das prateleiras dos supermercados, os fornecedores passaram a cobrar ágio e a inflação voltou a subir. Diante da crise, o governo lançou o “Plano Cruzado II”.
Representação sindical unitária
Esse descontrole da economia levou as centrais sindicais — CUT e CGT — a convocar uma greve geral para o dia 20 de agosto de 1987. A essa altura, o governo já havia editado um novo pacote, conhecido como “Plano Bresser” — uma alusão ao seu principal autor, o então ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser Pereira —, que representava mais uma investida contra os direitos dos trabalhadores. Dali em diante, o país mergulharia numa fase de duras disputas entre os campos progressista e conservador. Era uma encruzilhada histórica. E o país tomoria o rumo da direita.
Já em 1987, mais de 10 milhões de trabalhadores realizaram greves. No campo, a repressão provocou choques violentos. Nas cidades, a luta por moradia também foi intensa. E os estudantes foram às ruas para impedir aumentos das taxas escolares. Enquanto isso, a CUT e a CGT disputavam a preferência dos trabalhadores — mas ambas apresentavam sérias deficiências. A primeira filiou um maior número de sindicatos, proclamava-se independente e classista, mas na prática era uma central partidarizada e sectária. A segunda, que pregava a reunificação do movimento sindical, com o passar do tempo foi tomada de assalto pelo sindicalismo de direita.
A evolução do quadro político, muito bem retratada pelas memoráveis batalhas entre conservadores e progressistas na Assembléia Nacional Constituinte de 1988, no entanto, provou profundas alterações na forma de atuação das duas centrais sindicais. Na CUT, a postura inicial de desprezo pela unidade foi atenuada. Já no seu 3º congresso, realizado em setembro de 1988, a central se posicionou a favor da necessidade de superar o desafio de se transformar numa representação sindical unitária, democrática e pluralista. Na CGT, surgiu o conceito de “sindicalismo de resultados”, apoiado no gangsterismo. Iniciava-se uma nova fase do sindicalismo brasileiro, com o surgimento de outras centrais sindicais. Mas a CUT firmava-se como a principal central brasileira.
Fechamento de espaço para o peleguismo
Entre as duas principais centrais sindicais, surgiu a Corrente Sindical Classista (CSC), estruturada por sindicalistas que atuavam na CGT. Em congresso realizado entre os dias 9 e 11 de março de 1990, no Rio de Janeiro, com a participação de 2.105 delegados representado 584 sindicatos, a CSC decidiu ingressar na CUT. A incorporação dessa corrente aumentou a representatividade da central, realçando um perfil mais pluralista e reforçando a vinculação entre luta econômica e luta política. O resultado desse rearranjo logo se fez presente.
Já em março de 1989, os trabalhadores brasileiros fizeram uma greve geral histórica — contra o “Plano Verão”, mais uma iniciativa do governo para tentar conter a crise econômica. Outro efeito da incorporação da CSC à CUT foi o fechamento de espaços para o peleguismo, que avançava com força impulsionado pelo rumo direitista que se esboçava no país. A CUT e a CSC viam esse cenário com preocupação. Por isso, aceleraram a unificação orgânica das duas organizações.
Depois de uma longa espera de 29 anos, o povo brasileiro elegeu o presidente do país no dia 15 de novembro de 1989. A vida política contava com um poderoso movimento de caráter popular, liderado pela coligação PT-PSB-PCdoB — a Frente Brasil Popular —, que lançara o ex-dirigente sindical Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. No segundo turno, a campanha de Collor contra Lula, difundida pelos habituais métodos fascistas damídia — uma mentira mil vezes repetida se torna verdade —, foi fértil em práticas rasteiras que combinavam calúnias, preconceitos sociais e intimidações.
Clima sombrio toma conta do país
A sordidez da direita contra Lula foi bem sintetizada nos “comentários” do conhecido jornalista Paulo Francis, que chegou ao abuso de chamar o candidato da Frente Brasil Popular de “ralé”, “besta quadrada”. Ele disse, em plena tela da TV Globo, que se a esquerda chegasse ao poder o país viraria uma “grande bosta”. Lula foi identificado como “trânsfuga do comunismo”, a quem a queda do Muro de Berlin teria transformado em “vanguarda do atraso”. Collor acusou o candidato da Frente Brasil Popular de desejar seqüestrar ativos financeiros de particulares (que era o que ele mesmo faria no início do seu governo).
Os conservadores não economizaram sordidez. Até uma antiga namorada de Lula, com a qual ele tinha uma filha, surgiu na propaganda de Collor na televisão para acusar o ex-namorado de “racista” e de ter-lhe proposto abortar a filha. Às vésperas da eleição, um resumo do debate final entre ambos foi editado pela TV Globo de forma a favorecer Collor (fato este admitido mais tarde por várias memórias de participantes do evento). A eleição comportou ainda a manipulação política do seqüestro do empresário do setor de supermercados, Abílio Diniz, que, ao ser libertado de seu cativeiro no dia da eleição, apareceu vestindo uma camiseta do PT. O resultado desse jogo desleal só poderia ser a vitória de Collor.
Magri no Ministério do Trabalho
Enquanto Collor, se preparando para tomar posse, passeava por boates e restaurantes de luxo em Paris, a inflação disparava. Um clima sombrio tomou conta do país. Logo que chegou, o presidente anunciou o seu ministro do Trabalho e Previdência Social: o sindicalista Antônio Rogério Magri. Ele e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, Luiz Antônio Medeiros, lideraram um processo de domínio dos setores direitistas do sindicalismo sobre a CGT, inviabilizando a presença de outras correntes na central — entre elas a CSC. Em sua primeira entrevista como ministro, Magri anunciou que não pretendia mudar a lei salarial — uma aberração que não cobria sequer as perdas decorrentes da inflação —, afirmou que nada entendia de previdência social e vociferou contra as “greves políticas”.
Collor assumiu distribuindo ameaças e tomando medidas desastrosas. Com sua retórica estridente e seus gestos espalhafatosos, pôs as estatais na linha de frente dos ataques. O presidente anunciou a criação de um “superministério” para encaminhar as privatizações e designou para o seu comando o coronel Ozires Silva, ex-presidente da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) — mais uma das estatais bem-sucedidas — e umbilicalmente ligado à ditadura militar. Assim que foi indicado, o superministro disse que nem a Petrobrás escaparia do seu projeto.
Quando Collor assumiu, começaram a ressoar pelo país campanhas publicitárias para vender as privatizações. A mensagem poderia ser sintetizada nas seguintes idéias: transferir ao setor privado as atividades produtivas em que indevidamente o Estado se metera e deixar a cargo do “mercado” as atividades regulatórias. O Estado deveria assumir a sua verdadeira vocação, o assim chamado ‘’setor social”. Nas imagens da publicidade televisiva, o Estado seria um paquiderme balofo e abobalhado, que precisava ser submetido a regime de emagrecimento e ginástica para voltar esbelto, faceiro, e cuidar das crianças e dos idosos.
A armadilha de Zélia Cardoso de Melo
Mas o pior foi o pacote que o presidente lançou sobre o país menos de 24 horas após ser empossado — um catatau de 200 páginas apresentado com grande alarde promocional e sob o slogan “Brasil Novo”. Além do confisco do dinheiro da população, o pacote atingia duramente os salários. Era o chamado “tiro único” do presidente “no tigre da inflação”. Ruim de pontaria, Collor errou o tiro e tocou fogo na floresta.
Diante do fogaréu que se alastrava, a CUT convocou um “Dia Nacional de Greves e Protestos” para 12 de junho de 1990, uma iniciativa que ganhou adesão até de setores das CGTs (outro grupo deixara a CGT tomada de assalto por Magri e Medeiros para fundar mais uma CGT, a Confederação Geral dos Trabalhadores). Diante do crescente descontentamento dos trabalhadores com o rumo da economia, a ministra da Fazenda de Collor, Zélia Cardoso de Melo, e o ministro da Justiça, Bernardo Cabral, propuseram um “entendimento nacional”. Era uma armadilha. E a CUT quase foi pega na emboscada.
7 – Resvalada da central para a direita
No início dos anos 90, a CUT perdeu o fio da história ao se aproximar de posições conciliadoras com a direita. O país estava entrando numa crise aguda e justamente naquele momento a central resolveu abandonar a postura combativa para entrar na “era propositiva”. Mas logo a vida mostraria que esse era um caminho sem futuro.
A Plenária Nacional da CUT realizada em agosto de 1990 em Belo Horizonte (MG) aprovou um “Plano de Lutas” para enfrentar de forma “global e nacional” o “projeto Collor”, apelidado pelo próprio presidente de “Projeto Brasil Novo” — eufemismos de projeto neoliberal. “A dinâmica da conjuntura atual exige um salto de qualidade da ação sindical da CUT para uma adequada defesa e implementação dos direitos dos trabalhadores”, dizem as resoluções da Plenária. Chegou-se a falar em greve geral contra Collor. Mas, surpreendentemente, a CUT, por meio da sua corrente majoritária — a Articulação Sindical —, aceitou participar do “entendimento nacional” proposto pelo governo. “O movimento sindical precisa aprender a dizer sim”, disse um alto dirigente cutista.
A CUT andava na corda bamba. Num seminário nacional realizado em março de 1990, falou-se em abandonar a “grevilha”, ter um projeto global com alternativas de desenvolvimento econômico, político e social a médio e longo prazos, concentrar-se na busca de redistribuição de renda, com metas de participação dos salários na renda nacional e outras coisas do gênero. Nada se falou sobre a necessidade de resistência dos trabalhadores ao projeto de Collor. Essa conduta semeou dúvidas, confusões e descréditos na central. Naquele momento, os trabalhadores viam a CUT como uma arma de combate capaz de unificar o movimento popular. Ao participar do “entendimento nacional”, no entanto, a central aproximou-se perigosamente do isolamento.
Falta de propostas políticas
Nas conversas sobre o “entendimento nacional”, a CUT entregou ao presidente Collor uma pauta de 13 reivindicações — todas descartadas de cara. Estava clara a tentativa do governo de legitimar o “Projeto Brasil Novo” por meio do aval dos representantes dos trabalhadores. Não havia o que conversar. O problema não era a falta de propostas políticas. O Brasil não estava no buraco por falta de boas sugestões. A CUT não propôs a suspensão da luta para sentar à mesa do “entendimento nacional”. As greves continuaram. Mas faltou a unificação, o comando.
Aquele governo já mostrara uma marca unipessoal do presidente, que com seus gestos histriônicos editava uma medida provisória atrás da outra. Collor não dava o menor sinal de que estaria disposto a ceder em seu programa de governo. O presidente anunciou que não alteraria as metas de privatizações, não mudaria a política salarial e não estancaria as demissões em massa. Naqueles dias, mais uma acordo com o FMI acabara de ser assinado. E era véspera das eleições para governador. Felizmente, a CUT percebeu o caminho errado que tomara e voltou atrás. Mas a mídia, com sua habitual sordidez, tratou o caso com alarido, culpando a CUT antecipadamente pelo desastre que viria. Com isso, tentava encurralar a central, que soube se posicionar bem diante do agravamento da crise.
Novo pacote econômico
O ano de 1991 começaria quente — literalmente. Às 2h30min da madrugada sem lua do dia 16 de janeiro de 1991, 700 aviões norte-americanos invadiram o espaço aéreo do Iraque e jogaram mais de 2 mil bombas no país. O argumento de que os Estados Unidos foram “libertar o Kuwait invadido pelo governo do presidente Saddam Hussein” não tinha força sequer para convencer um camelo do deserto. O conflito com o Kuwait — país aliado do regime norte-americano — foi usado como pretexto para os Estados Unidos fincar com mais força a bandeira do imperialismo na região.
No Brasil, o governo usou a guerra para justificar o fracasso do seu plano econômico. E, claro, para pedir mais e mais sacrifícios aos trabalhadores. Logo o governo imporia outro pacote econômico — batizado pelo presidente de “Plano Collor 2”. As medidas determinavam o congelamento dos preços, depois de uma forte remarcação, e dos salários pela média dos últimos 12 meses. Membros da equipe econômica diziam que todos precisavam fazer sacrifícios para que o país pudesse sair da crise.
Nessa época era comum assistir a exibições de Collor fazendo cooper, praticando esportes, dirigindo jato supersônico, subindo a rampa do Palácio do Planalto — comportamentos que exaltavam suposta jovialidade, arrojo, combatividade e modernidade. Todos expressos em sua notória frase: “Tenho aquilo roxo”. Na verdade, eram os trabalhadores que estavam roxo de tanto arrocho. Segundo o IBGE, a inflação dos últimos 12 meses havia chegado em 926,57%. O tigre que Collor ameaçou matar havia se transformado num dragão. E o fogo provocado pelo erro do seu “tiro único” na inflação se espalhava pela floresta.
Resistência ao “Fora, Collor!”
O país vivia uma situação de calamidade. A CUT e as CGTs convocaram uma greve geral para os dias 22 e 23 de maio de 1991 com a finalidade de protestar contra o governo. A situação política do país se agravara. A União Nacional dos Estudantes (UNE) lançara a palavra de ordem “Fora, Collor!”, pedindo o afastamento do presidente da Republica. Em apenas um ano e meio de governo, ele levou o país para o buraco e montou um gigantesco esquema de corrupção. Mas o slogan “Fora, Collor!” despertaria resistência em setores da CUT — havia o temor de abalo institucional. Uma lei salarial aprovada em agosto de 1991 aliviou um pouco a pressão da inflação sobre os salários, mas a crise se agravava rapidamente.
No início de 1992, o país estava cansado de Collor. O governo vivia envolvido em tricas e futricas — um prato cheio para a mídia sórdida —, resultado da corrosão moral que lhe destruía por dentro. Para os trabalhadores, havia chegado a hora de organizar o combate final à sua política econômica como meio de atingir o principal responsável por aquele desastre para o qual o país foi conduzido. O movimento “Fora, Collor!” crescia e se espalhava pelo país. A pressão popular sobre o governo elevou-se com o descumprimento de uma decisão da Justiça sobre o reajuste de 147% para os aposentados.
Autoritarismo do governo
No final dos anos 1980, o poder de organização das associações e das federações de aposentados e pensionistas era grande. Já na Assembléia Nacional Constituinte isso ficou bem demonstrado. A luta pela conquista do reajuste de 147% foi o ponto alto dessa organização. Tudo começou quando, em 1991, o governo reajustou o salário mínimo em 147% e anunciou que pretendia dar apenas 54% aos aposentados. A grita foi geral. No dia 28 de janeiro de 1992, cerca de 400 manifestantes foram agredidos por forças policiais quando protestavam em Florianópolis (SC). Um senhor de 70 anos foi hospitalizado com fratura no queixo, depois de ser golpeado por um cassetete da polícia. As manifestações se espalharam pelo país e dobraram o autoritarismo do governo.
Logo em seguida, a CUT e outras entidades do movimento social convocaram os trabalhadores e aposentados para uma passeata contra a recessão, no dia 7 de fevereiro de 1992. O governo comemorava o fechamento de mais um acordo com o FMI afirmando que o ingresso do país na “modernidade” era irreversível. Enquanto isso, o Brasil contabilizava recordes atrás de recordes de desemprego. A ofensiva neoliberal que varria o mundo atingia o Brasil com a intensidade de um furacão.
Gigantescas manifestações
Quando Collor completou dois anos de mandato, o país já havia dado as costas para ele. No dia 13 de maio de 1992, os trabalhadores se manifestaram em todo o país exigindo a sua saída da Presidência da Republica. Os escândalos pipocavam e até o irmão do presidente, Pedro Collor, denunciava corrupção no governo. Vendo o barco afundar, Collor foi à televisão pedir desculpas. Mas não havia como perdoar o que aquele governo estava fazendo.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava as denúncias de corrupção apresentava uma prova atrás da outra, as gigantescas manifestações se multiplicavam e no dia 29 de setembro de 1992 a Câmara dos Deputados aprovou a abertura do processo de impeachment de Collor. Já fora do cargo, ele renunciou ao mandato em 29 de dezembro, logo após a abertura da sessão de julgamento do processo de impeachment no Senado. O “Fora, Collor!” estava consumado. Em seu lugar assumiu o vice-presidente, Itamar Franco.
Saudações à posse de FHC
Mas logo o país receberia outra péssima notícia: a nomeação de Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o cargo de ministro da Fazenda. O presidente Itamar Franco estava sob pressão da direita, que exigia a aplicação do programa econômico de Collor. FHC caiu como uma luva. Já em 1991, quando a crise batia à porta do Palácio do Planalto, um setor do tucanato capitaneado por ele defendeu a incorporação do seu partido ao governo. A manobra foi combatida pelo senador Mário Covas — o que não impediu, mais tarde, que FHC fosse o principal executor de uma espécie de golpe branco contra o presidente Itamar Franco ao comandar o processo de transição da economia para a “estabilidade”.
Sua posse foi saudada por entidades patronais com expressões como “bela tacada de Itamar Franco”, “craque nota dez” e “arauto da modernidade”. O sindicalista de direita Luiz Antônio Medeiros, que deixara a CGT para fundar a Força Sindical, disse que cancelaria “manifestações de rua” para pressionar o governo a acelerar a marcha rumo à “modernidade” porque o objetivo havia sido alcançado. Até o secretário de Estado norte-americano, Warrem Cristopher, ligou para parabenizar o novo ministro da Fazenda.
Ministério de “notáveis”
FHC chegou dizendo que “precisamos botar a casa em ordem”. “Isso não significa intervenção no mercado”, ressaltou. Estava dada a senha. Ele afirmou que não reduziria os juros e que não alteraria o Programa Nacional de Desestatização. FHC tomou posse prometendo “ordenar as finanças públicas e controlar o endividamento de Estados e municípios”. Eram as mesmas palavras de Collor — só que com menos gritaria. Dias terríveis aguardavam a nação.
A “arrumação da casa” começou com o chamado “Plano Verdade”, que consistia basicamente em arrochar investimentos públicos. A primeira investida de FHC contra os trabalhadores foi a ferrenha oposição à uma então recente lei salarial aprovada pelo Congresso Nacional. Para ele, o reajuste mensal era uma “esquisitice que serve de âncora para a taxa de inflação”. FHC agregou em sua pasta figuras notórias do conservadorismo econômico brasileiro — classificadas por ele como “notáveis” — e promoveu um festival de arbitrariedades assim que a poeira da sua posse abaixou.
Reviravolta mundial
Em 1994, FHC seria o principal personagem do país. Já em janeiro ele ocupou a televisão para pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu programa econômico e iniciar a sua indisfarçável campanha à Presidência da República. As manobras resultaram na aprovação do Fundo Social de Emergência — uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar a reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização”. Era o embrião do superávit primário. Depois o nome do mecanismo passou a ser Fundo de Estabilização Fiscal e hoje se chama Desvinculação das Receitas da União.
FHC começava a dar forma ao seu programa de governo. Pela primeira vez, desde a revolução comandada por Getúlio Vargas em 1930, o projeto liberal no Brasil passava a ter sujeito, predicado e objeto direto. Era a hora de aproveitar o vácuo deixado pela reviravolta no cenário mundial com o fim da experiência socialista no Leste Europeu e o início da crise do projeto social-democrata na Europa Ocidental. Para ajudar, existiam os trilhos políticos adequados, construídos pelo regime militar. Aí foi só encaixar a figura de FHC, cuidadosamente esculpida para assumir a direção daquele processo.
Referencial monetário
A reação dos trabalhadores não tardou. Em fevereiro de 1994, a CUT chamou as demais centrais sindicais para preparar uma greve geral contra FHC. As perdas salariais, com a conversão dos salários pela média, chegavam a 36%. Enquanto isso, FHC dizia que não precisava de regras para a conversão dos preços porque o próprio “mercado”se incumbiria de conter os abusos. Seu plano só atingia os salários. Greves e manifestações começaram a pipocar pelo país. No dia 1º de março de 1994, a CUT definiu um plano de lutas contra o arrocho salarial. Em conjunto com as CGTs e a Força Sindical (até a central de Medeiros sentiu o baque das medidas de FHC), os cutistas programaram a data de 16 de março como “Dia Nacional de Lutas Contra o Arrocho da URV” — a Unidade Real de Valor, forma adotada para fazer a transição do referencial monetário de cruzeiro para real.
No dia 23 de março, os protestos se repetiram. Greves, carreatas e bloqueio de rodovias deram o tom das manifestações. Por todo o país o panorama foi o mesmo, com dezenas de categorias realizando greves. Em Brasília, mais de 3 mil policiais cercaram o Ministério da Fazenda para proteger FHC da fúria popular. Os protestos continuaram em atividades de campanhas salariais das categorias com data base em maio.
Ataque a Itamar Franco
Aqueles acontecimentos mostraram o tamanho do comprometimento da mídia com o projeto de FHC. Rádios, televisões, jornais e revistas abusaram da mentira, da calúnia e das ameaças contra os trabalhadores. Os programas de rádio convidavam parlamentares de direita, palpiteiros desqualificados e “especialistas em direito trabalhista” para engrossar a baixaria. Os jornais circulavam com manchetes agressivas e editoriais que cheiravam fascismo. Era um massacre. O abuso era tanto que a TV Globo censurou um anúncio pago, do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, alegando que a expressão “Plano FHC” deveria ser substituído por “Plano Econômico”. Feita a alteração, o anúncio foi ao ar.
Nessa altura, FHC havia lançado o “Plano Real” e deixado o Ministério da Fazenda para oficializar a sua candidatura à Presidência da República. O trator neoliberal não poupava ninguém. Nem o presidente da República, Itamar Franco, que ousou opinar sobre algumas medidas anunciadas pela equipe econômica. A mídia o atacou violentamente quando ele disse que o Congresso Nacional deveria regulamentar o artigo da Constituição que determina o limite de 12% ao ano para a taxa de juros — antevendo o estrago que a turma de FHC promoveria.
A radicalização da direita
O presidente, no entanto, já era quase uma voz isolada no país. Mas logo os trabalhadores viram que a sua preocupação tinha razão de ser — no primeiro dia útil do “Plano Real”, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central (BC), disparou, chegando aos 12%. Desde então, nunca mais o país viu juros abaixo deste patamar. Um ano depois, já estava em 60%. O próximo passo seria a investida contra o Estado — abrangendo a União, os Estados e municípios. O estrago que a confraria neoliberal promoveria no país estava apenas começando.
A radicalização da direita provocava a resposta da esquerda, igualmente radicalizada. No dia 25 de agosto de 1994, a CUT convocou uma “Marcha por Emprego e Salário”, que mobilizou os trabalhadores em todo o país. As campanhas salariais do segundo semestre de 1994 foram marcadas por greves e protestos intensos. No dia 12 de setembro, os metalúrgicos do ABC paulista entraram em greve e foram violentamente atacados pela mídia e por FHC, que os acusavam de estar a serviço da candidatura Lula à Presidência da República. Aproximavam-se as eleições presidências.
