Uma lei que afeta tanto o direito material quanto processual do trabalho e prejudica, em diversos aspectos, não apenas o padrão de direitos constitucionais estabelecidos em favor do trabalhador, mas a própria estrutura de Estado edificada a partir de 1988. E o pior é que essa lei nada mais é do que parte de um movimento bem mais amplo e claramente direcionado à eliminação do pouco que conseguimos concretizar em termos de Estado Social. A Lei em questão de número 13.467/17 que tem claro objetivo de fragilizar completamente a proteção que informa e justifica o Direito do Trabalho.
Considerando essa realidade, pretendo aqui propor o exame crítico de algumas regras que buscam inibir tanto a atividade dos peritos auxiliares do juízo, quanto a dedução de pretensões que envolvam situação de prejuízo efetivo à saúde do trabalhador. O pressuposto é de que a atividade pericial tem no processo do trabalho a função de aferir a qualidade do ambiente de trabalho, para a preservação da saúde e da vida do trabalhador, e encontra aí a sua importância.
A leitura do texto da Lei 13.467/17 impressiona pela insistente tentativa de ruptura com a ordem constitucional que busca a proteção da incolumidade física e psíquica de todos os cidadãos, especialmente no ambiente de trabalho. A autorização para que gestante trabalhe em ambiente insalubre, um dos poucos pontos da “reforma” comentados em sua supersônica fase de tramitação, é apenas uma das tantas previsões que assustam e que entrarão em vigor, se essa lei não for revogada, já em 13 de novembro deste ano.
Em uma sociedade capitalista, na qual se admite a venda de tempo de vida por dinheiro, o parâmetro de proteção à saúde de quem se sujeita a tal condição deveria ser a total proibição da realização de atividades perigosas, penosas ou insalubres.
O respeito às normas de limitação da jornada, especialmente mediante um controle idôneo, protegido contra manipulações, deveria ser prioridade. O trabalho em jornada extraordinária deveria ser proibido, mas não é. A proteção que asseguramos ao trabalhador se resume à possibilidade de que venda sua força vital com prejuízo efetivo à saúde, mas receba em troca 10%, 20% ou 40% do salário mínimo, conforme entendimento majoritário da jurisprudência e da doutrina. E em relação ao controle do horário de trabalho, a jurisprudência não apenas corrompe os limites constitucionais como fragiliza a proteção que se traduz em um registro verdadeiro das horas trabalhadas. Pois bem, a lei em questão positiva toda essa fragilização e ainda vai além, buscando claramente destruir parâmetros de proteção que, como sabemos, constituem o limite que impede a barbárie.
A reprodução de ambientes adoecedores de trabalho, a partir da lógica econômica de que custa bem menos pagar um adicional de salário do que tornar o ambiente seguro, reduz a qualidade de vida e, por consequência, o convívio social saudável dos trabalhadores. Aumenta também o número de doenças ligadas ao trabalho, determinando a necessidade de uma outra espécie de perícia (médica). Mesmo a perícia contábil, que a princípio parece ter menos relação com a preservação da saúde física e psíquica de quem trabalha, atua diretamente para contribuir na atividade de prevenção e de reparação desses danos. Por ela, obtemos dados concretos acerca da regularidade ou não da troca do tempo de vida por remuneração, coibindo, por exemplo, a prática de pagamento variável, fixado ao arbítrio do empregador, sem qualquer parâmetro passível de controle, ou mesmo a manipulação dos registros de horário ou, ainda, a adoção da prática de suprimir minutos na contagem das horas dedicadas ao trabalho.
Há ainda a perícia ergonômica, pouco utilizada nos processos trabalhistas, mas que permite revelar irregularidades que potencializam as doenças profissionais. São, portanto, todas elas, instrumentos de proteção e construção de um ambiente minimamente saudável de trabalho.