A revisão constitucional
O ataque da mídia a tudo que parecia progressista e a intensa propaganda do “Plano Real” elevaram FHC à condição de candidato imbatível. A campanha contra Lula mais uma vez era desonesta. O caso mais escabroso ocorreu com seu vice, José Paulo Bisol, acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras. A “denúncia”, lançada pelo jornal Zero Hora de Porto Alegre, não foi provada e a publicação teve de pagar indenização de 1,191 milhão de reais ao ex-candidato a vice de Lula. Mas o tropeço de Rubens Ricupero, que em uma conversa informal — acidentalmente divulgada — afirmou que não tinha escrúpulos, não representou qualquer arranhão à campanha da direita. A mídia viu enorme gravidade no primeiro caso e nenhuma no segundo.
Os conservadores também tentaram fazer, de uma vez só, o que FHC faria com dificuldade e autoritarismo no seu governo: a revisão constitucional. Eles queriam tirar, com apenas um golpe de mão, as cores progressistas da Constituição de 1988. Manipularam o Artigo 3° do título constitucional das “Disposições Transitórias”, que determinava mudanças em alguns aspectos caso o sistema de governo fosse mudado. A direita e sua poderosa mídia fizeram de tudo para dissociar um Artigo do outro. A ditadura do pensamento único neoliberal mostrava a sua força, mas nesse caso não obteve sucesso. O assunto referia-se ao plebiscito, realizado em 1993, vencido pelo presidencialismo. Não houve mudança de sistema de governo. Portanto, não havia justificativa legal para a revisão constitucional.
Projeto da ditadura militar
Os trabalhadores remavam contra uma forte maré e às vezes obtinham sucesso. A direita começava a orquestrar uma nova ofensiva para sufocar o movimento sindical e eliminar uma das últimas barreiras ao seu projeto de governo. Processos contra sindicatos e sindicalistas brotavam do nada e proliferavam pelo país. Na ocasião, o então candidato a governador de Pernambuco, Miguel Arraes (PSB), caracterizou os governo Collor e a candidatura FHC como a continuidade do projeto da ditadura militar. Os acontecimentos lhe davam razão.
Com toda essa mobilização conservadora, o neoliberalismo venceu as eleições — ganhas por FHC já no primeiro turno. O presidente eleito começou a trabalhar freneticamente para montar o seu ministério, formado por uma legião de ministros egressos do governo Collor. Quando FHC apresentou os nomes dos componentes do seu governo, ele fez uma menção especial ao ministro do Trabalho, Paulo de Tarso Paiva. “Escolhi alguém capaz de promover uma reviravolta nas antiquadas relações de trabalho no país”, disse o presidente. Mais uma vez os trabalhadores estavam sob o autoritarismo de um projeto político reacionário e violento. Mesmo assim, a CUT manteve sua postura vacilante.
8 – A maior crise da central
Num momento em que a CUT se esforçava para mostrar sua face “moderada” e vivia uma crise de direção, a direita desferiu um violento golpe com as manobras para criar uma CPI destinada a apurar “denúncias” contra a central. No meio da tempestade, um dirigente sindical cutista foi assassinado — fato que potencializou a onda de ataques ao candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) assumiu o comando do projeto neoliberal, a CUT vivia a sua pior crise. As divergências começaram no 4º Congresso, realizado em 1991, quando ocorreu uma acirrada disputa pela direção da central. Houve denúncias de redução arbitrária das delegações dos Estados de Minas Gerais e da Bahia, mas o fator principal da crise eram as visões diferentes sobre a participação da CUT no “entendimento nacional” proposto pelo governo Collor. O clima de tensão se refletiu na formação de dois blocos que disputaram o comando da central. A força majoritária, a Articulação Sindical, conseguiu aprovar suas propostas em votações apertadas e garantiu uma maioria precária na nova direção (13, em 25 dirigentes).
A disputa logo se manifestaria dentro da própria Articulação Sindical, com a precipitação de Gilmar Carneiro (então presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo) e de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista), na disputa sucessória de Jair Meneguelli, o presidente da CUT desde a sua fundação. Isso muito antes do 5º Congresso da central, que se realizaria em 1994. Ao mesmo tempo, a Articulação Sindical defendia a ampliação da participação dos trabalhadores nas diretrizes de governos, parlamentos e “elites empresariais” por meio das Câmaras Setoriais.
A nota oficial sobre a CPI da CUT
Com a aproximação das eleições presidenciais de 1994, no entanto, a CUT logo sentiria o peso do jogo sujo que mais uma vez a direita promoveria para impedir a chegada de Lula à presidência da República. O presidente do PPR (partido sucessor do PDS e da Arena, organizações originárias da ditadura militar), senador Espiridião Amim (SC), disse à Rede Globo de Televisão que dispunha de documentos acusando parlamentares do PT e Lula — então o candidato favorito disparado à Presidência da República — de utilizar a máquina dos sindicatos filiados à CUT para se eleger. Espiridião Amim afirmou que entregaria um dossiê com essas e outras denúncias a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que seria instalada para investigar as contas da central.
Em nota oficial, a CUT disse que nada devia e que por isso não temia a CPI. Segundo o documento, a central havia entregue ao presidente do Congresso Nacional, senador Humberto Lucena (PMDB-PB), seus livros contábeis, seus balanços anuais e seus extratos de movimentação bancária. A nota dizia ainda que as manobras para forçar a instalação da CPI feriam as normas constitucionais, que exigiam a existência de “fato determinado” que não existia. Para a CUT, a direita estava estabelecendo a política do vale tudo, abrindo um grave e perigoso precedente para a democracia.
Coisas estranhas estavam prestes a acontecer
Havia razões de sobra para essa afirmação. Uma delas era a tentativa de estabelecer um prazo de 180 dias para a apuração das denúncias, não 45 dias como era habitual. A manobra eleitoreira era escandalosa. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo no dia 19 de novembro de 1993, Espiridião Amin disse que não havia pressa para a instalação da CPI. “Quanto mais próximo da eleição, melhor”, afirmou. O PPR estava mergulhado em escândalos — como o dos anões do Orçamento e a doação ilegal de 815 mil dólares para a empresa do pianista João Carlos Martins financiar a campanha de Paulo Maluf à prefeitura de São Paulo. “A CUT não tem medo da CPI porque acredita que ainda é possível fazer política, defender a democracia e os interesses dos trabalhadores sem os velhos costumes acima mencionados”, finalizava a nota da central.
Mas coisas muito mais estranhas estavam prestes a acontecer. No dia 6 de janeiro de 1994, coincidentemente em meio a essa onda de ataques à CUT, o presidente do Sindicato dos Condutores Rodoviários do ABC Paulista, Oswaldo Cruz Júnior, foi assassinado. A procuradora da República Janice Agostinho Barreto Assari mandou apurar acusações de que parte da receita do sindicato teria sido desviada para financiar campanhas do PT. Uma montanha de versões, acusações e investigações desabou sobre a central. A histeria tomou alguns veículos da mídia, notadamente a Rede Globo de Televisão. Os quatro tiros contra Oswaldo Cruz Júnior foram transformados em plataforma anti-Lula.
O delegado Nelson Silveira Guimarães
As insinuações de que o crime poderia ter o dedo da CUT, seria “queima de arquivo” ou teria um mandante entre os quadros do PT foram minuciosamente detalhadas pela Rede Globo de Televisão, viessem de quem viessem. Valeu tudo para atingir Lula. A direita exibia o mesmo baixo nível de 1989, quando a discussão de idéias e propostas cedeu lugar à pura difamação e a expedientes sórdidos. Para a direita, a forçada motivação política para o crime tornou-se, antes mesmo de iniciadas as investigações, como que uma verdade inquestionável.
O delegado Nelson Silveira Guimarães, convocado para assumir as investigações, era o mesmo que em dezembro de 1989, na véspera das eleições em que Collor derrotou Lula, ajudou a negociar a rendição dos seqüestradores do empresário Abílio Diniz — que foram apresentados à mídia vestidos com camisetas do PT. (Em entrevista à Folha de S. Paulo, o delegado disse que em 1989 foi convidado para uma “armação” no final do tal seqüestro e não concordou com ela.) Segundo conclusão do inquérito, no entanto, o assassinato de Oswaldo Cruz Júnior não teve nenhuma conotação política. Mas o favoritismo da candidatura de FHC à Presidência da República estava consolidado. E a farsa da CPI da CUT parou ali.
Vicentinho concorre com chapa única
Em meio a essa tempestade, a central se afundava na defensiva. A CUT estava ausente de grandes batalhas nacionais — como a luta contra as privatizações e a natureza da política econômica neoliberal. Mesmo a campanha ideológica contra o socialismo — que aproveitava o vácuo da crise que derrubou o bloco soviético para atacar Cuba com virulência — não mereceu resposta contundente da central. Era esse o clima quando a CUT realizou o seu 5º Congresso, em maio de 1994, com o lema: “Dignidade para quem faz o país.”
Gilmar Carneiro já estava fora da disputa pela presidência da central e Vicentinho concorreu com chapa única. As polêmicas ficaram subordinadas à necessidade de unidade naquele momento crucial. O espírito unitário predominou na maioria das resoluções. A CUT matinha o seu posto de principal central sindical do país. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), existiam no país 7.460 sindicatos e 30% deles estavam filiados à CUT.
Elogios de Vicentinho a Paulo de Tarso Piva
No dia 1º de maio de 1995, logo após a posse do novo governo, o ministro do Trabalho, Paulo de Tarso Paiva, provocou uma tempestade ao defender, na sede da central Força Sindical, em São Paulo, a retirada de direitos da CLT e da Constituição para se tornarem “disponíveis para negociação”. Até o então presidente da Força Sindical, Luiz Antônio Medeiros, reagiu. “O ministro foi, no mínimo, inoportuno”, disse ele. O porta-voz da Presidência, Sérgio Amaral, anunciou que “o governo jamais cogitara de retirar da Constituição os sagrados direitos dos trabalhadores”.
Diante do revés, Paulo de Tarso Paiva mudou de tática e tentou levar alguns dirigentes sindicais para o caminho de Damasco. Depois de uma conversa com o ministro, o novo presidente da CUT, Vicentinho, declarou: “Por mais polêmicas que sejam suas idéias, a maneira simpática como ele as coloca cria as condições para uma conversa.” O ministro de fala mansa e costas quentes não resistiu às pressões e logo caiu.
Quartel-general da CUT em Brasília
Mas a marcha do governo em direção às privatizações e à redução das conquistas democráticas contidas na Constituição de 1988 continuou acelerada. Para a direita, FHC fez bonito em seus primeiros dias como presidente da República. Até as ruínas de Collor se ergueram para elogiar o novo chefe do projeto neoliberal. “A capacidade dele de evoluir muito em tão pouco tempo me fez admirá-lo. Há uma absoluta coerência das medidas dele com o que foi preconizado pelo meu governo, como as privatizações e as reformas — que teriam sido realizadas caso não houvesse o impeachment”, disse o ex-presidente.
Na outra margem do rio, os trabalhadores tentavam se organizar para enfrentar a crise. A CUT, pressionada pelos acontecimentos, montou um quartel-general em Brasília, com campanhas no rádio e na TV e uma equipe de 30 funcionários, para fazer o corpo-a-corpo com os parlamentares e tentar impedir a aprovação das medidas anti-trabalhistas anunciadas por FHC. No dia 5 de abril de 1995, houve manifestações em todo o país contra as “reformas” constitucionais.
A aposentadoria de Reinold Stepahnes
O governo havia editado mais um pacote de medidas para escorar o “Plano Real” e descarregar mais um pouco do peso da crise nas costas dos trabalhadores. “O governo precisa conter o crescimento econômico para evitar a pressão inflacionária”, disse o ministro do Planejamento, José Serra. A Previdência Social já era o principal alvo. No dia 5 de abril de 1995, a CUT promoveu mais uma manifestação. Reagindo às críticas da oposição, FHC disse: “Vamos calar a boca de gente que pega papel e não sabe o que está escrito nele. O povo não é bobo. Bobo são eles (sindicalistas). E quem nasce bobo morre bobo.”
O ministro da Previdência, Reinold Stepahnes, afirmou que aceitaria uma auditoria nas contas da Previdência, “desde que seja feita por alfabetizados, e não pelas lideranças da CUT”. Acusado de ter se aposentado com apenas 22 anos de serviço, o ministro se saiu com essa: “Temos que discutir o futuro do país como um todo e não casos isolados.” No dia 27 do mesmo mês, outra manifestação convocada pela CUT protestou contra a “reforma” da Previdência. O clima de confronto tomou conta do país. Mas logo a central retomaria a postura defensiva.
9 – Os atropelos de Vicentinho
Mal os trabalhadores haviam saído de um duro enfrentamento com o totalitarismo neoliberal, ocorrido durante a greve dos petroleiros no início de 1995, o presidente da CUT, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, assumiu o compromisso de defender o polêmico acordo sobre a “reforma” da Previdência com o governo FHC. A central entrou numa fase crítica, de grandes divergências internas.
Quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) assumiu a Presidência da República, era evidente que uma das bases de sustentação da sua gestão seria a repressão ao movimento sindical. A incompatibilidade da liberdade de organização dos trabalhadores com o projeto neoliberal havia sido demonstrada no início dos anos 80 quando o governo do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, reagiu imediatamente à paralisação dos controladores de vôo, declarando a greve ilegal. Reagan deu um ultimato e estabeleceu um prazo de 48 horas para que os trabalhadores retornassem ao trabalho. Vencido o prazo e sem acordo, o presidente demitiu 11.359 trabalhadores e proibiu que qualquer um fosse readmitido no serviço público.
O totalitarismo neoliberal também mostrara a face na Inglaterra quando a primeira-ministra Margareth Thatcher enfrentou com mão de ferro as greves do mineiros entre 1982 e 1985. De 1979 a 1985, mais de 220 mil postos de trabalho nas minas foram eliminados pela política neoliberal, resultando na quase extinção de uma das mais importantes categorias do movimento operário inglês — responsável pela histórica tradição de luta e resistência dos trabalhadores ingleses. Apesar da solidariedade que se espalhou por todo o Reino Unido, da coesão entre trabalhadores mineiros e suas famílias — especialmente as mulheres — e da importante solidariedade internacional, a greve foi derrotada.
FHC segue os exemplos de Reagan e Thatcher
No Brasil, os petroleiros sentiram o gosto de chumbo, tão comum aos trabalhadores durante a ditadura, com a ocupação militar das refinarias pelo Exército durante a greve da categoria já no início de 1995. Em todo o país, o movimento sindical, chocado, se organizou para prestar solidariedade às vítimas da truculência neoliberal. Os petroleiros lutavam para receber um cheque emitido pelo governo, que o novo presidente da República, arbitrariamente, tornara sem fundo. Era um protocolo assinado pela direção da Petrobras e a Federação Única dos Petroleiros (FUP), com o aval do ex-presidente Itamar Franco, sobre questões trabalhistas.
O calote de FHC levou a categoria à greve. Julgada “abusiva” pelo TST, os trabalhadores não acataram a decisão e tentaram dialogar. Os petroleiros ficaram entre duas escolhas: aceitar a abusividade do TST, que fez um julgamento político, ou resistir, mesmo correndo o risco da repressão. Ficaram com a segunda opção e receberam a solidariedade de todos os que conheciam a verdade dos fatos e defendiam uma atitude honesta diante dos acordos assinados entre as partes. Partidos de oposição, sindicatos e movimentos populares se manifestaram em todo o país contra a ocupação militar das refinarias. Mas o governo não cedeu.
A revista Veja elogiou a tática usada por FHC para “vencer” os petroleiros. “O governo mostrou firmeza, coerência e até competência para acabar com a greve. Brasília montou um esquema inédito de resistência. Em segredo, a Petrobras transferiu combustíveis para as distribuidoras privadas, garantindo o abastecimento de emergência. Importou petróleo e contratou 220 funcionários aposentados para substituir grevistas nas principais refinarias”, disse a publicação. As importações custaram à Petrobras 700 milhões de dólares. Tudo isso gastando 20 milhões de reais por dia, quando o cumprimento do acordo com os petroleiros representava 14 milhões de reais.
O circo da mídia
O problema era eminentemente político — uma demonstração de como FHC trataria aqueles que divergiam programaticamente de seu governo. Ou seja: os trabalhadores. Todo o esquema, segundo a revista Veja, se explicava pelo objetivo político de FHC: vencer a CUT de maneira acachapante, a única oposição organizada ao governo. “Para um governo que pretende acabar com a indexação dos salários, extinguir privilégios do funcionalismo público e mexer nas aposentadorias, derrotar o setor mais forte do sindicalismo é uma condição quase obrigatória”, escreveu a revista.
A mídia, mais uma vez, armou seu circo. Para difamar a greve, chegaram ao ponto de dizer que criancinhas estavam passando fome porque, com a falta de gás de cozinha, as mães não podiam esquentar mamadeiras. Mas na verdade eles estavam se lixando para isso. Nas cabeças dos “intelectuais” do neoliberalismo, que a mídia chama de “coroadas”, o desabastecimento era apenas “um dado da questão” que o “mercado” resolveria. Logo a quebra do monopólio da Petrobras seria aprovada no Câmara dos Deputados.
A direita tripudiava sobre o resultado da greve. Paulo Francis, à época comentarista da Rede Globo de Televisão e colunista do jornal O Estado de S. Paulo, disse: “Uma das falhas do governo FHC é sua boa educação. É preciso meter as mãos na cabeça raspada do Vicentinho língua-presa (eu lhe daria uma chicotada para ver se reage docilmente como escravo).” Outro conhecido “comentarista” da Rede Globo de Televisão, Alexandre Garcia, afirmou que a ocupação militar era uma medida necessária para evitar que os petroleiros ameaçassem o patrimônio físico das refinarias.
Vicentinho cai na cilada neoliberal
Em seu primeiro ano de governo, o presidente da República indicou claramente o rumo do seu mandato. Mas nem todos entenderam aquela conjuntura e fizeram concessões descabidas quando FHC tentou diminuir a resistência dos trabalhadores acenando aos sindicalistas com um “diálogo” sobre seu programa de governo. O ponto principal, naquele momento, era a “reforma” da Previdência. A tática era a de criar uma aparência de debate para impor a agenda neoliberal. E o presidente da CUT caiu na cilada.
A proposta do governo implicava em perdas certas e imediatas para os trabalhadores. Em troca, havia a promessa de benefícios incertos e difusos para o “conjunto da sociedade” no futuro. A primeira rodada de “negociações” aconteceu em 11 de janeiro de 1996. A principal divergência foi a proposta de substituição da aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição. A princípio, entre as centrais sindicais (CUT, CGT e Força Sindical) apenas a Força Sindical aceitou a proposta governista.
Mas no decorrer do processo de “negociações” Vicentinho comprometeu-se a defender os termos do acordo na direção nacional da CUT — inclusive a aposentadoria por tempo de contribuição. Apenas quatro dias após o início das “negociações”, os presidentes das três centrais sindicais se comprometeram, perante os ministros Paulo Paiva (Trabalho) e Reinhold Stephanes (Previdência), a formalizar o acordo em cerimônia com a presença do presidente da República. A atitude de Vicentinho desencadeou um intenso debate na CUT e nos partidos de oposição — inclusive no PT.
Pedido de renúncia de Vicentinho
Os termos previstos no acordo — substituição da aposentadoria por tempo de serviço por tempo de contribuição, fim da aposentadoria proporcional, fim da aposentadoria especial para os professores universitários e novas regras para aposentadoria integral no serviço público — foram duramente criticados até por setores da Articulação Sindical. A direção nacional da CUT optou por não assinar o acordo e insistir na continuidade das “negociações”. Mas o presidente da central insistiu na busca de um acordo “aceitável”, ao menos para a Articulação Sindical.
Em uma plenária nacional realizada em 21 de janeiro de 1996, representantes de 17 sindicatos e federações de servidores públicos federais filiados à CUT aprovaram a retirada da central das “negociações” com o governo. Nesta mesma plenária também foi apresentada — e derrotada — uma proposta de pedido de renúncia de Vicentinho. Logo em seguida, no dia 31 de janeiro de 1996, o presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Federais (Sindsep-DF), Ismael César, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, responsabilizou o presidente da CUT pelo fracasso de uma paralisação de 24 horas do funcionalismo por melhores salários e contra a “reforma” da Previdência.
Relatório da “reforma” é rejeitado
No começo de fevereiro de 1996, dirigentes sindicais do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) e do Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias (RJ) assinaram uma nota em conjunto com dirigentes sindicais da Corrente Sindical Classista (CSC) e do Movimento por uma Tendência Socialista (MTS) condenando o acordo. “É absolutamente inaceitável que uma instância de direção, que reunirá apenas a cúpula da central, decida sobre a questão em pauta (o acordo com o governo)”, dizia o documento. Para aqueles sindicalistas, uma decisão tomada por maioria apenas na direção nacional feria os “princípios fundamentais da nossa central, como a democracia e a soberania da base”.
À essa altura, até Força Sindical, que sempre defendeu o “entendimento” entre governo, trabalhadores e empresários, já havia abandonado a mesa de “negociações”. Para tentar salvar a proposta, o então presidente da Câmara dos Deputados, Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA), alegando uma “brecha regimental”, utilizou um expediente restrito às “emendas de plenário” para encaminhar o substitutivo do relator Euler Ribeiro (PMDB-AM) diretamente para o plenário.
Mas a manobra não deu certo e no dia 6 de março de 1996 o relatório foi rejeitado por 294 votos a favor e 190 contra (eram necessários 308 votos para a aprovação do substitutivo). A mídia, o patronato e o governo responsabilizaram a CUT e o “corporativismo do setor público” pelo fracasso das “negociações”. O discurso predominante afirmava que a CUT era refém de “interesses corporativos” dos trabalhadores do setor público e, portanto, qualquer tentativa de negociação com a central seria inviável.
Mudanças radicais no mundo do trabalho
FHC reagiu imediatamente e retomou a sua proposta original, nomeando um novo relator. No dia 21 de junho de 1996, uma greve geral, mesmo em meio àquele clima hostil, foi considerada um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve — ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação eles mostraram o seu sucesso. Mas as condições para a ação sindical eram cada vez mais duras.
O mundo do trabalho vivia momentos de mudanças radicais e os sindicatos, sem forças para reagir à altura, se retraíam. O governo havia editado uma Medida Provisória (MP) — chamada de MP da desindexação — que na prática proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho. As campanhas salariais muitas vezes se resumiam à luta para não perder direitos. No dia 25 de abril de 1997, os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do “Plano Real”. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país. A atitude de Vicentinho no acordo da Previdência, no entanto, deflagrou uma aguda crise no interior da CUT.