As normas trabalhistas surgem historicamente para estabelecer o máximo da exploração possível. Isso significa que nossa sociedade já admite um grau importante de assujeitamento, naturalizando a exploração de força vital como se fosse mercadoria. Os direitos dos trabalhadores, todos eles coletivos e individuais ao mesmo tempo, fixam, portanto, limites tímidos a essa exploração, evitando a completa redução de seres humanos à condição de coisa, nos moldes tão bem retratados em “Tempos Modernos”. Precisamos então compreender (ou relembrar) o fato de que tudo o que afeta a possibilidade de vida saudável de um trabalhador interfere diretamente no tecido social, piorando o convívio entre as pessoas, as relações de afeto, a expectativa de vida saudável, a cultura, a civilidade possível. A redução de direitos, proposta pela Lei 13.467, tem um custo social que atinge a todos, indiscriminadamente. Uma sociedade de pessoas doentes é uma sociedade doente, com alto custo previdenciário, com uma “produção” menos qualificada, e que reproduz miséria e revolta. Eis porque não há como desconectar a análise jurídica das regras inseridas na CLT, do problema que realmente estamos enfrentando aqui: o tipo de sociedade que estamos construindo.
Com a edição da Constituição de 1988, que concede fundamentalidade formal (além de material) aos direitos trabalhistas, inserindo-os no Título II, Dos Direitos e Garantias fundamentais, é ainda mais clara a impossibilidade de sustentação jurídica de qualquer interpretação que promova ou de algum modo contribua para o adoecimento no ambiente de trabalho. À luz da Constituição, a percepção dos adicionais de remuneração pela realização de atividades insalubres, penosas ou perigosas, de acordo com a nocividade dos agentes existentes no ambiente de trabalho, constitui direito fundamental. Do mesmo modo, os limites para o tempo de exploração da força de trabalho estão diretamente relacionados à necessidade de reduzir “riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (Art. 7º, XXII). É nesse contexto que o trabalho dos peritos auxiliares do juízo encontra relevância, pois assume a função de atuar no controle, na prevenção e na eliminação de situações que fragilizam ainda mais a situação de quem vende a si mesmo em troca de remuneração, para sobreviver em um ambiente capitalista de produção.
A tentativa verificada no parágrafo único do art. 611B inserido na CLT, de afirmar que “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo” certamente não vingará. Essa regra, além de evidentemente não resistir ao filtro constitucional, deverá encontrar seu limite no próprio texto da reforma, quando no art. 611A admite-se a regulação por norma coletiva de questões relativas à jornada “observados os limites constitucionais”. E nem poderia ser diferente. Os limites constitucionais, é bom que se diga, não são apenas quanto à extensão (8h no máximo por dia e 44h por semana), mas também quanto ao integral pagamento do que excede esse limite, quanto à excepcionalidade da realização de horas extras, quanto à desconexão que se traduz no direito às férias, repousos e intervalos.
Sob a perspectiva do direito internacional, a OIT tem como parâmetro para a existência de relações de trabalho adequadas ao atual estágio de desenvolvimento da sociedade do capital, a noção de trabalho decente. Em 1999, na reunião anual da OIT em Genebra, foram fixados seis pressupostos, para definir trabalho decente e digno:
-Segurança de ocupação – proteção contra a dispensa abusiva ou injustificada e estabilidade no emprego;
-Segurança profissional – possibilidade de valorização da profissão (do tempo de serviço);
-Segurança no local de trabalho – proteção contra acidentes de trabalho e doenças profissionais, inclusive mediante limitação do horário de trabalho e supressão de trabalho extraordinário;
-Segurança de remuneração – com a intangibilidade e a irredutibilidade real do salário;
-Segurança de representação – organização sindical independente e forte e
-Segurança previdenciária – com normas que garantam a sobrevivência digna do trabalhador não-empregado ou aposentado.
-A relação direta que a OIT estabelece entre segurança no local de trabalho e limitação da jornada não deixa dúvida de que todas as normas de limitação do tempo de trabalho e fixação de descansos, juntamente com aquelas que coíbem e regulam a exposição a agentes nocivos, dizem diretamente com a saúde física e mental de quem trabalha.