10 – A central de um homem só
A concentração de poderes e as atitudes personalistas do presidente da CUT eleito no 5º Congresso, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, se acentuaram na reta de chegada do 6° Congresso da central. Até o setor bancário da Articulação Sindical fazia críticas duríssimas à sua gestão. A CUT vivia uma profunda crise de direção. Enquanto isso, o trator neoliberal avançava esmagando os trabalhadores sem dó nem piedade.
Em agosto de 1997 ocorreu o 6º Congresso da CUT. Concorreram com Vicentinho à presidência da central Wagner Gomes, da Corrente Sindical Classista (CSC), e Jorge Luiz Martins, o Jorginho, representando a Alternativa Sindical Socialista (ASS), a Articulação de Esquerda (AE) e o Movimento por uma Tendência Socialista (MTS). As “negociações” da Previdência enterraram a possibilidade de repetição da unidade em torno do nome de Vicentinho, como ocorreu no 5º Congresso.
Até a Articulação Sindical se dividiu. “Concordamos com as críticas feitas pelos bancários sobre a falta de debate na última gestão e estamos abertos a discutir com eles — e com qualquer outra tendência — alguma composição política”, disse Wagner Gomes ao jornal O Estado de S. Paulo no dia 29 de julho de 1997. Na entrevista, Wagner Gomes afirmou que a CSC iria ao Congresso com propostas e críticas. A principal proposta seria a de trabalhar pela união de todas as tendências da CUT, de partidos da oposição e dos movimentos populares na gestão seguinte da central para enfrentar o governo FHC.
Hegemonia a qualquer custo
A principal crítica da CSC se referia ao papel conciliador assumido por Vicentinho na gestão que terminava. “A CUT teve atuação oscilante no último período e, no caso da negociação da Previdência, foi pior, foi uma atuação desastrosa”, disse Wagner Gomes. Para ele, a Articulação Sindical ouviu pouco as posições das demais tendências. “A atuação da CUT deve ser resultado de decisões coletivas e não de uma só corrente política ou de um só dirigente”, ressaltou.
Jorginho também fez duras críticas à Articulação Sindical. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, ele acusou a tendência majoritária da CUT de evitar deliberadamente a discussão política no 6º Congresso da CUT. Jorginho disse que havia uma revolta generalizada dos delegados com o excesso de “festa” no Congresso e quase nenhuma discussão política. “A impressão de todos é que só se discutem cargos. Que o único interesse do Congresso é resolver a situação da Articulação, sem o estreitamento do debate político”, afirmou. Segundo Jorginho, a manobra era uma forma de evitar que os problemas da Articulação Sindical fossem discutidos publicamente. “É uma clara intenção de manter a hegemonia a qualquer custo”, afirmou.
Oposição a Vicentinho
O instinto de preservação uniu a Articulação Sindical em torno da candidatura de Vicentinho. “Estamos trabalhando para evitar o racha na Articulação”, disse Ricardo Berzoini, à época presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo. Mas os bancários exigiram mudanças na estrutura de decisão da central e na composição da diretoria. “Nós estamos sugerindo que as decisões na CUT passem por um debate mais amplo. Elas não podem ser tomadas por um grupo ou por uma única pessoa”, afirmou Berzoini. Segundo ele, se as discussões não avançassem a opção dos bancários seria fazer oposição a Vicentinho, mesmo votando na chapa da Articulação Sindical.
Foi mais ou menos isso que acabou acontecendo. Ricardo Berzoini e João Vaccari Neto (à época diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo), em artigo intitulado “Um gesto contra a CUT de um homem só”, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 13 de agosto de 1997, criticaram Vicentinho severamente. “A história da CUT e sua credibilidade — conquistada com o esforço de milhares de trabalhadores, entre eles os bancários — exigem, no nosso entendimento, cada vez mais responsabilidade e compromisso dos seus dirigentes. Mas não é o que tem acontecido nestes últimos três anos. A participação nas decisões, a democracia interna e o debate de idéias foram substituídos pelo personalismo, que tem sido a marca da autoritária gestão do atual presidente, o companheiro Vicentinho, ao privilegiar sua visibilidade pessoal em detrimento da construção coletiva das estratégias”, escreveram.
Protesto lembrou jejum
No artigo, Berzoini e Vaccari lembraram, como exemplo de personalismo de Vicentinho, as “negociações” sobre a “reforma” da Previdência. “Havia uma série de pontos de que a CUT não poderia abrir mão. Vicentinho, porém, anunciou pela mídia que havia chegado a um acordo com o presidente FHC. Com isso, colocou em risco a defesa de conquistas como as aposentadorias proporcional e por tempo de serviço”, escreveram.
Eles disseram ainda que em maio de 1996 os dirigentes sindicais foram surpreendidos com o anúncio de Vicentinho, durante a manifestação do Dia Internacional dos Trabalhadores, de que haveria uma greve geral no mês seguinte. O problema não era a greve. “A convocação, por vontade pessoal de Vicentinho, criou um fato consumado, que impediu o debate interno, restringindo-o a quem era contra e quem era a favor da decisão”, disseram Berzoini e Vaccari.
Eles escreveram também que a greve de fome de 24 horas realizada por Vicentinho — segundo os autores do artigo, o protesto lembrou um jejum — para protestar contra a decisão de FHC de denunciar (retirar a adesão) a Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de impedir a demissão “imotivada”, aprovada pelo Congresso Nacional em 1992 e ratificada pelo governo em janeiro de 1995. Segundo Berzoini e Vaccari, o presidente da CUT deu “um caráter individual de protesto contra uma postura do governo que atingia a todos os trabalhadores, que era o desrespeito à Convenção 158 da OIT”.
Imposições de Vicentinho
As críticas mais duras foram reservadas ao processo sucessório na CUT. “O autonomismo de Vicentinho ficou patente no processo sucessório da CUT. Suas idas e vindas sobre a decisão quanto a ser candidato a deputado federal em 1998 ou reeleger-se na CUT possibilitaram todo tipo de especulações e desgaste político de companheiros, inviabilizando a discussão e as críticas ao seu mandato. Finalmente, fomos contemplados com o ‘Dia do Fico’, com imposições de caráter administrativo e de teses — algumas que não foram discutidas na sua própria corrente política, mas que já começam a aparecer nos jornais, e outras cujos assuntos já estavam para ser debatidos no Congresso Nacional da CUT”, escreveram.
Berzoini e Vaccari também criticaram a Articulação Sindical por aceitar as imposições de Vicentinho. “Preocupa-nos muito que a Articulação, corrente política majoritária e responsável pelas teses hegemônicas de uma central de massas respeitada como a CUT, aceite esse tipo de situação sem minimamente questionar que tipo de direção queremos”, afirmaram. E prometeram reagir. “O Sindicato dos Bancários de São Paulo não aceita nem vai compactuar com o silêncio e a passividade. Não temos a menor confiança em que a solidariedade e o compromisso coletivo venham a prevalecer na próxima gestão. Se o companheiro Vicentinho descolou-se demais do coletivo e privilegiou ações pessoais, muitas vezes despolitizadas, isso só tende a se agravar no futuro”, escreveram.
Um novo rumo para a CUT
As palavras finais do artigo expressavam a intenção de formular uma plataforma sindical combativa. “Preferimos prosseguir nossa trajetória de construção da CUT e de fortalecimento da luta dos trabalhadores, abrindo mão do que parece ter se tornado o referencial para boa parte dos dirigentes, que é a disputa de cargos na direção. O pluralismo, a visão classista, a democracia e a solidariedade foram as bases fundamentais em que se assentou a construção da CUT, permitindo a convivência de tantas diferenças. Acreditamos que é sobre essas bases que ela deve prosseguir, tendo em vista a sempre necessária unidade da classe trabalhadora. Queremos construir a CUT de todos os trabalhadores e trabalhadoras. Não aceitamos a central de um homem só”, escreveram.
Não eram apenas os bancários que demonstravam a necessidade de um novo rumo para a CUT. No 6º Congresso da central, uma pesquisa realizada pelo Datafolha indicou que a maioria dos delegados desejava que a CUT realizasse mais ações contra o governo FHC. Dos entrevistados, 41% disseram que a central deveria organizar mais greves. Para 64%, a CUT estava fazendo menos do que poderia. Sobre a convocação de greves gerais, o apoio foi de 92%. A criação de empregos deveria ser a principal reivindicação para 65%. Era um sentimento natural diante das evidências de que FHC cumpriria a promessa de se livrar da “era Vargas”. Mas o movimento sindical já vivia uma crise de grandes proporções.
11 – Repressão e cooptação
Na segunda metade dos anos 90, a CUT mergulhou na passividade. A crise no movimento sindical parecia não ter fim. Mas as medidas adotadas pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) no início do seu segundo mandato empurrariam a central para novas batalhas. O Brasil havia entrado na fase que levaria a crise do projeto neoliberal a se agravar rapidamente. E a CUT teria importante papel na batalha que pôs ponto final na “era FHC”.
O líder da revolução socialista russa, Vladimir Lênin, formulou a tese de que o capital aplica dois métodos fundamentais na luta política pela conservação do seu domínio sobre o trabalho — substituindo um pelo outro conforme as condições existentes ou utilizando-os simultaneamente em diversas combinações. Um deles é a violência aberta, a privação de direitos políticos para os trabalhadores. O outro é o liberalismo. Ou seja: a proclamação da “cooperação” entre capital e trabalho, a “liberdade geral”, a “igualdade de oportunidades” e a idéia de um “capitalismo popular”. No Brasil, vimos isso claramente quando a direita transitou dos anos de chumbo da ditadura militar para a “era FHC”. No começo, o projeto neoliberal sofreu alguns reveses, mas a tática de cooptação de dirigentes sindicais mostrava-se eficaz.
O historiador Eric Hobsbawm atribuiu essa degeneração de valores às mudanças de paradigmas ocorridas na virada do século XX para o século XXI. Para ele, a comparação entre o começo e o final do século XX mostrava um mundo qualitativamente diferente em pelo menos três aspectos: o planeta deixou de girar em torno da Europa; o mundo se tornou uma unidade operacional integrada pelo capitalismo “globalizado” pelos grandes monopólios; e ocorreu uma mudança nos padrões de comportamento e de relacionamentos humanos — segundo Hobsbawm, os valores morais e a ética como os conhecíamos entraram em crise.
Sumidouro de consciências limpas
No movimento sindical, a crise chegou com força. Em 1998, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) realizou um “Seminário Sindical Nacional” no qual o assunto foi um dos pontos de pauta. “Algumas forças e personalidades avaliam que os sindicatos já esgotaram seu papel histórico de organização e educação dos trabalhadores (…). Alegam que foram descaracterizados como representantes de classe, em função de fenômenos como o burocratismo, o corporativismo e mesmo a corrupção. (…) Há muita verdade em tudo isso, mas a conclusão é incorreta”, diz o documento final do Seminário. Segundo o Partido, a idéia de que os sindicatos já não tinham grande função na sociedade moderna servia aos interesses do neoliberalismo e deveria ser combatida.
O documento ressalta que “a crise do socialismo repercutiu ideologicamente na perda de perspectiva de alguns setores do movimento operário que lutavam pela transformação social”. Ainda segundo o PCdoB, essa condição exalta “os valores da competitividade, do individualismo e da concorrência entre os próprios trabalhadores”. E conclui o assunto afirmando: “Tais valores se contrapõem com mais força aos valores de solidariedade, de coletividade, e à perspectiva emancipadora da classe operária. Essa ofensiva neoliberal, que traduz uma estratégia imperialista, acentua ainda mais os limites do sindicalismo, o seu caráter corporativo e economicista. E ressalta a luta política e ideológica como fator fundamental para os trabalhadores.”
Em muitos lugares, a máquina sindical se transformara num sumidouro de consciências limpas. Sindicalistas honestos conviviam com situações em que o sujeito ao lado poderia ser, a qualquer momento, o pivô de um escândalo. O mandonismo e o caudilhismo imperavam. Muitos dirigentes sindicais mantinham seus cargos pisando em cabeças, não assumindo suas falhas, passando-as adiante, jogando seus erros nas costas de quem estava em posição mais frágil. O documento do Seminário do PCdoB referido acima dizia: “(…) A questão a ser enfrentada é de ordem política e ideológica. Relaciona-se com a direção efetiva do movimento, que hoje carece de uma concepção classista.”
Conselho de reconhecimento
Em poucas tendências sindicais restaram efetivamente o horizonte socialista, a reflexão filosófica e, em conseqüência, os fundamentos do comportamento ético — resultado da orientação prática, pragmática, e do senso utilitário presentes no mundo da disputa mesquinha. Surgiram o desânimo, a desunião e as reações sorrateiras. A Corrente Sindical Classista (CSC) talvez tenha sido a vertente sindical que mais abordou o tema. Preocupada com a evolução do fenômeno, no 7º Congresso da CUT, realizado em 2000, a CSC defendeu a constituição de um código eleitoral prevendo regras democráticas e legais para os processos eleitorais e para o combate ao banditismo sindical.
A CSC também formulou a proposta de um conselho de reconhecimento, composto pela representação das centrais sindicais, que, assim como o código eleitoral, teria respaldo legal para dirimir conflitos e proteger a democracia sindical. Era uma medida necessária diante do banditismo sindical, que já atingira proporções alarmantes. No movimento sindical existiam muitos lugares em que o ambiente era cada vez menos politizado e cada vez mais regido pela lógica incivilizada do faroeste. O enfraquecimento moral fragilizava a tomada de decisões coletivas e sinalizava para uma crise de grandes proporções. Como resultado, as práticas eram cada vez mais individualistas, as posturas cada vez mais decaídas.
A direita cooptava e ameaçava
Quando a campanha pela reeleição de FHC começou, o clima no movimento sindical era desanimador. Ainda assim, a CUT reuniu suas forças e entrou firme na campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 1998. Para arrecadar recursos, a central foi às portas das empresas recolher um real de cada trabalhador. Segundo o então presidente da CUT, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, a idéia era arrecadar pelo menos 3 milhões de reais em cada mês até o primeiro turno das eleições que ocorreria no dia 4 de outubro de 1998. Além disso, dirigentes da CUT criaram um comitê nacional e vários estaduais com o objetivo de organizar a militância cutista para trabalhar na campanha de Lula.
A radicalização do governo também empurrou a CUT para ações mais combativas. O primeiro golpe efetivo da “era FHC” na “era Vargas” ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1998, quando a “reforma” da Previdência foi aprovada no Congresso Nacional. Mas a direita pagou caro pelo golpe — naquela data, a CUT comandou o “Dia Nacional de Luta contra a Reforma da Previdência”. Nos bastidores da votação, a corrupção fervilhou. Tudo virou barganha. A obrigatoriedade do selo de controle colado no pára-brisa dos carros tornou-se lei para atender a um lobby do sobrinho do deputado Delfim Netto (PPB-SP). A corrupção chegou a detalhes reles — um deputado do PTB negociou a transferência de sua mulher de São Paulo para Brasília. Um caminhão de dinheiro da Caixa Econômica Federal (CEF) foi liberado para a compra de votos. E a coisa foi por aí afora.
A direita cooptava mas também deixava o uso da força sempre ao alcance da mão. “Se precisar bater, bata. Se precisar atirar, atire. Aqui não vai entrar ninguém. Eu estou aqui”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), presidente do Congresso Nacional, aos seguranças chamados para reprimir os trabalhadores. O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ameaçou mandar a Polícia Militar atirar nos manifestantes se eles não se retirassem do plenário. FHC e sua mídia abusaram da retórica para atacar os “baderneiros” que protestaram em todo o país.
Proporções planetárias e pânicas
O país se arrastava e logo seria atingido de frente pelo furacão que começou a girar na Tailândia, com o “mercado” apostando contra o baht — a moeda local. A Ásia era apresentada como um paraíso onde tigres poderosos cresciam e afiavam as garras. Taiwan, Coréia do Sul, Cingapura e Hong Kong formavam as poderosas Newly Industrialized Economies (NIEs). Malásia, Tailândia, Indonésia e Filipinas eram as maiores economias do grupo Associacion of the South-East Nations (Asean). Do ponto de vista econômico, ali era, segundo os neoliberais, o novo Jardim do Éden.
Com um tigre caído, a insegurança se alastrou pela floresta. A crise ganhou proporções amazônicas quando os ataques se estenderam ao centro financeiro da Ásia, cercando o tigre que dominava aquelas paragens: Hong Kong e o seu dólar. Finalmente, ela chegou à Rússia e ao Brasil, catapultada a proporções planetárias e pânicas. Para não se afundar, o Brasil agarrou-se à tábua de salvação lançada pelo FMI, fechando o primeiro acordo em novembro de 1998 (o compromisso seria renovado sucessivamente e valeria até o fim do último contrato assinado por FHC, já em 2005 com Lula na Presidência da República).
O modelo econômico hegemônico, delegado a FHC no Brasil, mostrava seus resultados. O país era um dos lugares em que a teoria de uma lógica do mercado financeiro funcionando como mão invisível, impedindo distorções localizadas, mais vicejou. Os “guardiões da moeda” da “era FHC” garantiam que o fluxo mirabolante de capital não falharia nunca em premiar os países que abrissem suas economias e promovessem “reformas estruturais”. Eles diziam que as decisões de compra e venda de papéis obedeciam a uma racionalidade baseada em análises objetivas sobre o potencial de crescimento de cada país.
Próximos campos de batalha
Em outubro de 1998, o então presidente da República, se aproveitando da crise que começou na Ásia, disse: “A opção é simples: fazer logo o ajuste (as reformas), enfrentando os sacrifícios necessários, e voltar a crescer o mais cedo possível. (…) O Estado se tornou incapaz de cumprir o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro. (…) O Brasil precisa resolver seus problemas para tirar as dúvidas que, a cada crise externa, pairam sobre a nossa capacidade de manter o rumo.”
O país estava no centro do que o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, chamou de “a pior crise financeira do mundo nos últimos 50 anos”. Na definição do jornal norte-americano The New York Times, o Brasil constituía “a nova linha de frente na luta para conter a crise financeira internacional”. O receio era que outros países pudessem ser contagiados por um eventual descarrilamento da economia brasileira. “Se o Brasil cair, a Europa e os Estados Unidos se converterão nos próximos campos de batalha”, escreveu o New York Times.
Nesse clima, a idéia do empréstimo do FMI era a de dar um reforço ao caixa brasileiro, condicionado a um programa de “ajuste fiscal”. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, passou a trabalhar na arquitetura do programa de arrocho nos investimentos públicos a fim de sobrar mais recursos que seriam destinados ao pagamento dos serviços da dívida interna — o impopular superávit primário. Malan dizia que era preciso gerenciar a crise. Mas, dali em diante, a crise gerenciaria o governo.
A “Marcha dos 100 mil” em Brasília
A CUT, em conjunto com os partidos de oposição e os movimentos populares, anunciou mais uma bateria de manifestações. Organizadas no “Fórum Nacional de Luta por Trabalho, Terra e Cidadania”, essas entidades lançaram, no dia 1º de março de 1999, a “Jornada Nacional em Defesa do Brasil”. No dia 26 daquele mês, sob a palavra de ordem “Basta de FHC!”, mais uma vez os trabalhadores foram às ruas defender o Brasil.
Prevendo o choque com os trabalhadores, o governo também agiu para amedrontar a Justiça do Trabalho. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas pelo senador ACM — a essa altura um dos principais esteios do governo FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. A ordem era não conceder reajuste. ACM chegou a criar uma CPI do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho.
No dia 26 de agosto de 1999, os trabalhadores promoveram a “Marcha dos 100 Mil”, em Brasília, que representou uma grande vitória da unidade entre os partidos de oposição e o “Fórum Nacional de Lutas”. Aquela demonstração histórica de mobilização popular foi o resultado da consolidação da “Frente de Oposição Democrática e Popular”, depois de sucessivas manifestações contra o projeto neoliberal. Representantes da “Marcha dos 100 mil” entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados 1 milhão e 300 mil assinaturas exigindo a instalação da CPI da Telebrás — destinada a apurar a corrupção no processo de privatização do sistema telefônico brasileiro. A CUT foi arrastada pelos fatos para o campo de batalhas da luta de classes e teria um papel importante nos acontecimentos que levaram a “era FHC” à derrota nas eleições presidenciais de 2002.
12 – Resistência e loteamento de cargos
A crise do projeto neoliberal, que atingiu o Brasil de frente, desencadeou novos enfrentamentos entre o governo FHC e os trabalhadores. A CUT participou ativamente da resistência, mas, no 7° Congresso, mostrou que o hegemonismo da Articulação Sindical é um fenômeno de difícil remoção.
A ativa participação da CUT na “Marcha dos 100 mil”, realizada em Brasília no dia 26 de agosto de 1999, evidenciou a contradição na qual vivia a central — enquanto um setor da direção cutista insistia nas “negociações”, a realidade empurrava os trabalhadores para o enfrentamento com o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Na ocasião, Luiz Inácio Lula da Silva expressou, em poucas palavras, o que representava aquele momento. “Estou gratificado. Que FHC e sua corja nunca mais ousem duvidar da capacidade de organização da sociedade”, disse ele em resposta ao então presidente da República, que havia dito que aquela seria uma manifestação dos “sem-rumo”. Dirigindo-se diretamente a FHC, Lula afirmou: “Quem não tem rumo é você.”
Embora não tivessem uma pauta unificada de propostas, os organizadores da “Marcha dos 100 mil” deixaram claro que não pretendiam apenas uma mudança no governo, mas uma mudança de governo. Ou seja: a saída do presidente menos de oito meses após a sua posse no segundo mandato, traduzida no slogan “Fora, FHC!” “Temos de fazer milhares de movimentos como este até tirar essa gente do poder”, discursou Lula, confirmando o que o presidente do PDT, Leonel Brizola, dissera um pouco antes no mesmo palanque montado em frente ao Congresso Nacional. “Esse ato é apenas o começo de uma grande jornada que só vai parar no dia em que tivermos um governo em que o povo brasileiro confie”, afirmou Brizola.
O cumprimento das metas impostas pelo FMI corroía o governo. FHC, já abalado por altos índices de impopularidade, se isolava cada vez mais. Uma nota assinada pelo Fórum Nacional de Lutas — que reunia as entidades que participaram da “Marcha dos 100mil”, encabeçadas pela CUT, MST, UNE e Central dos Movimentos Populares (CMP) — refletia bem essa constatação. O documento defendia emprego para todos, aumento geral de salários, redução da jornada de trabalho, fim das privatizações e auditoria nas empresas já privatizadas, suspensão do pagamento da dívida externa e ampla reforma agrária. O texto também mencionava o pedido de impeachment de FHC e pedia a instalação da CPI das privatizações das empresas de telecomunicações.
Nova redação para o artigo 618 da CLT
O presidente da República reagiu com mais ameaças. Questionado sobre a possível volta de uma lei para corrigir os salários automaticamente, FHC disparou: “No limite, eu veto. Eu não vou deixar.” Nas cabeças neoliberais, cada empresa deveria definir sua política salarial. É o que eles chamam de “livre negociação”. Em 2001, o país, ainda com essa gente no poder, viveu o auge dos ataques à legislação trabalhista. FHC encaminhou ao Congresso um projeto de lei alterando o artigo 618 da CLT. “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de segurança e saúde do trabalho”, dizia a nova redação de FHC.
Era só o começo. O governo pretendia desregulamentar os 34 incisos do artigo 7° da Constituição — uma espécie de minicódigo do trabalho —, que tratam de direitos como jornada de 44 horas semanais, salário mínimo, seguro-desemprego, FGTS, aviso prévio, limites para a despedida arbitrária, piso salarial, irredutibilidade de salário e sua garantia, décimo-terceiro e remuneração do trabalho noturno. “Em que pese a pouca abrangência da reforma, o seu aspecto gratificante é saber que o governo atual está inspirado por uma nova mentalidade e uma nova determinação, tornando possível a reforma trabalhista em curso, que, até pouco tempo atrás, parecia impossível, empalidecendo as minorias vociferantes e conservadoras e as viúvas ideológicas”, disse o então ministro do Trabalho, Francisco Dornelles.
Instrumento para sindicatos de fachada
Para vender a farsa, Dornelles dizia que as novas regras criariam 20 mil empregos diretos. Na verdade, a “reforma” da legislação e das práticas trabalhistas era uma das peças centrais do projeto neoliberal. O projeto de lei de FHC alterando o artigo 618 da CLT fazia parte — em conjunto com a privatização da previdência, da saúde, da educação e do saneamento básico — das “reformas” de segunda geração previstas no pacote de exigências contidas no acordo com o FMI. FHC já havia conseguido a lei nº 9.601/98, sobre o contrato por prazo determinado; editado a medida provisória nº 1.709, que instituiu o trabalho de tempo parcial; e o decreto nº 2.100, autorizando a demissão sem motivo.
Mas FHC enfrentaria uma dura resistência. “A CUT tem a mentalidade de que tudo o que vem do governo é ruim”, disse Dornelles. Era a mais pura verdade. O governo pretendia fornecer mais um instrumento poderoso para a imposição de acordos via sindicatos de fachada. E por isso enfrentava a resistência do sindicalismo combativo — a central Força Sindical apoiava o projeto de FHC. A postura da CUT refletia a nova realidade criada com a realização do 7° Congresso da central entre os dias 15 a 19 de agosto de 2000. A Articulação Sindical definiu a escolha de João Felício como candidato para a disputa à presidência da entidade ao derrotar os pré-candidatos João Vaccari Neto — à época vice-presidente da CUT e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo — e Mônica Valente.
Reconstrução da unidade interna
Vaccari Neto considerou a escolha de Felício uma traição. Em 1997, ele disputou dentro da Articulação Sindical a candidatura à presidência da CUT com Vicentinho. Na ocasião, Vaccari Neto abriu mão da candidatura para ser vice de Vicentinho. A condição seria que Vicentinho desistiria do cargo para que Vaccari Neto assumisse. A opção de Vicentinho — que se licenciou do cargo, no início do ano, para concorrer à prefeitura de São Bernardo do Campo (SP) — por Felício gerou o rompimento total de Vaccari Neto com o principal grupo da Articulação Sindical. “Eu não avalizo o atual mandato. Acho que Vicentinho como presidente foi um desastre para a CUT”, disse Vaccari Neto. Felício ganhou a disputa com Wagner Gomes, da CSC, Júlio Turra, de O Trabalho, e Jorge Luiz Martins, o Jorginho, da ASS.
Na composição da direção montada pela Articulação Sindical, que para reconstruir sua unidade interna loteou os cargos, Vaccari Neto ficou como tesoureiro e Mônica Valente assumiu a vice-presidência. A nova gestão começava com expectativas sombrias, decorrentes da escalada hegemonista a todo custo da Articulação Sindical. A anulação do Congresso estadual da Bahia, a saída negociada para o Congresso de Minas Gerais e a derrota em plenário de um recurso contra o Congresso do Amazonas — todos realizados somente com delegados da Articulação Sindical, depois que as outras correntes se retiraram em protesto contra manobras praticadas pela corrente majoritária — denunciavam a continuidade das atitudes condenáveis da principal tendência da central.
Funcionamento democrático
Esse clima refletiu-se na solenidade de abertura do 7° Congresso. O presidente da CUT em exercício, Kjeld Jakobsen, destacou a necessidade de que o Congresso não fosse apenas eleitoral. O então vice-presidente do PCdoB, Renato Rabelo, ressaltou a necessidade de garantir o caráter plural da CUT e sua combatividade no enfrentamento ao neoliberalismo. E Lula disse que as divergências políticas não podiam ser um fim em si e mostrou-se preocupado com a disputa acirrada pela presidência da central dentro da Articulação Sindical. Esse esforço no sentido de forjar um clima unitário deu resultado. As teses da linha política foram bem discutidas e não houve espaço para propostas conciliadoras de tipo “propositivas”.
A proposta da CSC de “Fora, FHC! Fora o FMI!” foi aprovada, junto com um adendo feito pela Articulação Sindical exigindo CPI para apurar a corrupção do governo FHC. Com relação à proposta de sindicato nacional, orgânico, outro grande fator de desunião na entidade, houve recuo por parte da força majoritária. Na questão da democracia interna ocorreram avanços relativos. Ganhou destaque a decisão de possibilitar a volta à central de sindicatos inadimplentes. Mas os principais problemas relacionados ao funcionamento democrático da CUT continuaram existindo. O loteamento de cargos entre os integrantes da Articulação Sindical, por exemplo, impediu a proporcionalidade na distribuição das secretarias, comprometendo o caráter plural e unitário da central.
13 – Cenário propício para a central
Com a eleição de João Felício para a presidência da CUT, a central ganhou uma feição mais combativa. Essa nova fase cutista foi importante para a substituição da “era FHC” pelo governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Mas os conservadores impuseram uma agenda antipopular ao novo governo, realçando ainda mais o papel combativo da nova fase da CUT.
Os resultados positivos do 7º Congresso da CUT, realizado em 2000, trouxeram ânimo à central. Nos debates, foram derrotados tanto o sectarismo quanto a conciliação. A crise ideológica que havia se instalado no meio cutista aparentemente estava se dispersando. Essa nova fase foi anunciada com a aprovação de um plano de lutas que marcava claramente o caráter oposicionista da central. A CUT também assumiu publicamente que jamais negociaria os direitos trabalhistas. “Vamos continuar a negociar, mas só o que representar a ampliação de direitos”, disse o então novo presidente da central, João Felício, em entrevista à revista Debate Sindical.
Ele também destacou outro aspecto positivo do Congresso: a unidade da CUT. “Nem os que queriam uma mudança na estrutura sindical, com o sindicato nacional, nem os que discordavam desta proposta se sentiram excluídos. Ambas as posições continuam sob o guarda chuva unitário da CUT”, afirmou Felício. O presidente da central denominou a nova agenda cutista de “CUT Cidadã”. “Há, por exemplo, o problema da discriminação da mulher, do racismo, do trabalho infantil. A CUT deve encabeçar lutas em todos estes terrenos, elaborar propostas”, disse ele. Felício também prometeu uma “gestão mais compartilhada, com a participação de todos, para que a nova direção funcione como um corpo colegiado”.
O novo presidente também disse que a CUT teria uma conduta mais ativa, de oposição bem definida. “Desde 1998 a conjuntura está mudando. Aumenta o desgaste do governo FHC. Categorias que estavam acuadas há anos voltam a fazer greves. Fica mais claro do que nunca que a marca de FHC são a retirada dos direitos trabalhistas, o arrocho, o desemprego. Surgem as denúncias de corrupção no governo. Este processo motiva a retomada das lutas, como a ‘Marcha dos 100 mil’. Penso que a CUT, na próxima fase, terá uma forte marca oposicionista, liderando inúmeras greves. Estou muito otimista. O fundamental é dar conseqüência à luta pelo ‘Fora, FHC!’”, disse Felício.
Principal base da Força Sindical
De fato, o movimento sindical entrava numa nova fase. Na década de 1990, apesar da arrasadora crise de identidade o número de sindicatos de trabalhadores no país cresceu 49% — segundo uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Mesmo com a intensidade da onda neoliberal, de 1991 a 2001 o número de sindicalizados apresentou um aumento de 22%. A participação das convenções e acordos coletivos, refletindo o esvaziamento do poder normativo da Justiça do Trabalho, cresceu significativamente, passando de 58%, em 1991, para 81%, em 2001.
Por outro lado, a participação dos dissídios coletivos, no período, caiu de 33% para 12% do total de negociações. A pesquisa também revelou o crescimento da participação das mulheres nas diretorias sindicais, dos cursos de qualificação de mão-de-obra voltados para os trabalhadores, da representação dos sindicatos nos locais de trabalho e do número de sindicatos ligados às centrais sindicais.
Ao mesmo tempo, a principal base da Força Sindical, os metalúrgicos de São Paulo, se esvaziava. O então presidente do sindicato daquela categoria, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, pregava abertamente o credo neoliberal. “Todas as estatais, inclusive a Petrobrás, são cabides de empregos e têm de ser vendidas”, disse ele, falando em nome da Força Sindical, partícipe das negociatas envolvendo muitas empresas que foram privatizadas na década de 1990. Em sua avaliação, o governo FHC fazia uma boa gestão — apesar de lento na execução das “reformas”.
Anteprojeto de lei contra a CLT
O cenário era propício para que o plano de luta da CUT deslanchasse. E por isso a central voltou a ser atacada pelo campo conservador. O ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, desferia impropérios contra a CUT, em ataques até pessoais. “O que nos causa indignação não é a parcialidade do ministro, pois há tempos suas atitudes o colocam mais na condição de presidente de honra de uma corrente sindical brasileira contra as demais do que na de ministro”, disse Felício em um artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo. Para ele, Dornelles criticava a CUT a fim de “ganhar uns pontos para a sua força sindical”.
A Força Sindical e o governo se uniram para defender o anteprojeto de lei que pretendia alterar o artigo 618 da CLT, a fim de permitir que a celebração de acordos coletivos prevalecesse sobre a legislação. “Acho a mudança até tímida. Deveríamos ter uma legislação que ampliasse ainda mais o poder de negociação dos sindicatos e centrais sindicais”, disse Paulinho. “A CUT é contra tudo, por isso que ela não consegue nada. Todos os grandes sindicatos estão deixando a CUT, que hoje é exclusivamente uma central de funcionários públicos”, vociferou Dornelles.
Agenda da oposição em 2001
Felício classificou as declarações de Dornelles como “mentira e calhordice”. E chamou Paulinho de “pelego governista”. O ministro também atacou a CUT por conta do episódio do acordo para o pagamento da correção do FGTS — segundo ele “o maior acordo do mundo”. O assunto referia-se aos expurgos ocorridos nos planos Verão e Collor 1. A promessa de pagamento dessa dívida do governo foi feita por FHC em agosto de 1998, às vésperas das eleições presidenciais. Prometeu e não cumpriu.
A recusa do governo em utilizar dinheiro do Tesouro Nacional para pagar a dívida, aliada à proposta de sugerir aos “patriotas” brasileiros, no caso os empresários, que pagassem uma parte, e à proposição de que os próprios trabalhadores entrassem “com sua parte”, foi o suficiente para animar um pouco mais a agenda da oposição em 2001.
Segundo o presidente da CUT, o governo, ao dizer que não tinha de onde tirar o dinheiro, tentava criar um precedente — já que pela primeira vez um réu perdia e se recusava a pagar. Felício respondeu às provocações de Dornelles com uma indagação: “Se o governo tem dinheiro para pagar as dívidas interna e externa e, principalmente, se há tanta corrupção, como não tem dinheiro para pagar uma causa ganha na Justiça e prometida pelo próprio presidente?”
Sistema político conservador
Talvez a mais importante decisão da CUT em sua nova fase foi a aprovação pela 10º Plenária da central, realizada entre os dias 8 a 11 de maio de 2002, de apoio à candidatura de Luis Inácio Lula da Silva já no primeiro turno das eleições presidenciais daquele ano. “Em 2002, durante um primeiro turno, não haverá a Frente Brasil Popular, que em eleições passadas uniu os partidos, cujas bases sindicais integram a CUT. Isso, porém, não impede o nosso apoio à candidatura Lula, considerando que historicamente esta candidatura se apresentou e se apresenta com um alto grau de viabilidade eleitoral, sempre incorporou os princípios cutistas que afirmam a construção de uma sociedade mais justa e democrática”, dizem as resoluções da Plenária.
Após a vitória de Lula, a CUT definiu claramente o seu papel naquela nova realidade. “A CUT não será instrumento do esquerdismo infantil e nem da direita desavergonhada que farão alianças para desestabilizar o novo governo”, disse Felício profeticamente. Era uma decisão importante, porque Lula teria de governar por meio de um sistema político conservador que ao longo da história aprisionou o Estado para fazer dele uma trincheira a fim de impedir a construção de uma sociedade democrática e progressista.
Campanha explícita de Palocci
Logo no início do governo, as ações da nova equipe instalada na Esplanada dos Ministérios mostraram o peso descomunal do pessoal que tomou conta do Ministério da Fazenda. Os conservadores criaram cenários de caos que supostamente iriam se materializar no minuto seguinte à troca de guarda no Palácio do Planalto e impuseram uma agenda que consistia basicamente em debelar uma enorme “crise de confiança” que havia sido detonada com a finalidade de impedir que o governo promovesse mudanças progressistas na política macroeconômica. Coincidentemente, o noticiário econômico começou a anunciar uma reversão dos “humores do mercado” assim que Lula anunciou a escolha do ex-prefeito de Ribeirão Preto (SP), Antônio Palocci, para o Ministério da Fazenda.
A partir daí, a equipe econômica começou uma campanha explícita para enumerar o que Lula não deveria fazer: o governo não daria “calote” na dívida interna criada pela “era FHC” e como garantia prometeria não gastar nada a mais do que vinha sendo gasto pelos neoliberais em investimentos públicos e sociais. “O risco agora é a gente começar a acreditar que tudo já foi resolvido”, avisou Palocci. Era uma espécie de senha para os repetidos anúncios, pela mídia, de que o governo começaria a enviar propostas de “reformas” ao Congresso Nacional.
O chamado “fogo amigo”
Mas Lula optou por começar as discussões por meio do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). O então presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP), chegou a sugerir que parte do rito normal de tramitação das “reformas” no Congresso Nacional poderia ser transferida para o CDES. Palocci reagiu imediatamente e fez gestões para esvaziar a proposta e o CDES passou a funcionar como uma espécie de grande assessoria do presidente.
No entanto, nem assim as “reformas” avançaram na velocidade desejada pelos conservadores. “Há quem acredite que as reformas vão ser aprovadas com tranqüilidade, mas ainda é muito cedo para dizer”, disse Carlos Kawall, então economista-chefe do Citibank — que mais tarde seria diretor da Área Financeira do BNDES e secretário do Tesouro Nacional.
A mídia também calibrou sua artilharia. A resistência ao conservadorismo de Palocci passou a ser tratada como um obstáculo — o chamado “fogo amigo” — que precisava ser vencido. Nesta categoria estava a CUT. Na verdade, Palocci assumiu o cargo mancomunado com os conservadores e por isso enfrentaria uma firme oposição cutista.
14 – Central bate de frente com Palocci
A indicação de Antônio Palocci Filho para o posto de coordenador do programa de governo desencadeou os primeiros desencontros entre a equipe do candidato à Pesidência da República Luis Inácio Lula da Silva e a CUT. Após tomar posse como titular do Ministério da Fazenda, Palocci seria o alvo principal do movimento sindical. A Força Sindical partiu para o ataque já no início do governo. A CUT, após um período de estudo sobre como Palocci conduziria a economia, também começou a fazer críticas pesadas à sua gestão. Iniciava-se uma fase conturbada da relação entre a CUT e o governo Lula.
Assim que assumiu o posto de coordenador do programa nacional de governo, o então prefeito de Ribeirão Preto (SP), Antônio Palocci Filho, procurou o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, em busca de apoio à candidatura à Presidência da República de Luiz Inácio Lula da Silva. “Queremos unir todas as representações sindicais em torno da candidatura”, afirmou. A atitude de Palocci motivou um comentário irônico do então presidente da CUT, João Felício. “Partido nenhum tem bafômetro para detectar o grau de pelegagem de um dirigente sindical”, disse ele.
Em resposta, segundo a colunista do jornal Folha de S. Paulo Mônica Bergamo, Paulinho mandou o CD “O Inimitável”, de Roberto Carlos, para João Felício — recomendando especialmente a faixa 9, “Ciúme de Você”. A reação do presidente da CUT foi natural, diante do apoio da Força Sindical a praticamente toda “era neoliberal”. Palocci alegou que sua intenção era ouvir todas as centrais (CUT, Força Sindical, CGT e SDS) para pedir colaborações à sua versão do programa de governo. Ele também consultaria as federações empresariais mais importantes (Fiesp, CNI, Fierj e Fiemg).
O conceito de ajuste “brabo”
Segundo o novo coordenador do programa de governo, esses seriam os dois lados de uma comissão tripartite (o terceiro seria o próprio governo) para fazer uma nova legislação trabalhista. Ele explicou que abrir espaço para discussão com outras centrais sindicais fazia parte de uma estratégia do PT que vinha de alguns anos. Conforme o partido foi consolidando a sua posição no quadro partidário, os petistas concluíram que a sua representação não poderia mais se limitar aos trabalhadores organizados na CUT. “O governo não será exclusivamente do PT nem só da CUT nem apenas dos partidos ligados ao PT. Será uma seleção brasileira”, disse Aloizio Mercadante (SP), então candidato ao Senado.
As primeiras ações de Palocci, no entanto, já criaram atritos com a CUT. Ele anunciou um “ajuste fiscal brabo”, o que representava a decisão de eliminar a margem de manobra para a ampliação dos investimentos públicos. O conceito de “ajuste brabo” (“muito forte”, “intenso”, “violento”, segundo o dicionário Aurélio) foi anunciado por Palocci ao lado das principais lideranças do partido e à frente do próprio candidato Lula, num encontro que mantiveram com empresários, executivos e sindicalistas.
O coordenador do programa de governo afirmou que o primeiro ano do governo seria “restrito demais”, em razão da necessidade de manter o “superávit fiscal” acertado com o FMI. Na mesma reunião, Felício disse que a CUT não pretendia pressionar por empregos no início do governo. Ele afirmou que a central queria, primeiro, a “humanização das relações de trabalho” e, segundo, a criação de um “espaço” para negociação entre a ‘’sociedade” e o poder público (Felício citou CUT, Força Sindical e MST). José Dirceu, então presidente do PT, anunciou uma agenda, chamada por ele de “assuntos importantes”, na qual estava um item polêmico: a “reforma” da Previdência Social.
Necessidade de medidas duras
O “ajuste fiscal brabo” anunciado por Palocci era resultado de conversas mantidas por ele com o então presidente do Banco Central (BC), Armínio Fraga, e com o próprio preidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC). O coordenador do programa de governo de Lula assumia funções cada vez mais relevantes, condição que o colocaria no centro da transição de governo. Ele assumiria o Ministério da Fazenda e logo após a posse do governo promoveu duas elevações da taxa de juros, causando reação da CUT. Palocci e Lula então reuniram-se com 11 dirigentes da central para apresentar a posição do governo de condicionar a redução da taxa de juros à aprovação das “reformas” previdenciária e tributária.
Palocci fez uma exposição aos representantes da CUT para explicar a necessidade de medidas duras, como o corte de R$ 14,1 bilhões do Orçamento e o segundo aumento consecutivo dos juros. “Ele (Palocci) disse que, para que haja uma diminuição da taxa de juros, primeiro são necessárias as reformas, especialmente a tributária e a previdenciária. Segundo, que o Brasil encontre um mercado internacional mais favorável para exportar”, disse Felício após o encontro. “Essas duas questões são fundamentais para a diminuição dos juros. Se o Brasil conseguir isso ao longo dos anos, estarão dadas as condições para a diminuição da taxa. Essas são palavras do ministro e a CUT concorda”, disse ele.
Projeto da Lei de Falências
Esse clima de paz logo mudaria. Já no início de 2003, a decisão do governo de cortar mais investimentos públicos para aumentar a meta de superávit primário — arrocho nos investimentos para pagar juros — de 3,75% para 4,25% do PIB foi duramente criticada por sindicalistas. “Nós preferimos que qualquer economia que o país venha a fazer seja usada no aumento da produção. É o que temos a dizer”, declarou Felício. Paulinho foi mais duro. “Um aperto dessa ordem é uma loucura. Nós, que reclamávamos tanto do governo anterior, já começamos a sentir saudades do Malan”, disse ele.
Outra medida que uniria a CUT e a Força Sindical nas críticas ao governo foi o envio de um projeto ao Congresso Nacional para alterar a Lei de Falências. “Encontraram mais uma forma de privilegiar o capital, de privilegiar a dívida com o mercado. É um tratamento perverso com o mundo do trabalho”, disse Felício. O que despertava a indiganção das centrais sindicais era o item do texto que previa a limitação da preferência para o pagamento de dívidas trabalhistas nos processos de falência. De acordo com a lei então em vigor, de 1945, os trabalhadores tinham prioridade, frente aos bancos, aos demais credores e ao fisco, no recebimento dos créditos.
Reunião com seis ministros
O presidente da CUT criticava as medidas adotadas por Palocci mas reconhecia o caráter democrático do governo. Após uma reunião de quase duas horas com uma força-tarefa de seis ministros — Palocci (Fazenda), Guido Mantega (Planejamento), José Dirceu (Casa Civil), Jaques Wagner (Trabalho), Ricardo Berzoini (Previdência) e Luiz Dulci (Secretaria Geral da Presidência) — Felício deu razão ao presidente Lula, que condenou o corporativismo de parte do sindicalismo. “O movimento sindical precisa ser mais cidadão”, disse ele. “Lula pôs seis ministros numa mesa, é outra coisa lidar com quem te trata com respeito”, comentou.
Ao apresentar os ministros presentes, Mantega disse que à sua direita, “mas só na localização geográfica”, estavam Jaques Wagner e José Dirceu. Ao passar aos ministros que estavam à sua esquerda, Palocci reagiu e disse que não estava apenas geograficamente nessa posição. “Isso foi nos velhos tempos”, retribuiu Mantega. “Simbolicamente, o governo atendeu à reivindicação de que houvesse uma negociação de alto nível. Este é o governo dos trabalhadores, o que por si só estabelece outro nível de diálogo”, resumiu o então ministro do Planejamento, dando à reunião o status de “histórica”.
Reunião de Felício com Palocci
O ministro da Fazenda já era o alvo principal do movimento sindical. “Já avisamos ao Palocci que vamos bater duro na política econômica do governo. Nosso lema é ‘Mais emprego, mais salário”’, disse Paulinho no evento do 1º de Maio de 2003. “Se for preciso, vamos fazer mais greves para que o trabalhador possa recuperar em seu bolso as perdas da inflação”, afirmou. Lula sugeriu publicamente um ato único das centrais para poder participar do evento, mas os sindicalistas negaram que ele tenha feito a proposta de forma oficial. Felício disse que o presidente da República seria bem recebido no ato da CUT. “O governo teve grandes conquistas. Conseguiu controlar a inflação, recuperar a credibilidade internacional do país e reduzir o valor do dólar. Mas o desemprego continua alto, em torno de 19%”, afirmou.
O presidente da CUT disse que numa reunião com o ministro da Fazenda perguntou a ele quando afinal a economia voltaria a crescer. “Palocci disse que isso ocorrerá no segundo semestre. É o nosso desejo”, afirmou. Caso isso não ocorresse, disse Felício, a CUT continuaria a criticar o ministro. “Tem muita gente na marginalidade e, sem crescimento econômico, continuaremos a ter patamares extremamente altos do desemprego”, afirmou. No entanto, Felício abrandou as críticas ao governo ao subir nos palcos de alguns dos nove eventos que a CUT preparou em São Paulo para celebrar o Dia Internacional dos Trabalhadores.
Divergências internas na CUT
Em Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, ele disse que “2003 tem sido um ano diferente dos anteriores, pois o governo trouxe a esperança”. “Com o Lula existe diálogo, há participação política da sociedade”, afirmou. “Mas com certeza em 2004 teremos um ano melhor”, disse. E destacou que a CUT não trabalharia para amenizar tensões entre trabalhadores, patrões e governo. “A outra central (Força Sindical) é que apoiou tudo o que o ex-presidente FHC propôs ao longo de oito anos”, disse. Felício afirmou ainda que a CUT trabalharia independente do governo.
Na CUT, as divergências internas haviam evoluido a ponto de dirigentes ligados às correntes “esquerdistas” cogitar a saída da central. Felício minimizou a crise. “Não vamos assumir uma posição de quem só quer bater ou concordar com o governo. Vamos ser duros com a reforma da Previdência. Não concordamos com a taxação dos inativos”, disse ele. Felício compareceu também em um evento dos “esquerdistas” que aconteceu na praça da Sé. “A CUT está unida. Vou estar em todos os atos onde a CUT estiver. Foi só pela imprensa que fiquei sabendo que este era um ato da esquerda. Eu sou de esquerda, logo tenho que estar aqui. Não sou radical. Sou, sim, radicalmente contra certos aspectos da reforma (da Previdência)”, disse Felício.
15 – A polêmica gestão de Marinho
A gestão de Luiz Marinho à frente da CUT foi uma das mais polêmicas da história da central. Ele assumiu o cargo com a incumbência de manter a entidade numa posição de combate ao projeto neoliberal, mas a postura conservadora de setores do governo confundia a central.
As primeiras ações do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva na área econômica causaram uma grande confusão no meio sindical. A CUT, aturdida pelas medidas “ortodoxas” anunciadas pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, passava ao largo da essência do problema. Para se ter uma idéia, enquanto a taxa de juros oficial — a Selic — disparava, a central promovia uma campanha nacional visando a redução das taxas de juros cobradas pelos bancos.
A CUT procurou representantes da Federação Brasileira dos Bancos (Febrabran) e do governo para discutir o assunto. “Se fala muito na Selic, mas os juros cobrados na economia ultrapassam os 100%. A taxa cobrada na rede bancária é uma covardia”, afirmou João Felício, presidente da central. “Os banqueiros já ganharam muito dinheiro nesse país. Está na hora de darem sua contribuição para fazer esse país crescer. Os juros cobrados no mercado são vergonhosos, pornográficos”, disse ele.
A polêmica troca de comando na central
A CUT também foi criticada pela sua postura diante da “reforma” da Previdência. “A CUT faz mais ou menos um tapinha nas costas e vende como se fosse um míssil. Está light demais. Não é a velha CUT que a gente conhece”, disse o presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis), Ezequiel Souza do Nascimento, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo no dia 4 de maio de 2003.
Questionado sobre a troca de presidente que ocorreria em junho daquele ano, Nascimento respondeu: “Vai piorar. Está trocando a direção justamente porque ainda tem crítica. O atual presidente é servidor. O outro (Luiz Marinho) não. E a CUT está criando fundos de pensão em vários sindicatos.” Felício reagiu com palavras duras. “É um pelego. Esse tipo de gente consegue ter espaço criticando os outros. Somos autônomos em relação ao governo e expomos nossas divergências”, disse. “Ele (Nascimento) tem setores de privilegiados em sua base e quer que defendamos essa gente”, afirmou.
Críticas do presidente da República
Até o presidente da República criticava a CUT. Em fevereiro de 2003, Lula reuniu-se com a direção executiva nacional da central e repreendeu os sindicalistas que exigiam aumento ou reposição salarial sem, segundo ele, se dar ao trabalho de “meter o dedo” durante a elaboração do Orçamento. Lula prometeu dar um aumento real ao salário mínimo mas avisou que não havia como “garantir” aumento para o funcionalismo público porque não existia a previsão de verbas.
O puxão de orelha de Lula se estendeu a todo o movimento sindical. “Defendo sobretudo um sindicato que se preocupa com as coisas que acontecem em Brasília. Por exemplo, quando está se discutindo política tributária no Congresso, a discussão deve interessar mais ao sindicato do que apenas uma reivindicação de 5% em sua categoria específica”, disse o presidente. “Quando se discute o Orçamento da União, é naquele instante que o movimento sindical, sobretudo trabalhadores e funcionalismo público, tem que estar metendo o dedo para aprovar a verba que depois eles irão reivindicar como aumento de salário. Se não estiver no Orçamento, não tem como garantir esse aumento”, afirmou.
O presidente disse que trabalhava pelo “sindicato-cidadão”, que seria menos “corporativista” e mais engajado na política social. “Tenho chamado a atenção para que o sindicato se transforme em instrumento político da sociedade, mais que um instrumento corporativo de uma categoria específica”, disse Lula, cobrando representação sindical para os que não têm trabalho, comida ou escola. Para ele, o combate à miséria era tarefa sindical.
Contradição com as expectativas de mudança
Felício disse que explicou a Lula que havia uma combinação perigosa diante do funcionalismo: por um lado, eles poderiam perder benefícios na “reforma” da Previdência e, por outro, não obter os reajustes reivindicados. A CUT exigia um reajuste de 46,95% e a não-votação do PL-9 (projeto de lei de número 9), que alterava o regime previdenciário dos futuros funcionários públicos. A reunião serviu também para Marinho tomar posse como presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Em seu discurso, o presidente elogiou a trajetória Marinho — um gesto interpretado como uma predileção de Lula pelo então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista na presidência da CUT.
Logo em seguida, um documento divulgado como tese para o 8° Congresso da CUT, assinado por Felício e mais 11 membros da direção executiva da central, dizia que o governo ainda não tinha um “projeto claro” para estimular o debate sobre as “reformas” assumidas como prioritárias. A tese ressaltou que a economia do país ia de mal a pior. “Se analisarmos os indicadores da economia, a avaliação só pode ser pessimista”, afirmava. O documento dizia que a elevação dos juros e o corte de gastos sociais “encontram-se claramente em contradição com as expectativas de mudança”.
Discussões tratadas como segredo de Estado
A “reforma” da Previdência Social e a posição da CUT frente ao governo Lula seriam os principais temas do 8º Congresso Nacional, que começou no dia 3 de junho de 2003. A Articulação Sindical já havia definido o nome de Marinho como candidato a presidente da central por meio de um acordo interno. Ele disputou a indicação com Felício — definido como candidato a secretario-geral — e João Vaccari Neto, então tesoureiro — que recebeu a indicação de titular da secretaria de relações internacionais.
As discussões em torno de quem iria compor a chapa da tendência majoritária foram tratadas como segredo de Estado — fato que despertou suspeitas em outras correntes da central. “A CUT tem de ter independência do governo para atender as reivindicações dos trabalhadores”, disse Wagner Gomes, membro da coordenação nacional da Corrente Sindical Classista (CSC), em resposta aos rumores de que a direção do PT e o presidente Lula teriam influenciado na escolha de Marinho. “Nem o PT nem o governo mandam na CUT”, reagiu Felício, em uma entrevista coletiva.
Espaço para negociar com o governo
Felício disse que ele, Marinho e Vaccari Neto estavam “extremamente unidos” e que o desafio da Articulação Sindical era buscar aliança com outras tendências. “Está todo mundo em paz. A chapa foi constituída após analisarmos as necessidades da central, a situação econômica e política do país e a relação que vamos ter com a sociedade no debate das reformas”, disse Felício. “Estamos trabalhando para ter uma chapa mais representativa possível e escolher o melhor time para conduzir a central”, afirmou Marinho. Vaccari Neto destacou que o período era de mudanças e que a renovação era necessária na central.
Na abertura do 8º Congresso, Marinho disse que se fosse eleito cobraria do governo a promessa de crescimento econômico com a redução das taxas de juros. “A central manterá a sua independência e a sua autonomia seja qual for o governo. Não tem confusão entre o papel da CUT e o do governo. Vamos apoiar os acertos e criticar os erros”, afirmou. Para Marinho, se a CUT trabalhasse em sintonia direta com o governo corria o risco de perder sua legitimidade como representante dos trabalhadores. “Isso nós não vamos permitir que ocorra”, disse.
Marinho disse também que os trabalhadores teriam pela primeira vez espaço para negociar com o governo. “Com o diálogo fica mais fácil encontrar alternativas para resolver os problemas da sociedade e fazer de fato as reformas. Essa é a grande diferença desse governo para os outros”, afirmou.
O papel da CUT frente ao governo Lula
Na sua opinião, o movimento sindical precisava se “modernizar” e passar por uma “reforma profunda”, que dependeria mais de um entendimento mínimo entre todas as centrais do que da própria atuação do governo. “É preciso enfrentar a questão do monopólio sindical (a unicidade sindical), o problema da sustentação financeira dos sindicatos e o poder normativo da Justiça do Trabalho” disse ele. Marinho também afirmou que existia no país um excesso de centrais e de sindicatos. “Com autonomia e liberdade sindical, pode haver, em um primeiro momento, até um aumento de sindicatos. Mas a tendência é diminuir a quantidade a médio prazo e aproximar a visão entre as centrais”, afirmou.
Marinho elegeu-se com 1.950 votos (74,6% do total). Ele afirmou que o primeiro desafio a ser enfrentado seria a “mobilização dos trabalhadores para obrigar o governo a abrir negociação para mudar pontos da reforma da Previdência que ferem os interesses dos assalariados”.”A central, em alguns momentos, apoiará de forma tranqüila e transparente ações do governo, quando corresponderem aos interesses dos trabalhadores”, disse o novo presidente da CUT.
O papel da CUT frente ao governo Lula era uma das questões mais delicadas do Congresso. A união de três tendências sindicais — Articulação Sindical, CSC e CUT Socialista Democrática (CSD) — foi decisiva para derrubar as propostas “esquerdistas”. “A CUT não vai mudar a sua história. Quem mudou foi o governo no Brasil. Mas a central vai continuar a mesma, com autonomia. Ninguém manda na CUT, nem o PT, nem o PCdoB, nem o PSTU”, disse Felício.
O boné de Marinho recusado por Lula
O Congresso decidiu que a CUT manteria sua posição contrária à participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) — em 2002 a central participou de um plebiscito sobre o tema que reuniu 10 milhões de assinaturas, das quais 98,33% votaram contra a Alca —, mas retirou de sua pauta a realização de um plebiscito nacional sobre o assunto. “Nossa posição é não fazer um plebiscito nesse momento enquanto não forem estabelecidas as regras de negociação”, afirmou Felício.
Logo depois de eleito, Marinho procurou Lula para pedir mudanças na proposta de “reforma” da Previdência Social. A resposta de Lula foi negativa. O presidente da CUT disse que a entidade estava “desprestigiada” e deixou o Palácio do Planalto levando de volta o boné que ofereceu a Lula e que acabou não sendo usado. No início da reunião, quando a sala foi aberta para fotógrafos e cinegrafistas, Marinho tirou um boné da CUT da pasta. Disse que o daria de presente para Lula, mas que o levaria de volta se seus pedidos não fossem atendidos. “Então vamos ter de esperar o fim da reunião”, disse Lula. Ao final, quando Marinho pegou o boné, Lula afirmou: “Você não vai deixar o boné?” Marinho disse ter respondido: “Não, deixa para a próxima.”
A proposta de “pacto social” de Marinho
Marinho logo voltaria a se envolver em outra polêmica — o anúncio de um “contrato social”, apoiado publicamente por Lula. Palocci, a essa altura já completamente blindado pelo mercado financeiro, reagiu. Segundo ele, o “pacto social” poderia provocar uma grande pressão para aumento de preços e, com isso, elevar a inflação. O “pacto social” de Marinho previa que durante três anos o setor produtivo seria submetido a uma espécie de controle de preços, aliado à injeção de investimentos. Um dos objetivos, segundo o presidente da CUT, seria impedir a alta dos juros.
Ao governo caberia o papel de reduzir a carga tributária, enquanto o setor financeiro se responsabilizaria por baixar o custo dos empréstimos bancários. Marinho pediu empenho do governo para viabilizar o projeto. Segundo ele, sem a sinalização federal de apoio, o pacto poderia não sair do campo das idéias. “Vamos ou não vamos (para o acordo)? O governo tem de apostar nesse acordo. Porque, se não apostar, não tem negociação possível”, disse Marinho. Segundo ele, o acordo contava com o apoio do presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf. Marinho anunciou também que apresentaria o plano para outros grupos empresariais.
Estreitamento da relação da CUT com a Fiesp
Segundo ele, os rumores de que a resistência de Palocci ao fechamento do “pacto social” teria rachado a cúpula do governo não enfraquecia a proposta. “Quando pensamos em governo, é no presidente Lula que nos referenciamos e não nesse ou naquele ministro. É do presidente que vamos cobrar uma posição sobre uma negociação nacional”, afirmou. Felício, na condição de secretário-geral da CUT, disse que se acordo saísse a central não abriria mão das reposições salariais. “Não vamos reivindicar reajustes abaixo da inflação. Até porque quem faz acordos são os sindicatos e não a CUT”, afirmou.
O estreitamento da relação da CUT com a Fiesp também resultou numa tentativa de acordo entre as duas entidades sobre a “reforma” sindical. Quando ainda era presidente da central, Felício disse numa atividade da federação patronal paulista que “o movimento sindical atual tem que ser implodido”. “Não tem importância se no começo virar uma certa anarquia, depois tudo entra no eixo”, afirmou ele. O tema seria debatido no Fórum Nacional do Trabalho (FNT), um organismo criado pelo governo que expôs a essência da contradição na qual a administração Lula estava metida.
16 – O FNT e o liberalismo sindical
O embrião de um fórum para a discussão tripartite — trabalhadores, empresários e governo — sobre as “reformas” sindical e trabalhista surgiu logo depois de o então prefeito de Ribeirão Preto (SP), Antônio Palocci Filho, assumir a coordenação do programa de governo de Luis Inácio Lula da Silva. O fórum suscitou controvérsias já antes de sua instalação. O governo, com apoio da Articulação Sindical, fez gestão a fim de que as propostas de “reformas” contivessem questões como o fim da unicidade, da contribuição obrigatória e do poder normativo da Justiça do Trabalho. Era o liberalismo sindical.
A proposta da formação do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), agrupando trabalhadores, empresários e representantes do governo para discutir “reformas” na legislação trabalhista e na estrutura sindical, surgiu na equipe de transição de governo, quando Luiz Inácio Lula da Silva já estava eleito para a Presidência da República. O presidente queria indicar para o Ministério do Trabalho um sindicalista da CUT — segundo ele por ter perfil de negociador, alguém com trânsito entre empresários e centrais sindicais.
Comentou-se o nome de Luiz Marinho, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista; de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ex-presidente da CUT; e de Heiguiberto Navarro, o Guiba, então coordenador do comitê sindical da candidatura Lula e presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM) da CUT. O governo Lula pretendia acabar com a unicidade, com o imposto sindical e reduzir verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para programas de qualificação profissional.
O fim do imposto sindical
Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, presidente da Força Sindical, disse que estava preparado para discutir a “reforma” sindical. “Vai acabar a unicidade sindical, mas as centrais serão reconhecidas legalmente? Tudo isso precisa ser negociado”, afirmou. Paulinho disse que não via problema se o governo decidisse reduzir ou acabar com o dinheiro do FAT. “Agora, isso vai punir os trabalhadores. Nós vamos cobrar para que o trabalhador seja qualificado de graça. Se as empresas podem comprar máquina com dinheiro público, por que o trabalhador tem de pagar para ser qualificado?”, disse.
Na avaliação do então presidente da CUT, João Felício, o fim do imposto sindical não afetaria a maior parte dos sindicatos cutistas. “Nossa base tem sindicatos com percentuais altos de sindicalização, de 32% a 44%. Boa parte das entidades já devolve as verbas arrecadadas com o imposto sindical”, afirmou. Mas, segundo Felício, o governo deveria estudar uma “fase de transição” para que os sindicatos se mantivessem com outras fontes de renda. “A idéia que será objeto de discussão e de negociação no FNT é dar um prazo para os sindicatos se adaptarem”, disse.
“Responsabilidade” nas “reformas”
No dia 26 de novembro de 2002, Lula reuniu-se com cerca de 600 sindicalistas para agradecer o apoio do movimento sindical à sua candidatura. Ele pediu “por favor” para que os dirigentes sindicais discutissem primeiro as propostas que seriam consenso na “reforma” da estrutura sindical brasileira e que deixassem para depois o debate sobre as questões divergentes.
Lula pediu às centrais sindicais que tivessem “responsabilidade” nas “reformas” tributária, previdenciária, trabalhista e sindical que o governo pretendia encaminhar. “O que vocês precisam compreender é que desta vez vai acabar a moleza. Esse negócio de ficar só em cima de caminhão de som na época da data base da categoria vai acabar. Vocês vão ser chamados para participar das reformas políticas”, disse.
Tom de provocação de Lula
O presidente eleito também comentou as divergências entre as centrais sobre o fim da unicidade e da contribuição sindical — segundo ele “algo menor”, para ser discutido. O mais importante, disse Lula, seria os sindicalistas se envolverem nos projetos de combate à fome, de aumento do emprego e das “reformas” previdenciária e tributária. “Se o trem descarrilou, é preciso colocá-lo primeiro no trilho para, depois, disputar o lugar que cada um vai sentar. Se não for assim, não vai ter lugar para todo mundo”, afirmou.
O tom do discurso foi de provocação. “O país tem de passar por um processo de reconstrução. E vocês nunca foram tão provocados a ajudar a encontrar soluções para o país. O desafio que está colocado para mim não é só para mim, é para vocês. Não pensem que vou deixar vocês de fora, falando o que vocês quiserem. Ou retomamos o crescimento econômico, ou vamos ficar brigando e perdendo tempo. Há muitas propostas comuns entre as centrais para serem colocadas em prática no Brasil”, disse.
Lula afirmou que as “reformas” não seriam feitas a toque de caixa. “Elas serão feitas de forma tranquila e sadia. Há sempre um jeito de fazer as coisas sem uma agressão maior a quem quer que seja. Na política, aprendi que não sai nada na marra. Ou você cria um processo de convencimento ou não faz nada”, discursou.
“Tudo” poderia ser discutido
Jaques Wagner, ex-sindicalista e deputado federal (PT-BA), foi indicado para o Ministério do Trabalho. Em suas primeiras declarações, ele defendeu que a “reforma” trabalhista deveria envolver a negociação de alguns direitos, chamados por ele de “penduricalhos”. Na lista, segundo Wagner, entrariam até questões como férias e o 13º salário. “Existe um pacote de direitos que não necessariamente deva ser diminuído, mas pode ser rearranjado”, declarou o então futuro ministro.
Na sua posse, Wagner afirmou que proporia, na primeira reunião ministerial, que Lula retirasse imediatamente do Senado o projeto de lei do governo FHC que “flexibilizava” os direitos trabalhistas. “O objetivo do governo é discutir um novo contrato social para o país, que significa uma nova relação capital-trabalho. O objetivo maior é a geração de emprego e renda, com um trabalho decente. Tem que ser um pacto entre empresários e trabalhadores, mediado pelo governo federal”, disse.
Questionado se essas mudanças não poderiam significar perdas de direitos dos trabalhadores, respondeu: “Não há hipótese, no governo do PT, de você sangrar mais quem já está tão sacrificado.” Mas Wagner enfatizou que “tudo” poderia ser discutido. Segundo ele, a situação do mercado de trabalho não era satisfatória nem para os trabalhadores nem para os patrões.
Em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 23 de fevereiro de 2003, Wagner disse que para ter sucesso as “reformas” sindical e trabalhista não poderiam se limitar à discussão pontual de questões “laborais”. “Precisará enfrentar temas cruciais, como a representação e a representatividade dos sindicatos, a democratização das relações de trabalho por meio de novos instrumentos de negociação coletiva e a construção de um ambiente mais propício à solução dos conflitos”, afirmou.
A emenda liberal de Vicentinho
O ministro Trabalho defendeu o fim do imposto sindical e da unicidade — segundo ele frutos de um “modelo de organização sindical sempre criticado por sua origem autoritária e corporativista”. E anunciou que o Ministério do Trabalho estava finalizando um anteprojeto de lei que eliminaria pelo menos 100 artigos — de um total de 922 — da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Seria a primeira “faxina” na legislação trabalhista.
As centrais sindicais reagiram com indignação. Felício disse que o governo deveria fazer um levantamento para identificar as “células vivas” e as “células mortas” da CLT. “Defendemos que toda discussão sobre a CLT deve ser feita no FNT. Antes de enviar o projeto para o Congresso Nacional, o Ministério do Trabalho tem de discutir as mudanças na lei com as centrais”, afirmou. Paulinho disse que a decisão de “limpar” a CLT via anteprojeto descumpria a determinação do presidente Lula de promover o debate na “sociedade”. “Chegar com o prato pronto é um mau exemplo. A regra básica é discutir com os trabalhadores qualquer alteração”, disse ele.
Outra decisão que atropelava o debate que ocorreria no FNT partiu do deputado federal petista e ex-presidente da CUT, Vicentinho, que no dia 16 de abril de 2003 apresentou uma proposta liberal de emenda constitucional instituindo a “liberdade sindical” e acabando, de forma gradativa, com o imposto sindical. A proposta substituía a unicidade sindical pela “liberdade de organização dos trabalhadores a partir do local de trabalho”.
Marinho na coordenação do FNT
Poucos dias antes da instalação do FNT, o governo divulgou a proposta de “reforma” trabalhista elaborada pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) — órgão consultivo do presidente Lula. O relatório afirmava que a Constituição e a legislação trabalhista deveriam fixar os “direitos mínimos do trabalhador”. “Esse é um trabalho de diretrizes. As idéias mestras vão servir de contribuição no grande debate que ocorrerá com a sociedade no FNT”, afirmou o então ministro do Desenvolvimento Econômico e Social, Tarso Genro.
O FNT foi lançado pelo governo no dia 21 de maio de 2003, composto por 21 representantes de trabalhadores, 21 de grandes empresários, 21 do governo e 9 representantes de micro e pequenas empresas. Para cada uma das bancadas, foi escolhido um coordenador. Na cerimônia, foi anunciado que Marinho, já presidente da CUT, seria o coordenador da bancada dos trabalhadores.
A reação foi imediata. “Começou mal. Ninguém perguntou à Força Sindical quem deveria ser o coordenador da bancada trabalhista”, disse Paulinho. “Não vamos aceitar intervenção do governo. Não ficou acertado entre as centrais sindicais que o Marinho seria o representante”, afirmou. O presidente da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), Antônio Carlos dos Reis, o Salim, também criticou a indicação. A Força Sindical e a CGT afirmaram que queriam uma explicação do Ministério do Trabalho sobre o caso.
17 – O jogo de Lula
Na instalação do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), o presidente da República, Luis Inácio da Silva, pediu empenho para que as três partes envolvidas nos debates — trabalhadores, empresários e governo — se entendessem da melhor forma possível. Mas, como ele mesmo disse, era um jogo. E logo a disputa começaria a pegar fogo.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou em seu discurso de lançamento do Fórum Nacional do Trabalho (FNT) uma metáfora precisa para o debate sobre as “reformas” sindical e trabalhista. “O desafio está colocado, a bola está com vocês. Bom jogo e boa luta”, disse ele. Com dois times francamente opostos em campo — o do capital e o do trabalho —, o jogo não poderia terminar empatado. Mas, trilado o apito, a sorte estava lançada. Lula disse também que o tempo do sindicalismo voltado só para a contestação estava acabado. E, indiretamente, pregou a “flexibilização” da legislação trabalhista.
O presidente fez um apelo aos sindicalistas: que se preocupassem não só com os trabalhadores sindicalizados, mas também com os desempregados. Disse ainda que, se a legislação trabalhista não fosse adequada ao momento que o país vivia, a cada dia os sindicatos estariam representando menos gente. “Quando nós falamos em direitos, nós falamos para quem? Para nós, que temos direitos? E os milhões que não conseguem um emprego? E os milhões que estão na economia informal?”, indagou. O presidente afirmou que muitas vezes os sindicalistas vão para as portas das fábricas convocar assembléias e encontram mais ex-empregados vendendo coisas do que contratados.
Lula lembrou que se tornara conhecido justamente pelo “sindicalismo de contestação”, mas, segundo ele, esse tempo já havia passado. Ao falar do seu tempo de sindicalista, o presidente disse que lutava por direitos iguais para trabalhadores de uma empresa de fundo de quintal e uma indústria automobilística com 40 mil trabalhadores. “Há tratamentos diferenciados entre empresas em função do seu tamanho”, afirmou.
O presidente também disse que “o caminho do meio sempre é o caminho que possibilita construirmos o consenso, construirmos uma maioria e fazermos as mudanças, sem a pressa daqueles que achavam, algum dia, que, para fazer um contrato coletivo de trabalho, era necessário rasgar a CLT, ou aqueles que achavam que era possível fazer um contrato de trabalho mantendo a CLT em toda a sua plenitude”.
Segundo Lula, sete dos seus ministros integrariam a discussão sobre um novo padrão para as relações de trabalho. “Nem tudo se resume a 1%, a 2%, a 10% de aumento de salário. O que nós precisamos é criar um outro padrão de relacionamento entre o Estado e a sociedade. Entre o Estado e os servidores públicos. Eu estou convencido de que o movimento sindical brasileiro tem de dar um salto de qualidade e extrapolar os limites do corporativismo”, afirmou.
Críticas à Justiça do Trabalho
Em tom irônico, o presidente disse que as “reformas mexem muito com a nossa comodidade”. Segundo Lula, “isso não vale apenas para a questão sindical, vale para a questão da Previdência — vale até para uma casa que a gente vai reformar”. “Não é todo mundo que tem coragem no final do ano de comprar uma lata de tinta e pintar sua casa. Fica como está. Para que trabalho? Mas todos nós sabemos que nós temos de mudar”, disse.
O presidente também criticou a Justiça do Trabalho. “A Justiça do Trabalho, com seu aparato, talvez não queira ser incomodada com a facilidade da implantação do contrato coletivo de trabalho. Eu acho que pode ter sido verdade em algum momento da nossa história, mas hoje não é mais”, disse.
Reação dos magistrados
A afirmação de Lula provocou imediata reação. “Eu fiquei surpreso com as referências feitas pelo presidente da República em relação a essa questão, quando ele disse que havia segmentos sociais que seriam contrários à adoção do contrato coletivo de trabalho e talvez a própria Justiça do Trabalho. Se ele disse a palavra ‘talvez’, é porque não tinha certeza. E não poderia mesmo ter certeza, uma vez que a Justiça do Trabalho nunca se manifestou contrariamente ao contrato coletivo de trabalho. Muito pelo contrário, todas as declarações da Justiça do Trabalho sempre foram favoráveis a essa modalidade de contrato, como hoje ainda são”, afirmou o ministro Vantuil Abdala, então presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Grijalbo Coutinho, também reagiu. “Ele está mal informado. A Justiça do Trabalho nunca teve posição fechada contra o contrato coletivo”, disse. Sobre a crítica que Lula fez aos “comodistas”, Coutinho afirmou que o fato de os magistrados se oporem a alguns itens da “reforma” da Previdência não queria dizer que eles eram contra a reforma como um todo ou que não queiram melhorar o país. “Foi mais uma infelicidade dele. O que nós não queremos é privatizar a Previdência. Nós queremos pintar a casa para o povo brasileiro. Mas parece que o presidente quer, além de pintar a casa, deixá-la arrumada para o grande capital usá-la como quiser”, afirmou.
Regras para as centrais
Dias depois, o ministro do Trabalho, Jaques Wagner, disse que na “reforma” trabalhista a CLT seria discutida “capítulo por capítulo”. “A CLT tem inúmeros capítulos. A nossa idéia é que se possa discutir esses capítulos e, quando houver consenso, remete-se ao presidente da República e ao Congresso logo depois”, afirmou o ministro.
O primeiro assunto discutido no FNT foi a definição de regras para as centrais sindicais. O presidente da CUT, Luiz Marinho, disse que não deveria haver critérios para medir a representatividade. “Defendo a liberdade plena. A livre associação do trabalhador. Mas a maioria dos sindicalistas tem horror a essa idéia. O problema é saber qual o tamanho da reforma sindical que se quer fazer”, disse ele.
Subterrâneo e baixarias
Logo no início dos trabalhos, o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, disse que suas relações com o PT estavam suspensas até que membros do partido — entre eles Osvaldo Bargas, secretário-executivo do Ministério do Trabalho e coordenador-geral do FNT — esclarecessem uma futrica da revista Veja, que atribuía aos petistas a divulgação de acusações contra ele durante a campanha das eleições presidenciais de 2002. Paulinho foi candidato a vice-presidente na chapa de Ciro Gomes (PPS). “O Osvaldo Bargas é hoje o coordenador do FNT. Como é que vou participar das reuniões agora?”, perguntou o presidente da Força Sindical.
Era mais uma evidente canalhice da revista Veja. Segundo Marinho, a futrica seria uma armação de ”gente interessada em criar intrigas”. O presidente da CUT telefonou para Paulinho, que não o atendeu. Marinho disse que a CUT não tinha responsabilidade sobre esse caso e que a “notícia” tinha interesse em acabar com a união das centrais. A CUT divulgou uma nota na qual classificou de “emocional e precipitada” a decisão da Força Sindical de romper com a central. João Felício, o então secretário-geral da central, disse que a “acusação é uma agressão à CUT”. “Há 26 anos que eu milito no meio sindical, e isso foi a coisa mais esquisita que já vi”, disse ele.
Ciro Gomes afirmou que a armação era para livrar o candidato do PSDB a presidente da República em 2002, José Serra, da responsabilidade pelo que ele classificou de “baixarias”. “Eu quero que se faça uma reportagem sobre o subterrâneo e as baixarias de todas as campanhas. Aí a gente vai ver se havia originalmente um envolvimento violento da parte do Serra com escuta telefônica, com firma de espionagem telefônica paga pelo Ministério da Saúde”, declarou Ciro Gomes. Indagado sobre a decisão de Paulinho de suspender suas relações com o governo, Ciro Gomes disse: “É de uma inocência grande. O Paulinho já é adulto. Ele sabe dos elementos fartos que mostraram aquela coisa toda. Ele sabe qual é a origem. Será que esquecemos tudo isso? É amnésia, é?”
O começo das polêmicas
E assim começava a discussão sobre as “reformas” sindical e trabalhista. O então presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP), afirmou que o assunto — que, de acordo com os planos do governo, deveria chegar ao Congresso até o final de 2003 — seria adiado para 2005 em virtude de uma nova “análise política” feita pelos governistas acerca dos trabalhos no Congresso. “Vamos adiar para 2005 a reforma trabalhista e sindical porque a demanda é muito grande. São muitos temas, é muita reforma junta”, afirmou João Paulo.
A decisão contrastava com seguidos discursos de Lula, que colocava a questão como “próximo passo” legislativo. E foi criticada pelo presidente nacional do PT, José Genoino, e pelo ministro do Trabalho, Jaques Wagner. Eles disseram que caberia ao FNT estabelecer o tempo certo para a tramitação das “reformas”. A intenção até então oficial do governo era concluir as “reformas” tributária e da Previdência até o final de 2003 e, em 2004, tratar das “reformas” trabalhista e do Judiciário. “É (o adiamento) uma opinião pessoal do João Paulo. O tempo da reforma vai depender do avanço do FNT”, afirmou Genoino. Segundo ele, as questões sindicais, trabalhistas e relativas à Justiça do Trabalho e até à reforma política poderiam, “tranquilamente”, tramitar conjuntamente no Congresso.
Um “bom entendimento”
Wagner afirmou que respeitava a opinião de João Paulo, mas que estimularia “um bom entendimento” no FNT — o que facilitaria a tramitação das “reformas” na Câmara dos Deputados e no Senado. “Recebi uma missão do presidente, que é fazer o FNT andar o mais rápido possível. Na questão sindical, vamos concluir a proposta até o final deste mês. Ela vai à Presidência, que deverá remetê-la ao Congresso”, disse o ministro. “Mandar, pode mandar, mas a reforma trabalhista só sai em 2005”, respondeu categoricamente o presidente da Câmara dos Deputados ao ser informado das declarações de Wagner.
A declaração de João Paulo também desagradou às duas principais centrais sindicais — CUT e Força Sindical. “Vejo a declaração com muita reserva porque o FNT pretende encerrar os trabalhos no final do ano. O cronograma deve estar ligado com os trabalhos do Fórum. Mas é um absurdo deixar para 2005. Na questão trabalhista, não vejo tantos problemas em adiar, mas na sindical, sim”, declarou Marinho. Era só o começo das polêmicas.
18 – Central apóia entulho da “era FHC”
As polêmicas no Fórum Nacional do Trabalho (FNT) pareciam intermináveis. No fundo, elas refletiam as contradições irreconciliáveis dos principais temas que estavam em discussão. A CUT apoiou iniciativas do governo que causariam grandes confusões no meio sindical. O resultado foi um tremendo fiasco da proposta de “reforma” sindical enviada pelo governo Lula ao Congresso Nacional — que ressucitava um dos entulhos da “era FHC”.
A pressa do governo e das duas principais centrais sindicais — CUT e Força Sindical — em aprovar as “reformas” sindical e trabalhista contrastava com a serenidade do presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT-SP). Segundo ele, era necessário “dar tranquilidade” aos trabalhadores em um momento de “crise econômica aguda”. João Paulo disse que era preciso “prudência” e “cuidado” para não comprometer a legislação trabalhista, que demandaria muita discussão e estudo.
As reservas do presidente da Câmara dos Deputados eram bem fundamentadas. “A minha opinião é que a gente não deveria fazer as ‘reformas’ em 2004 e sim deixar para 2005, inclusive dando tranqüilidade aos trabalhadores que estão amparados pela legislação atual em um momento de crise econômica aguda”, afirmou ele. “É uma coisa prudente, a gente tem que tomar cuidado para não comprometer”, disse. “A reforma trabalhista tratará de uma lei de 60 anos e vai exigir um aprofundamento muito grande, estudo de legislações comparadas, não é uma coisa simples, que você faz rapidamente”, acrescentou.
Cálculo de Bargas na posse de Berzoini
O ministro do Trabalho, Jaques Wagner, disse que não entraria na “briga”. “Estou fazendo o Fórum andar. A agenda do Congresso não sou eu quem faz. Não vou entrar nessa briga, mas tudo passará pelo Congresso”, disse ele. E acrescentou que a decisão final do governo seria dada pelo presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva.
No início de 2004, Wagner seria substituído no cargo por Ricardo Berzoini — que iniciara o governo como ministro da Previdência Social. Assim que assumiu, o novo ministro disse que pretendia acelerar o processo de discussão das “reformas” sindical e trabalhista. Berzoini prometeu enviar ao Congresso Nacional a proposta de “reforma” sindical até o final de março de 2004. A trabalhista, somente em 2005.
Na posse de Berzoini, o secretário de Relações do Trabalho e coordenador do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), Osvaldo Bargas, calculou que até o dia 17 de fevereiro de 2004 um relatório sobre o assunto seria entregue ao presidente Lula. Segundo Bargas, entre os principais pontos em que já existia consenso na “reforma” sindical estariam: o fim do imposto sindical, que daria lugar a uma contribuição negocial; e a “flexibilização” da unicidade sindical, obrigando todos os sindicatos a comprovarem uma determinada quantidade de sócios para manterem o direito à representação de uma categoria.
Revolução no movimento sindical
No dia 29 de janeiro de 2004, o FNT anunciou a primeira proposta que seria encaminhada ao presidente Lula. O dissídio coletivo e a data base para negociação seriam extintos. As regras do direito de greve também seriam alteradas. “Estamos adotando o modelo da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, explicou Bargas. Com as mudanças, acabaria a possibilidade de julgamento de greves pela Justiça do Trabalho. “Ninguém poderá dizer mais que uma greve é abusiva”, afirmou ele.
O presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, que havia assumido a coordenação da bancada dos trabalhadores no FNT, disse que “os mecanismos de negociação passariam a ser fortíssimos — será quase obrigatório haver negociação”. O segundo relatório ficou pronto no dia 16 de março de 2004. Segundo o texto, o imposto sindical acabaria gradualmente. As centrais sindicais seriam legalizadas e novas regras para a unicidade sindical seriam instituídas.
Para a CUT, o trabalhador ganharia com a nova estrutura sindical. “Quem vai ganhar com a reforma sindical é o trabalhador, pois os sindicatos, as federações, as confederações e as centrais sindicais serão mais representativas”, afirmou João Felício, secretário-geral da central. Para ele, se o que fora acertado no FNT fosse aprovado pelo Congresso Nacional, seria “o início de uma revolução no movimento sindical”. Felício disse que o fato de a central ter mais poder de negociação não significava que ela podia ignorar a base de trabalhadores. “Se a central quiser negociar em nome da base, terá de ouvi-la”, explicou.
Nata das centrais contra declaração de Lula
No início de fevereiro de 2004, Lula disse num jantar com jornalistas da mídia que o único ponto que não seria negociado na “reforma” trabalhista seria o direito a férias. O restante, inclusive a multa de 40% do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), poderia ser revisto. “As declarações foram graves”, disse Paulinho. “Muitas pessoas não diferenciam a reforma sindical da trabalhista e podem achar que estamos negociando direitos aqui”, acrescentou.
A CUT, a CGT e a Força Sindical protocolaram no Palácio do Planalto uma nota conjunta em que manifestaram “estranheza e preocupação” com relação às declarações de Lula. Bargas telefonou para o presidente e pediu a ele que “tranqüilizasse” os líderes sindicais. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) também divulgou nota alertando que a multa do FGTS não poderia ser extinta enquanto não fosse regulamentado o dispositivo constitucional que previa uma indenização para compensar demissão sem justa causa.
A CUT manifesta-se contra a Portaria nº 160
De polêmica em polêmica, o FNT caminhava para uma crise cada vez mais profunda. Em outubro de 2004, a Força Sindical, a CGT e a SDS anunciaram em nota oficial que suspenderiam a participação no Fórum. A decisão foi tomada em reação à portaria nº 160, editada pelo Ministério do Trabalho em abril, que impedia os sindicatos de cobrar taxas confederativa e assistencial de não-sindicalizados.
A portaria nº 160 foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No lugar, o governo editou a portaria nº 180 — resultado de um acordo do Ministério do Trabalho com as centrais pelo qual até maio de 2005 os sindicatos não fariam cobranças “abusivas” nessas taxas. Mas a Justiça Federal, a pedido do Ministério Público Federal, voltou a impedir a cobrança das taxas. “O governo quer enfraquecer o movimento sindical para depois fazer a reforma trabalhista sem resistência dos sindicatos”, disse Paulinho.
De imediato, a CUT se posicionou contra a Portaria n° 160. “Entendemos que ao invés de tratar apenas da fiscalização de eventuais abusos cometidos por alguns sindicatos, o Ministério do Trabalho acabou por estabelecer uma confusão entre contribuição confederativa e contribuição assistencial ou negocial, partindo de precedentes e enunciados que ainda estão sendo discutidos judicialmente”, disse em nota oficial Artur Henrique da Silva Santos, então secretário-geral da central. O governo recuou e as três centrais dissidentes voltaram a participar do FNT.
Plenária da CUT aprova “plataforma democrática”
No dia 1° de fevereiro de 2005, Berzoini disse que a proposta de “reforma” sindical seria enviada pelo governo ao Congresso Nacional no dia 2 de março na forma de Proposta de Emenda Constitucional, a PEC-369 — em conjunto com um projeto de lei. “O Fórum aprovou conceitos gerais. Houve muita polêmica na redação da emenda constitucional e do projeto de lei”, afirmou o ministro. “Houve consenso na maioria dos pontos discutidos. A organização no local de trabalho foi o tema de maior resistência por parte dos empresários”, disse Bargas. “Seria um desastre para o presidente Lula terminar o mandato sem fazer a reforma sindical”, afirmou Marinho.
A proposta de “reforma” sindical de fato foi encaminhada ao Congresso Nacional no começo de março. Mas, na prática, ela estava inviabilizada. O sistema confederativo, arbitrariamente excluído do FNT, havia organizado o Fórum Sindical dos Trabalhadores (FST) — que teve importante papel na crítica à proposta de “reforma”. Defendendo a manutenção da unicidade, da contribuição sindical e do poder normativo da Justiça do Trabalho, o FST demonstrou capacidade de mobilização e forte influência sobre as bancadas parlamentares.
Na CUT, a proposta foi aprovada por apenas um voto de diferença — 13 a 12. Essa pressão se refletiu na surpreendente aprovação da “plataforma democrática” na 11ª plenária da CUT, no dia 12 de maio de 2004, pela qual a Articulação Sindical foi obrigada a aceitar a unicidade e outras significativas mudanças no conteúdo da PEC-369. A “plataforma democrática” era uma orientação que a central deveria seguir nos debates que ocorreriam no Congresso Nacional.
Congresso recebe proposta com reservas
A proposta foi idealizada pela Corrente Sindical Classista (CSC) e obteve o apoio da Articulação Sindical e da CUT Socialista e Democrática (CSD). O vice-presidente da CUT e membro da coordenação nacional da CSC, Wagner Gomes, destacou que a aprovação da “plataforma democrática” correspondia aos “objetivos de quem luta por uma reforma democrática voltada para o fortalecimento do movimento sindical”. Fora do debate, os setores “esquerdistas” da CUT aproveitaram a confusão para deixar a central e criar a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas). O patronato também aproveitou a situação para exigir a imediata negociação da “reforma” trabalhista.
No Congresso Nacional, a proposta foi recebida com reservas. A eclosão da crise política enterrou de vez a “reforma” sindical. “A discussão da reforma não tem prazo para ser retomada, está parada”, disse o deputado federal Vicente Paula da Silva, o Vicentinho (PT-SP), ex-presidente da CUT, logo após os primeiros ataques pesados da direita contra o governo Lula. Terminou assim a mais longa tentativa de implosão da legislação sindical e trabalhista — uma proposta dos economistas neoliberais que povoaram a “era FHC”, apoiada em alguns aspectos por integrantes da Articulação Sindical, ressucitada pelo governo Lula.
19 – Os neodemolidores da “era Vargas”
A proposta de “reforma” sindical do Fórum Nacional do Trabalho (FNT) mostrou nitidamente que estava em andamento uma nova fase da ofensiva contra a “era vargas”, iniciada no reinado de FHC. A resistência da Corrente Sindical Classista (CSC) possibilitou uma vitória apertada da Articulação Sindical na CUT e expôs a essência liberal da proposta.
O principal fiador das “reformas” sindical e trabalhista no início do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva era o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci Filho. Havia uma nítida ligação ideológica entre ele e os economistas neoliberais que mandaram e desmandaram no país ao longo da “era FHC”. Entre as principais peripécias daquela confraria demolidora, chamada por FHC para acabar com a “era Vargas”, estava a meta de desmontar a legislação sindical e trabalhista. Para comandar a missão, trouxeram o secretário de Planejamento do governo do Estado de Minas Gerais, Paulo de Tarso Paiva.
Eles formavam um grupo integrado por figuras como Pérsio Arida, André Lara Rezende, Elena Landau, Edmar Bacha, Eduardo Modiano, Armínio Fraga, Gustavo Franco, Edward Amadeo e o ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan. Era a “turma dourada” do Departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro do final da década de 1970 e início dos anos 1980. E ficaram marcados por comandar aquele processo pelo qual os interessados em comprar empresas do Estado iam buscar dinheiro quase de graça no BNDES. Atualmente são, em sua maioria, banqueiros bem-sucedidos ou renomados “consultores” do mercado financeiro.
Paiva delira com os acordos ilegais
Paiva assumiu o Ministério do Trabalho dizendo que a legislação trabalhista brasileira era “inflexível e caduca”. E que as “reformas” seriam necessárias à consolidação de uma “economia de mercado com altas doses de investimentos e de geração de empregos”. “A experiência mundial produziu uma ordem razoavelmente depurada de radicalismos ideológicos neste fim de século. Seus alicerces são sistemas políticos democráticos, economias de mercado em processo de globalização, ação social descentralizada por parte de governos nacionais e a consolidação de moedas fortes”, explicou.
Para ele, a “nova ordem mundial” tornara obsoleta, da noite para o dia, a legislação trabalhista. “Os governos nacionais que compreendem o fenômeno implementam políticas compatíveis com essa nova ordem em formação. Os que não compreendem — quer por preconceito ideológico (Cuba de Fidel Castro), quer por motivos religiosos (países islâmicos), quer por ignorância (países africanos) — cavam um fosso no qual aprisionam populações inteiras, mantidas à margem do progresso acelerado que caracteriza a nova ordem”, pregou.
Em 1996, quando o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista — filiado à CUT — fechou um acordo com a Volkswagen e o sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo — filiado à Força Sindical — com o Sindipeças reduzindo direitos dos trabalhadores, Paiva delirou. “Essas negociações, feitas sem a interferência do Estado, foram o fato mais importante desde a instituição da legislação trabalhista nos anos 30”, disse o ministro. “Agora vamos arejar o trabalhismo no país”, afirmou. Segundo Paiva, os presidentes dos dois sindicatos, Luiz Marinho e Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, “viraram de cabeça para baixo a agenda de reivindicações comumente negociada entre empregados e patrões”.
FHC apóia acordo ilegal em São Paulo
O acordo dos metalúrgicos de São Paulo teve seus efeitos suspensos, por decisão da Justiça do Trabalho paulista, sob a alegação de que ele não atendia às exigências legais estabelecidas na CLT. Mas FHC entrou em campo para tentar dar um jeitinho. “O acordo é um avanço enorme, sobretudo porque a iniciativa partiu dos trabalhadores. Determinamos ao ministro Paulo Paiva que estude, junto com juristas, uma fórmula que torne legal esse tipo de acordo sem exigir mudanças na Constituição”, disse o então presidente da República.
Paiva não cansava de dizer que uma das suas prioridades era extinguir a unicidade sindical e a contribuição obrigatória. “É preciso eliminar esse resquício fascista e democratizar as relações do trabalho levando o Brasil, nesse campo, à Europa pós-guerra”, disse ele. “Até hoje, o Brasil não ratificou a chamada convenção 87, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1948, que estabelece o princípio da pluralidade de representação”, afirmou. “É preciso criar sindicatos competitivos, que atendam aos interesses dos trabalhadores”, acrescentou.
Marinho apoiou publicamente algumas propostas do ministro. “Quero me posicionar sobre um aspecto que temos em comum: o imposto sindical”, disse ele. “Trata-se de uma discussão do interesse de todos, empresários e trabalhadores, porque somos tutelados pela mesma legislação trabalhista”, afirmou. “Sustentada pelo imposto, a maioria dos quase 20 mil sindicatos de trabalhadores existentes hoje no país não cumpre o papel de representar com dignidade a sua categoria profissional. Seus dirigentes deixam o anonimato do chão de fábrica para ganhar notoriedade, um certo conforto, status de diretor, com direito a carro e secretárias”, disse.
O líder do grupo de ministros “reformistas”
Na “era FHC”, a legislação sindical e trabalhista sofreu duros golpes, mas a sua essência sobreviveu. Já nos primeiros dias do governo Lula, no entanto, as ameaças voltaram. “As discussões das reformas trabalhista, previdenciária e tributária têm de andar juntas. São um tripé da mudança que queremos, não dá para separá-las”, disse Jaques Wagner, ministro do Trabalho, em sua posse. Palocci, já tido pela direita como uma das vozes mais “sensatas” do governo, liderava o grupo de ministros “reformistas”.
O ministro da Fazenda estava sendo blindado para levar adiante a sua agenda. “Palocci foi enviado por Deus para nos salvar”, discursou o “comentarista” da Rede Globo, Arnaldo Jabor. A revista norte-americana Newsweek disse que Palocci era a “âncora que segura o investidor estrangeiro no Brasil”. A reportagem mostrou que havia consenso entre os “investidores” dos Estados Unidos sobre a capacidade de Palocci manter a economia em situação “estável”. “Que surjam novos Paloccis”, disse a revista.
Palocci ganhou a simpatia irrestrita da direita quando suas alterações no projeto de programa de governo, debatido no Instituto de Cidadania, foram assumidas por Lula . Ele tirou do texto original afirmações como “ruptura com o modelo neoliberal” e críticas ao “capital especulativo”. E bateu o pé até convencer Lula a fazer o anúncio por escrito dos compromissos da “era FHC” com o FMI — “reformas” estruturais, metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário —, num documento chamado “Carta ao Povo Brasileiro”.
Ministro faz chacota de sindicalistas
Já como ministro da Fazenda, Palocci mostrou um temperamento que combinava o gosto pelo comando com o amor à manobra. Ele era perspicaz, furtivo, orgulhoso e solitário. Não deixava de abrir atalhos com as próprias mãos a fim de fugir dos críticos à sua política e encontrar alternativas para caminhar rumo ao seu objetivo, mesmo por rotas tortuosas. E pregava a eficácia de sua política com o mesmo entusiasmo juvenil de quando bebeu os ensinamentos do trotskismo.
Numa roda de banqueiros, ele disse que vivia sob pressão de líderes sindicais para estabelecer um teto a fim de barrar o crescimento das taxas de juros. Foi durante uma dessas conversas, disse ele, que surgiu a idéia de os trabalhadores terem acesso a financiamento bancário com juros menores, com o pagamento diretamente na folha. “Eles agora estão discutindo o assunto com os bancos e deixaram de me pressionar”, disse o ministro com ironia. Sentados em suas mesas, os convidados riram e aplaudiram.
Oposição aberta à realidade de 1930
A influência direitista da política macroeconômica dirigida com mão de ferro por Palocci no meio sindical era gigantesca. A CUT passou a viver uma contradição profunda quando ficou nítido que os novos demolidores da “era Vargas” eram pessoas historicamente ligadas à central. E em alguns momentos se opôs abertamente à realidade formada pelas transformações econômicas e sociais desde a revolução de 1930 — quando foram criadas as condições para que a classe trabalhadora participasse cada vez mais ativamente da vida política nacional.
Isso ocorreu, por exemplo, quando a central apoiou a proposta de “reforma” sindical elaborada no Fórum Nacional do Trabalho (FNT). O ministro do trabalho, Ricardo Berzoini, não mediu palavras, em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 5 de março de 2005, para exaltar o viés liberal da proposta. “Na década de 1940 havia o desejo de uma ditadura de controlar o nascente e autêntico movimento sindical combativo e substituí-lo por uma burocracia confiável ou, pelo menos, controlável”, disse ele.
Proposta vence com diferença de um voto
Segundo Berzoini, a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 “poderia ter dado passos fundamentais para a adoção dos princípios da convenção 87 da OIT”. “Por conta de sua composição e da dinâmica das negociações, não acatou propostas defendidas pelo então deputado Luiz Inácio Lula da Silva, entre outros que lutavam pelo fim da estrutura copiada do fascismo”, escreveu o ministro. “Além de não poder livremente criar outra entidade que concorra com a já existente e atenda às necessidades democráticas e participativas a que a sociedade aspira, o trabalhador é obrigado a ‘contribuir’ com um dia de salário para um sindicato, uma federação e uma confederação”, disse ele.
Para o ministro, o texto da “reforma” proposta pelo FNT era “um passo decisivo rumo a esses princípios”. Era verdade. Tanto que o assunto gerou uma grande divergência na CUT. Isso ficou evidente numa reunião da direção executiva da central, quando dois projetos de resolução sobre o tema foram a voto. Um, da Articulação Sindical, defendeu o apoio à proposta. O outro, da Corrente Sindical Classista (CSC), considerou a proposta um retrocesso que deveria ser repudiado e combatido. O da Articulação Sindical venceu com a diferença de um voto.
Nova disputa na Articulação Sindical
A CSC divulgou um manifesto explicando as razões de sua rejeição à proposta do FNT. “Expressamos a firme convicção de que, por mais de uma razão, as propostas em questão constituem uma séria ameaça de retrocesso em matéria de organização, democracia, conquistas e direitos dos trabalhadores brasileiros”, dizia o documento.“Vamos procurar todos que estão contra essa proposta de reforma sindical para conseguir derrubá-la. Esse texto é um retrocesso para o sindicalismo”, disse Wagner Gomes, vice-presidente da CUT e membro da coordenação nacional da CSC.
Era esse o clima quando João Felício voltou à presidência da CUT, em julho de 2005 — no lugar de Marinho, que assumira o Ministério do Trabalho. Seu nome foi escolhido em um acordo feito na Articulação Sindical para evitar desgastes num momento em que o governo Lula sofria pesados ataques da direita. Concorreu com Felício o nome de Artur Henrique da Silva Santos, que acabou deixando o cargo de secretário de organização para assumir a secretaria geral no lugar de Felício. Era apenas o início de uma nova fase de acirrada disputa interna na Articulação Sindical.
20 – Central enfrenta golpistas
A saída de Luiz Marinho da presidência da CUT para assumir o Ministério do Trabalho ocorreu num momento em que a crise política atingia o pico. Em seu lugar, assumiu João Felício, depois de mais uma fase da acirrada disputa na Articulação Sindical, que conduziria a central de forma combativa no fogo da luta contra a campanha golpista da direita.
A discussão sobre a natimorta proposta de “reforma” sindical do Fórum Nacional do Trabalho (FNT) na CUT logo se encerrou. Havia uma questão mais importante para se discutir: a crise política criada pela direita. Os conservadores viram uma oportunidade de afastar o presidente Luis Inácio da Silva do cargo quando o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) denunciou o “mensalão” — esquema de captação de recursos para campanhas eleitorais por meio de “caixa dois” criado pela laia de banqueiros e corruptos que dominaram a “era FHC” e utilizado por alguns petistas.
A direita lutava com a mídia numa mão o os grupos “esquerdistas” na outra. Mas a reação da esquerda foi imediata e contundente. No dia 21 de junho de 2005, a CUT, a UNE, o MST e outras entidades dos movimentos sociais divulgaram uma carta denunciando a desfaçatez da campanha golpista. O documento, chamado “Carta ao Povo Brasileiro”, dizia que a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) era “contra qualquer tentativa de desestabilização do governo, patrocinada pelos setores conservadores”.
Privatizações fraudulentas
O presidente da CUT, Luiz Marinho, disse que não acreditava no pagamento de mesadas a parlamentares. “Não acredito na capacidade do PT de levantar esse valor”, afirmou. De fato, era uma impossibilidade física. “Imagine se 200 deputados recebessem R$ 200 mil todo mês — haveria um carro forte na frente do Congresso”, disse o coordenador nacional do MST, João Pedro Stedile. “Isso aí é forçação de barra da imprensa e de quem denunciou. Cria-se então aquele factoide, aquela expectativa”, disse ele.
A carta da CMS também criticava a política econômica, basicamente as taxas de juros, classificadas como as “mais altas do mundo”, e a meta de superávit primário (contenção de recursos para pagamento de juros da ciranda financeira), de 4,25% do PIB. “Se o governo Lula não mudar agora (os rumos da economia), a tendência é agonizar até 2006”, declarou o presidente da UNE, Gustavo Petta. O texto pedia ainda investigação de denúncias de compra de votos na aprovação da emenda da reeleição e dos processos fraudulentos de privatizações ocorridos na “era FHC”.
A “convocação” de Marinho
No dia 9 de julho de 2005, Lula anunciou Marinho como o novo ministro do Trabalho. “Acabei de ser convocado pelo presidente Lula para assumir o Ministério do Trabalho. E evidentemente que com uma convocação não se pensa”, disse Marinho. “Eu sou um soldado nesse projeto. Essa convocatória é para colaborar com o presidente, para conduzir o país a sair da crise e para ajudar a dar continuidade ao crescimento da economia”, afirmou.
Marinho disse também que foi convocado para a missão em virtude da crise política. “Na medida em que o presidente pretende reforçar a ação no Congresso, mas não desguarnecer a equipe de governo, nessa condição fui convocado”, explicou. “Se tivesse tudo na normalidade, isso não estaria acontecendo”, disse. O novo ministro do Trabalho também afirmou que teria o apoio “do conjunto” das centrais sindicais. Para ele, sua nomeação daria prestígio às entidades sindicais por ser uma pessoa “com autoridade para negociar com o empresariado e interagir com o movimento sindical”.
Discurso de Wagner Gomes no Planalto
A Força Sindical apoiou a nomeação de Marinho. “Trabalhamos para indicá-lo. Com ele, a reforma sindical pode sair. Ele não vai salvar o governo, mas será bom ministro”, disse Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, presidente da Força Sindical. Sobre a sua sucessão, Marinho disse que era uma questão ainda indefinida. O vice-presidente, Wagner Gomes, da Corrente Sindical Classista (CSC), assumiu interinamente a presidência da central.
No dia 11 de julho de 2005, Wagner Gomes participou, como presidente da CUT, de um ato de solidariedade das centrais sindicais ao presidente Lula no salão nobre do Palácio do Planalto. “Não ousem tentar derrubar o operário Lula do poder no Brasil”, disse ele. E denunciou, perante cerca de mil lideranças sindicais, que “figuras responsáveis por deixar o país nessa situação estão posando de bonzinhos”.
Compromisso da nova composição
A decisão sobre a sucessão de Marinho seria tomada numa reunião da direção executiva da CUT convocada especialmente para este fim. “Haverá um debate dentro desse fórum, que deverá resultar na escolha do novo presidente”, disse o secretário nacional de Comunicação da CUT, Antonio Carlos Spis. O debate resultou na indicação de João Felício. A decisão passou por mais uma acirrada disputa na Articulação Sindical. Felício, que ocupava a função de secretário-geral da CUT, disputou o cargo com Artur Henrique da Silva Santos, então secretário de organização.
Felício recebeu o voto de 13 diretores da executiva — os outros 8 diretores presentes se abstiveram. Com a recomposição da direção, Arthur Henrique da Silva Santos passou a responder pela secretaria-geral. A CSC decidiu não apresentar o nome de Wagner Gomes porque obteve do presidente eleito o compromisso de que a nova composição da central priorizaria, nos dez meses até o 9º Congresso, as lutas pela recomposição do salário mínimo, pela redução da jornada de trabalho e contra a política econômica do governo.
Golpe elegante sem quartelada
O novo presidente da CUT disse que o fortalecimento do salário mínimo teria um papel chave “para uma bela e espetacular distribuição de renda, pois atinge não só milhões de trabalhadores da ativa, como aposentados”. Felício também anunciou que a central não arredaria pé da luta contra a campanha golpista da direita. “Nós não aceitamos retrocesso neoliberal e nos posicionamos de forma firme contra o golpe que setores do PSDB, do PFL e da mídia vêm tentando dar, com declarações que beiram o fascismo”, disse ele.
Para Felício, o golpe “elegante e sem quartelada” estava claro “quando determinados elementos tentam desqualificar permanentemente, de forma preconceituosa, um presidente operário e metalúrgico ou tentam colocar o partido de sustentação do governo na ilegalidade pelo fato de alguns de seus dirigentes terem incorrido em erros e deslizes”. “Agora a campanha das vestais do PSDB e do PFL acalmou um pouco, pois foram surpreendidos com a mão no cofre”, acrescentou.
Ato do “esquerdismo infantil”
Quando a direita tentou desqualificar a participação da central na campanha contra os golpistas, Felício reagiu à altura. “A CUT é apartidária mas não apolítica. Nós queremos a reeleição do presidente Lula, não queremos de volta os neoliberais que venderam nossas estatais a preço de banana. Ao mesmo tempo, não abrimos mão do direito de divergência e vamos às ruas para defender e apoiar mudanças com Lula, pois é o presidente que tem condições de construir o Brasil altivo e soberano, não subalterno nem submisso”, disse.
Sobre a relação da central com o novo ministro do Trabalho, Felício também foi enfático. “A CUT sempre manteve sua autonomia, durante a gestão de Marinho inclusive. A CUT não vai ter nenhuma relação promíscua com o Ministério do Trabalho porque um ex-dirigente aceitou o cargo de ministro. A CUT não participa da indicação de ministros”, disse ele.
Uma prova disso foi dada no dia 16 de agosto de 2005, quando a central fez um ato em Brasília, em conjunto com o MST, a UNE e outras organizações dos movimentos sociais, para exigir mudanças na política econômica e protestar contra os golpistas. No dia seguinte, grupos “esquerdistas” promoveram um ato contra Lula, também em Brasília, com a palavra de ordem “Fora todos!” — e receberam elogios efusivos da direita. Felício classificou o ato como “esquerdismo infantil”.
Radicalização da democracia
Em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 24 de agosto de 2005, Felício voltou a rebater com contundência a tentativa dos conservadores de desqualificar a participação da CUT na campanha em defesa de Lula. “A CUT não mudou de lado, continua coerente e autônoma. Não lutamos contra a corrupção e pela ética na política em determinadas ocasiões ao sabor das conveniências. Organizamos essa e outras lutas por justiça social desde a década de 1980, ao lado de aliados históricos”, disse ele.
Felício pôs o dedo na ferida. “Não seremos tolos para cerrar fileiras com as vestais da direita saudosas do período em que mamaram nas tetas da nação e dilapidaram o patrimônio brasileiro. Contra a corrupção, nossa proposta é a radicalização da democracia”, escreveu. Ele defendeu a reforma política para acabar com o financiamento privado de campanhas e denunciou a “pirotecnia eletrônica para ganhar votos”. “A CUT vai continuar sendo um espaço de representação, ação e conquista dos trabalhadores organizados, a despeito do macarthismo redivivo dos últimos tempos”, finalizou.
A “agenda dos trabalhadores”
Na gestão de Felício, a CUT participou de vários outros atos contra a campanha da direita para encurralar Lula. No dia 19 de outubro de 2005, a central ocupou o Congresso Nacional para apresentar aos deputados e senadores 25 projetos que faziam parte da “agenda dos trabalhadores” a fim de estimular a economia, criar empregos e pedir que “o Brasil não pare”. As propostas incluíam temas como salário e emprego, redução da jornada de trabalho e políticas públicas.
A “agenda dos trabalhadores” também foi entregue a Lula e aos ministros Luiz Marinho (Trabalho), Nelson Machado (Previdência), Miguel Rosseto (Desenvolvimento Agrário) e Antonio Palocci (Fazenda). “Queremos discutir a política de juros e o superávit primário, que impedem que o orçamento disponível seja aplicado para garantir recursos a projetos sociais”, afirmou Felício.
Felício processa deputada tucana
O presidente da CUT também assumiu corajosamente a defesa do mandato do deputado José Dirceu (PT-SP), que seria covardemente cassado pela campanha dos golpistas. “Defendemos o mandato do deputado José Dirceu. Não precisamos desculpá-lo por seus equívocos, concordar com suas atitudes ou subscrever suas idéias. Mas a cassação desse parlamentar seria uma afronta às regras democráticas cuja conquista custou tanta luta e sacrifício”, disse Felício.
No começo de 2006, a CUT também se destacou na discussão do reajuste do salário mínimo e da correção da tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas. E despertava cada vez mais a ira da direita. Segundo o jornal Debate, que circula no município de Ourinhos (SP), em sua edição do dia 27 de janeiro, a deputada federal tucana Zulaiê Cobra pediu o fechamento da sede local da CUT e chamou os cutistas de “assassinos”.
Zulaiê teria dito: “Estava vindo para cá e vi o escritório da CUT. Pelo amor de Deus, fecha esse troço. A CUT não presta para nada. É uma cambada de mentirosos, falsos, covardes, bandidos e assassinos.” Felício disse que a deputada agrediu “pessoas” e “não a entidade”, por isso iria processá-la judicialmente. A deputada tentou se justificar. “Eu afirmei que o pessoal da CUT é assassino porque eles tentam acabar com a honra alheia”, disse ela, que estava respondendo a processo por quebra de decoro parlamentar no Conselho da Ética, a pedido do PT, por ter chamado Lula de “bandidão”.
Choque de inclusão social
A campanha da direita recrudescia. No dia 25 de abril de 2006, a CUT, a UNE e o MST reuniram-se com os presidentes do PT e do PCdoB, Ricardo Berzoini e Renato Rabelo, para definir a realização de atos em defesa de Lula. “Esse tipo de mobilização tem dois objetivos. Primeiro, a defesa do mandato do presidente e, ao mesmo tempo, as reivindicações que esses movimentos apresentam ao presidente”, disse Renato Rabelo. “É uma reposta a essa situação política que vivemos hoje. Há um desespero por parte da direita que procura a todo custo retornar ao poder”, completou.
No ato da CUT do 1º de Maio em São Paulo, Felício pregou a união entre as entidades dos movimentos sociais para enfrentar os golpistas. “Os movimentos sociais têm que continuar unidos e organizados. É a CUT junto com a UNE, a CGTB, o MST e o que há de mais ético na vida política nacional”, discursou. “Esse tucanozinho (Geraldo Alckmin, já definido como candidato da direita para enfrentar Lula nas eleições presidenciais de 2006) aí anda falando que é necessário um choque de gestão. Lula respondeu muito bem. Isso é coisa de burocrata, isso é coisa de almofadinha, de gente desligada do povo. É necessário choque de inclusão social”, afirmou Renato Rabelo.
Profundidade das divergências
À essa altura, com a aproximação do 9º Congresso, o mandato temporário de Felício estava terminando. Iniciava-se mais uma fase da disputa acirrada pela presidência da central na Articulação Sindical. Felício e Artur Henrique Silva Santos voltaram a pleitear a indicação para o cargo. Desta vez, Artur Henrique Silva Santos venceu a disputa e no 9º Congresso foi eleito — com apoio da CSD — presidente com 69% dos 2,5 mil votos. A chapa encabeçada por Wagner Gomes, da CSC — apoiada por O Trabalho, Tendência Marxista e Articulação de Esquerda —, obteve 24,5% dos votos. E a chapa encabeçada por Lujan Miranda, ligada ao PSOL, 6,4%.
A disputa entre Felício e Artur Henrique Silva Santos expôs, mais uma vez, a profundidade das divergências na Articulação Sindical. “Somos da mesma corrente. Não acho que existam dois projetos diferentes, mas sim o que você realça mais. Eu sou um radical autonomista, acho que central sindical é central sindical e governo é governo. Eu enfoco isso no meu discurso. Não acho que neste ponto hajam grandes diferenças com Artur, mas eu enfoco muito isso”, disse Felício.
21 – Articulação manobra contra CSC
A disputa acirrada entre dois grupos da Articulação Sindical atingiu a Corrente Sindical Classista (CSC) em cheio. No 9º Congresso da CUT, a tendência majoritária manobrou o máximo que pôde para esvaziar a participação dos classistas na central. A crise abriu fendas profundas.
O primeiro discurso de Artur Henrique da Silva Santos como presidente da CUT, eleito no 9º Congresso da central realizado entre os dias 2 e 9 de junho de 2006, soou como uma espécie de tentativa de aprumar o rumo depois do ziguezague que o levou ao cargo. “Neste Congresso definimos um plano de lutas e vamos precisar de muita unidade para encaminhar nossa plataforma de luta. Temos de avançar nas conquistas, defender a reeleição do companheiro Lula e apresentar para o governo e à sociedade nossas reivindicações”, afirmou.
A disputa pela presidência da central colocou em posições opostas dois grupos da Articulação Sindical — um deles liderado por João Felício e outro por Artur. Na aparência, o centro da disputa era o grau de autonomia da central frente ao governo Lula. Felício seria mais “autonomista” do que Artur. Havia, sem dúvida, este fator; mas, no fundo, as divergências refletiam a delimitação de espaços entre os dois grupos da Articulação Sindical no comando da central.
Desdobramentos imponderáveis
Artur tentou minimizar a crise. “Essa questão da autonomia tem que ser melhor analisada, porque fazer discurso é fácil. Tem que ver na prática. Fomos nós que fizemos as últimas grandes greves, sindicatos ligados a nós, como os eletricitários e o setor dos bancos públicos. Essa polêmica foi mais uma tentativa de dividir a Articulação Sindical”, disse ele. Os métodos utilizados pelo grupo vencedor, no entanto, deixaram ressentimentos no lado perdedor — cujos desdobramentos ainda são imponderáveis.
Já nos preparativos do Congresso, ficou evidente que a disputa por espaços na Articulação Sindical eliminaria qualquer possibilidade de unidade entre as tendências da central. A Corrente Sindical Classista (CSC) adotou o lema “Por uma CUT autônoma, unitária e combativa”, proclamando que o movimento sindical brasileiro se deparava com o desafio de mobilizar os trabalhadores para “estimular a luta pelas mudanças no país, tendo como objetivo a viabilização de um novo projeto de desenvolvimento nacional, com soberania e valorização do trabalho”.
Casuísmos congressuais
Para a CSC, havia indícios de que o hegemonismo da Articulação Sindical — tema de uma histórica divergência dos sindicalistas classistas com a tendência majoritária da CUT — seria reforçado. “Esse ponto põe em perigo a participação da central no jogo político. Mesmo tendo aliados, a Articulação Sindical age com exclusivismo – o que pode levar a CUT a uma divisão mais profunda. Se não mudar esse comportamento, a Articulação Sindical pode jogar no lixo um projeto construído ao longo de muitos anos”, disse Wagner Gomes, vice-presidente da CUT e membro da coordenação nacional da CSC.
Em artigo intitulado “Como a CUT nacional derrotou o sindicalismo baiano”, publicado no site da CUT-Bahia, o então presidente da entidade naquele Estado, Everaldo Augusto, também membro da CSC, descreveu os métodos da Articulação Sindical para garantir o seu hegemonismo. “A decisão da CUT nacional, de ‘fabricar’ maioria a favor de um grupo político, através de casuísmos congressuais, derrotou o movimento sindical baiano e deu a ‘vitória’ ao grupo Articulação Sindical”, disse ele. “Não é a primeira vez que a cúpula da central interfere nos congressos da CUT na Bahia”, escreveu.
Novas divergências
Segundo Everaldo Augusto, os métodos utilizados pela Articulação Sindical eram concebidos no núcleo central da CUT. “Todo o processo de preparação e realização de congressos da CUT é centralizado, de modo absoluto, pela direção nacional, sobretudo pela tesouraria e a secretaria-geral. Nos anos anteriores, a CUT nacional se dava ao requinte de enviar um funcionário da tesouraria nacional para ser uma espécie de interventor no congresso estadual. A ele cabia a última palavra sobre quem participava ou não do congresso”, disse. Métodos semelhantes também foram usados em outros congressos estaduais.
Depois do Congresso, novas divergências se manifestaram com força entre a Articulação Sindical e a CSC. Para atender aos acordos internos, a tendência majoritária se recusava a manter o cargo de vice-presidente da CUT em mãos classistas. “Nós ajudamos na construção da central e temos crescido nos últimos anos, por isso queremos manter esse espaço”, ressaltou Wagner Gomes. Artur disse que a vice-presidência foi oferecida à CSC antes da definição das chapas que concorreriam à direção da central. “Mas eles preferiram sair sozinhos e quebrar a aliança com a Articulação Sindical”, justificou.
Cargos loteados
A primeira reunião da nova executiva foi tensa. Para a CSC, a manutenção da vice-presidência era legítima e natural, dado o seu fortalecimento no sindicalismo e também na CUT. “Somos uma corrente ascendente, combativa e autônoma”, disse o coordenador nacional da CSC, João Batista Lemos. Mas, com a postura irredutível da Articulação Sindical, dirigentes da CSC abandonaram a reunião.
Em nota divulgada no dia 23 de junho de 2006, a CSC condenou novamente a postura hegemonista da Articulação Sindical. “(Os cargos) já tinham sido previamente loteados dentro da própria Articulação Sindical”, dizia o documento. “A decisão de abocanhar também a vice-presidência seria uma forma de sufocar ainda mais as outras correntes e aprofundar a partidarização da central”, afirmou a nota. “Ao encabeçar a ‘Chapa 2′ no pleito que definiu a nova direção, na plenária final do 9º Congresso, a CSC foi motivada basicamente pela necessidade de lutar por uma CUT democrática, autônoma e combativa”, acrescentava.
Fendas abertas
Segundo o documento da CSC, a atitude da Articulação Sindical ameaçava a unidade da CUT. “A questão não é meramente sindical.Trata-se de consolidar uma frente política no interior da central tendo em vista objetivos estratégicos maiores, destacando a defesa de um novo projeto nacional de desenvolvimento, fundado na soberania e na valorização do trabalho, que hoje passa pela reeleição de Lula. É uma batalha política de classes, na qual não se deve subestimar o poder de fogo das classes dominantes”, finalizava.
A controvérsia terminou no dia 28 de julho de 2006, quando a Articulação Sindical decidiu dividir o cargo na nova executiva nacional — criando duas vice-presidências, uma delas ocupada por Wagner Gomes e a outra por Carmem Forro, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), ligada à Articulação Sindical. “A nova composição sinaliza um processo de pluralidade, fortalecendo a CUT”, declarou Wagner Gomes, que destacou o crescimento classista na nova direção da CUT. A CSC passou de quatro para cinco membros efetivos na executiva nacional, além de uma suplência.
22 – Contradições chegaram ao limite
A direção da CUT eleita no 9º Congresso manteve a central na linha de combate às principais propostas da direita, mas continuou fazendo a defesa da “reforma” sindical. A ampliação do hegemonismo da tendência majoritária levaria a central a sacrificar ainda mais o pluralismo e a democracia interna.
A decisão salomônica adotada pela Articulação Sindical, de dividir a vice-presidência da CUT em duas, não alterou o cenário de fundo das divergências na central. A solução consolidou a ampliação artificial do espaço da tendência majoritária — sacrificando o já precário pluralismo e a democracia interna da CUT. Para a Corrente Sindical Classista (CSC), a nova configuração da direção cutista sufocava ainda mais as sua idéias. Esse passo dado no 9º Congresso da central seria decisivo para o acirramento das divergências entre as duas principais tendências da central.
Mas, apesar do hegemonismo reforçado da Articulação Sindical, os acontecimentos seguintes mostrariam que a central manteria a postura de enfrentamento com a direita. A CUT assumiu abertamente a campanha pela reeleição do presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, e jogou peso na campanha pelo reajuste do salário mínimo. A central definiu o tema como uma de suas prioridades — a exemplo do que ocorrera nos anos anteriores do governo Lula com a Marcha pelo Salário Mínimo. “É preciso colocar na pauta do país o crescimento da economia, e, quanto mais distribuição de renda, mais a economia vai se desenvolver”, disse o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos.
Críticas à proposta de restrição ao direito de greve
A central também se posicionou claramente contra a proposta do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo — apoiada pelo então ministro do Trabalho e ex-presidente da CUT, Luiz Marinho, e por Lula —, de proibir alguns setores do funcionalismo de fazer greves. “Falar em proibir greve em determinados setores é absurdo”, respondeu Artur imediatamente. “Nós achamos a atitude do ministro (do Trabalho) um desastre”, disse Wagner Gomes, um dos vice-presidentes da CUT. “O Lula disse que o ministro tem autoridade para discutir isso pelo fato de ele ter sido sindicalista. Nós achamos justamente o contrário. Justamente por ter sido sindicalista, discutir a restrição (da greve) é um absurdo”, acrescentou.
Em agosto de 2007, quando Lula voltara ao tema, Artur classificou de infeliz a declaração do presidente de que servidores em greve por 90 dias estão de “férias”. Para ele, Lula e o governo tratam de forma enviesada a discussão sobre o direito de greve dos servidores. “Primeiro, é preciso garantir o direito dos servidores à negociação coletiva. Depois, se coloca a questão de como regulamentar os conflitos”, disse. Artur acrescentou que “ninguém gosta de fazer greve” por 30, 60 dias. “Mas sem a garantia de negociação coletiva essa é a única forma de as autoridades responderem às reivindicações”, afirmou.
Críticas à proposta de “reforma” da Previdência
A CUT também criticou a mudança na fórmula de cálculo da Taxa Referencial (TR), que reduziria a rentabilidade da caderneta de poupança e do Fundo de Garantia do Tempo se Serviço (FGTS). A decisão, que atendia a um pleito dos bancos, foi tomada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). “É uma transferência de renda do trabalhador para o sistema financeiro, o setor que mais lucra neste país”, disse Artur. “O governo retira de segmentos como saneamento e habitação, que têm ligação com o FGTS, para beneficiar os bancos, que não precisam de subsídios”, declarou. Quando o presidente norte-americano, George W. Bush, visitou o Brasil, a CUT também participou ativamente dos protestos.
A central esteve ainda na linha de frente das críticas às declarações de membros do governo a favor de uma nova “reforma” da Previdência Social. Artur disse que a discussão no Fórum Nacional da Previdência Social, criado pelo governo para discutir o assunto, tinha uma ótica “fiscalista” e avisou que a central era contra mudanças nas regras da aposentadoria. “Somos contra uma reforma que só mexe nas despesas, que tem sempre essa visão fiscalista. Queremos olhar para o lado da receita. Vamos marcar uma reunião com todas as centrais e, quando o debate chegar ao Congresso, vamos mobilizar e pressionar por outras alternativas”, declarou.
Articulação volta a defender “reforma” sindical
Logo, o tema “reforma” sindical também voltaria à baila. A Força Sindical havia pedido a Marinho uma “minirreforma” urgente da estrutura sindical brasileira por meio de Medida Provisória (MP) ou decreto do governo. Duas MPs editadas para tentar antecipar pontos da reforma sindical e trabalhista haviam sido derrubadas pela Câmara dos Deputados. A MP 293, que legalizava a situação das centrais sindicais na representação dos trabalhadores, e a MP 294, que criava o Conselho Nacional das Relações do Trabalho, não obtiveram apoio suficiente dos deputados para serem aprovadas.
O governo ensaiava retomar o assunto. Numa reportagem do jornal Folha de S. Paulo do dia 8 de abril de 2007, várias lideranças sindicais comentaram o assunto. Pela Articulação Sindical, falaram a secretária de organização da CUT, Denise Mota Dau, e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, José Lopez Feijóo. “A legislação não ajuda”, disse Denise.
Central pede a Lula manutenção de Marinho
Feijóo lamentou o fracasso da proposta de “reforma” sindical do Fórum Nacional do Trabalho (FNT) e culpou o “lobby da velha estrutura sindical” no Congresso Nacional pelo fiasco. “(O lobby foi) de ambos os lados, do patronal e dos trabalhadores. Rejeitaram a proposta de criar o Conselho Nacional de Relações do Trabalho, cujo objetivo era organizar o meio sindical”, disse ele.
Quando Lula anunciou a troca de Marinho no Ministério do Trabalho pelo deputado Carlos Lupi (PDT-RJ), pouco simpático às propostas de “reforma” sindical que haviam surgido, a central reuniu-se com Lula para pedir a manutenção do ex-presidente da CUT no cargo. “Viemos aqui falar que gostaríamos de manter o Marinho no Trabalho pela postura que ele adotou. Ele tem se mostrado um ministro com compromisso”, disse a outra vice-presidente e então presidente interina da CUT, Carmem Foro.
Maior luta da central é contra a “Emenda 3”
Mas a maior luta da central neste período vem sendo a resistência à campanha da direita pela derrubada do veto de Lula à “Emenda 3” — que golpeia a legislação trabalhista. No dia 10 de abril de 2007, a CUT liderou um protesto das centrais sindicais para pressionar os parlamentares a não derrubar o veto. Além das manifestações, trabalhadores do setor de transportes, de algumas empresas privadas e dos serviços públicos de vários Estados paralisaram os trabalhos.
A CUT também participou de um ato de entrega a Lula de um documento intitulado “Agenda dos Trabalhadores pelo Desenvolvimento” — resultado de 15 reuniões e 57 horas de trabalho entre representantes de sete centrais sindicais (CUT, Força Sindical, CGT, SDS, CAT, CGTB e Nova Central) e técnicos do Dieese —, com propostas para o crescimento do país, melhora da distribuição de renda e principalmente da qualidade de empregos criados. “Não adianta discutir o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nem fazer investimentos e conceder subsídios a setores sem olhar a questão da qualidade do emprego que está criado”, disse Artur.
No dia 10 de abril de 2007, o movimento sindical promoveu mais uma série de paralisações contra a derrubada do veto de Lula à “Emenda 3”. As centrais sindicais se reuniram com os ministros da Fazenda, Guido Mantega, do Trabalho, Carlos Lupi, e da Previdência, Marinho, para discutir um novo projeto de lei que substituiria a “Emenda 3”. “Se as negociações não avançarem, vamos propor paralisações de maior tempo”, disse Artur. Novos protestos ocorreriam nos dias 24 de maio e 15 de agosto de 2007.
Nova dinâmica do movimento sindical
No final de julho deste ano, quando um movimento da elite paulista com o nome de “Cansei” começava a ganhar a mídia em meio a mais uma onda golpista, a CUT voltou a se posicionar abertamente contra a direita. Artur disparou um e-mail para várias centrais sindicais propondo a realização da campanha “Cansamos!”. Era uma reação direta ao “Cansei”. “A campanha será veiculada em nossas páginas de internet, em jornais impressos e programas de rádio de que dispomos”, disse Artur.
No e-mail do presidente da CUT, o texto diz que “cansamos do trabalho escravo, da sonegação de impostos, da mídia que não aborda os movimentos sociais e da mídia que criminaliza as lutas populares”. “Apesar de tantas razões, não temos tempo para sentir cansaço. Continuaremos lutando. Precisamos de sua participação. Filie-se ao seu sindicato!”, finalizava o texto.
A CUT chega aos seus 24 anos, portanto, com espírito combativo mas com seus vícios históricos acentuados. A nova dinâmica do movimento sindical e os estreitos espaços para a atuação de outras tendências, provocados pelo avanço do hegemonismo da Articulação Sindical e o aumento da restrição à democracia interna, estão causando uma reviravolta na configuração da direção cutista. Para a CSC, esse é o limite de sua participação na central.
23 – Razões para a saída da CSC da central
O movimento sindical, 24 anos depois da fundação da CUT, apresenta elementos inteiramente novos na história dos trabalhadores brasileiros. Essa nova dinâmica exige respostas novas, tanto teóricas quanto organizativas. Para enfrentar este desafio, a Corrente Sindical Classista (CSC) se propõe a seguir um novo caminho.
A desproporção entre o crescimento da Corrente Sindical Classista (CSC) e o espaço para a sua atuação política no interior da CUT é o principal motivo do esgarçamento da relação entre esta tendência e a Articulação Sindical. “Queremos que a sociedade conheça nossas idéias. E isso não está sendo possível dentro da CUT. Avaliamos que nem seria possível porque quando aderimos à CUT havia uma polarização no movimento sindical, entre a CUT e a Força Sindical. Resolvemos ir para o lado que estava mais comprometido com a luta dos trabalhadores, mas hoje o movimento sindical está pulverizado”, afirma Wagner Gomes, vice-presidente da CUT e membro da coordenação nacional da CSC.
Para ele, a fundação de uma central com perfil plural e democrático seria a forma mais adequada de inserir as propostas da CSC no debate que hoje se desenvolve no país. “Não seremos uma central de oposição à CUT — achamos que esta central ainda tem um papel importante a cumprir.
Teremos uma relação de parceria prioritária com a CUT”, explica Wagner Gomes. Para o coordenador nacional da CSC, João Batista Lemos, a CUT ainda é a mais importante central sindical do Brasil e um patrimônio dos trabalhadores. “A central que construiremos deverá contar com a CUT em inúmeros momentos, e acreditamos que ela será uma de nossas principais aliadas — senão a principal — em várias batalhas”, ressalta Batista.
Fase de defensiva estratégica
Não se trata, portanto, de um rompimento em todas as linhas. “Não estamos rompendo. Nossa decisão está sendo fruto de um amadurecido debate e de uma necessidade histórica”, acrescenta o coordenador nacional da CSC. Mas, avalia ele, o cenário de mudanças progressistas que emerge na América Latina abre espaços para a formação de um pólo com condição de ampliar e unir mais o movimento sindical. Mais do que isso: esse novo pólo pode descortinar horizontes estratégicos e apontar para os trabalhadores, na batalha antiimperialista e anticapitalista, o caminho da superaração do neoliberalismo e a abertura de clareiras rumo ao socialismo.
Para tanto, é preciso uma compressão mais avançada das leis do capitalismo dos dias atuais — particularmente no Brasil, um país com problemas estruturais gravíssimos e que se encontra num impasse histórico. A fase desenvolvimentista iniciada pela “era Vargas” foi substituída pelo neoliberalismo. Como forma de resistência, surgiu a tática da frente eleitoral, que levou à Presidência da República o ex-líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva.
É, sem dúvida, um cenário bem distinto daquele existente quando a CSC se incorporou à CUT, no início dos anos 90. Ali, a luta era pelo fortalecimento de um pólo combativo, representado pelo sindicalismo cutista, para enfrentar a forte onda neoliberal que chegava ao Brasil com força. Hoje, embora ainda numa fase de defensiva estratégica, a luta é por um projeto desenvolvimentista com distribuição de renda — que exige novas formas de organização dos trabalhadores que levem em conta o processo histórico, mas sem copiar modelos do passado. O binômio unidade e luta deve ser aplicado em circunstâncias distintas daquelas de outros tempos.
Frentes de trabalho interrelacionadas
A unidade, num projeto desta envergadura — de acumulação estratégica de forças —, implica em considerar a existência de três frentes de trabalho interrelacionadas: apoio às iniciativas populares do governo Lula; aliança com os demais movimentos sociais; e luta de idéias, reforçando a tendência progressista. É possível dizer com segurança que o Brasil sob o governo Lula tem o germe da mudança. Ele é, em essência, a antítese do nosso passado recente, político e econômico — quando vivemos um período de neoliberalismo radical, precedido de uma década tida como perdida e um longo regime ditatorial. Este período levou o país à beira do caos.
A questão é que a semente da mudança não brota por desejos. O movimento transformador é, antes de tudo, objetivo e não produto da vontade — e mesmo de uma ação consciente — de quem quer que seja. Ele só evolui quando é fundamentado em relações econômicas e sociais bem determinadas. O problema das forças que lutam por mudanças, portanto, é o de unificar suas atividades e elaborar projetos que respondam minimamente aos desafios dos novos tempos — sem aquela idéia ingênua, quase religiosa, típica dos grupos “esquerdistas” que se imaginam os ”escolhidos” para levar as massas ao paraíso.
História das lutas populares no Brasil
É preciso se guiar pelo fio da história para entender o complexo quadro social dos dias atuais. Um elemento que deve ser considerado neste momento é a concepção sindical da CSC — que nunca se diluiu no conjunto de princípios da CUT. A importância do ponto de vista histórico para a atual transição tática da CSC é uma percepção fundamental. Ela se guia por uma história que nasceu quando os trabalhadores sequer eram considerados agentes políticos.
Por este ponto de vista, é possível vermos os avanços do movimento sindical ao longo do século XX, a politização da classe trabalhadora — que permitiu, por exemplo, a criação do Partido Comunista do Brasil, em 1922 — e a visibilidade do horizonte socialista. A luta popular no Brasil é marcada pela descontinuidade — com fases de evolução e refluxo. A perspectiva transformadora, no entanto, não deixou de se firmar com todas as forças — gigantescas em certos casos e ínfimas em outros.
Protagonimo pressupõe unidade
Em toda essa trajetória, a concepção sindical classista se pautou pela ampla unidade, a combatividade e a democracia — não sem cometer um bocado de erros. Ela tirou os trabalhadores da mera condição de objetos da ação histórica para transformá-los em protagonistas de peso no jogo político. Hoje, esse protagonismo exige novos exames. “Para os operários conscientes, não há tarefa mais importante do que a de conhecer o movimento de sua classe, sua essência, seus objetivos e tarefas, suas condições e formas práticas”, escreveu o revolucionário marxista Vladimir Lênin.
Pode-se dizer que os passos que a CSC vem dando nesta sua nova etapa tática seguem este caminho. “É hora de conquistar um protagonismo maior para os movimentos sociais, com vista a uma transformação social e política mais profunda”, afirma Batista.
Para Wagner Gomes, este protagonimo pressupõe unidade, que hoje se dá por meio da coordenação das centrais “numa agenda comum de ações”. Ou seja: não há mais base real para se pensar na unidade apenas em uma central sindical. Pode-se dizer que as tendências do movimento sindical se agrupam em campos distintos porque a nova dinâmica social do país exige respostas inteiramente novas. E não é possível imaginar, hoje, a CUT como o ambiente mais propício para a busca destas respostas.
Expressão de diferentes concepções
A central tem se mantido tímida — quando não omissa —, por exemplo, na luta antiimperialista. Sua opção pelo “sindicalismo cidadão”, baseado nas negociações tripartites (capital, trabalho e Estado), mostra o limite do seu horizonte estratégico. A CUT é, atualmente, segundo a CSC, apenas mais um espaço de organização dos trabalhadores. “A dificuldade que passamos a ter de dialogar com a Articulação Sindical, a exigência de uma ação mais combativa dos trabalhadores neste segundo governo Lula e a grande quantidade de sindicatos não filiados a nenhuma central que passaram a nos procurar nos motivou a repensar nosso papel na construção da unidade dos trabalhadores”, afirma Batista.
É óbvio que recriar o quadro de unidade do movimento sindical, organizando novos espaços para a expressão de diferentes concepções, é uma tarefa difícil e de grande responsabilidade. No Brasil, a direita sempre fez todo o possível para riscar a história dos trabalhadores com a finalidade de apagá-la da memória do povo e assim afastá-lo da sua luta pelo futuro. Tudo isso dificulta, evidentemente, a tarefa proposta pela CSC. Mas seria um erro adiá-la — a vida exige, com insistência cada vez maior, que o movimento sindical utilize em sua luta de hoje toda a sua rica experiência histórica.
Osvaldo Bertolino é jornalista,escritor e editor do blog O Outro Lado da Notícia.
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