É sob essa perspectiva, então, que qualquer tentativa de compatibilização das regras da Lei 13.467/17, sobre esses temas, deve ser examinada. Ora, os trabalhadores não constituem uma espécie a parte de seres humanos, que podem passar todo o tempo trabalhando ou sujeitar-se a condições penosas, insalubres e perigosas, à manipulação dos registros da jornada ou à utilização de remuneração variável como forma de potencializar a concorrência com os colegas e mesmo prejudicar quem ouse discordar dos métodos adotados no ambiente de trabalho.
São seres humanos para os quais a ordem jurídica, pautada na dignidade humana, na redução das desigualdades e no ideal de vida boa, também se destina ou deveria destinar-se.
E para que a ordem jurídica constitucional realmente se estenda aos ambientes de trabalho, é preciso aumentar (em vez de reduzir) o acesso à justiça, facilitando a dedução de pretensões que denunciem extensão lesiva da jornada, existência de ambientes adoecedores, assédio moral ou doenças laborais. Por isso é tão grave perceber que a alteração do art. 840 da CLT, por exemplo, exigindo que o pedido seja “certo, determinado e com indicação de seu valor” tenha por objetivo limitar a pretensão do trabalhador e ainda puni-lo em caso de não obter prova suficiente da lesão, na medida em que também é alterado o artigo 790B e 791A, para fixar que, mesmo beneficiário da justiça gratuita, o empregado deverá ser compelido a pagar honorários de perito e honorários de advogado.
O que precisamos, portanto, até que seja possível revogar integralmente o texto da Lei 13.467/17, já que ele não contribui em absolutamente nada para a modernização da legislação trabalhista e provoca rupturas que negam o princípio instituidor do Direito do Trabalho, é criar interpretações que a neutralizem ao máximo.
Quanto a essa primeira questão, relacionada ao direito fundamental de acesso à justiça, basta pensarmos que o texto aprovado não se refere a pedido líquido. A indicação de valor pode ser, portanto, aproximativa. Além disso, deverá facilitar a prolação de sentenças líquidas, inclusive com o auxílio de perito contábil da confiança do juízo, eliminando assim a fase de liquidação e emprestando maior efetividade ao processo do trabalho.
É claro que os idealizadores da “reforma”, cientes disso, também se preocuparam em limitar o valor do depósito recursal (Art. 899, § 9º O valor do depósito recursal será reduzido pela metade para entidades sem fins lucrativos, empregadores domésticos, microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte), além de inserir hipóteses de dispensa (§ 10º São isentos do depósito recursal os beneficiários da justiça gratuita, as entidades filantrópicas e as empresas em recuperação judicial) e de substituição (§ 11º O depósito recursal poderá ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial).
Todas essas hipóteses estão evidentemente sujeitas ao crivo judicial e ao exame do caso concreto, inclusive quanto à má-fé da empresa (art. 793-A da CLT), quando o recurso tiver evidente caráter procrastinatório (III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI – provocar incidente manifestamente infundado; VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório), caso em que desde logo deverá ser arbitrada multa e indenização.
Algumas outras questões pontuais também podem ser indicadas, na linha desse raciocínio pelo qual devemos aplicar a lei negando-a ao máximo, sob pena de legitimarmos o retrocesso social que ela claramente busca instaurar nas relações materiais e processuais do trabalho, quanto ao direito fundamental a um ambiente de trabalho minimamente saudável.
O art 611A da CLT, por exemplo, quando dispõe que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando dispuser sobre “enquadramento do grau de insalubridade”, precisa ser examinado à luz da ordem constitucional e legal vigente. A lógica constitucional é de progressiva redução das situações insalubres de trabalho. Permitir que o enquadramento do grau de insalubridade seja definido por norma coletiva estimula a manutenção de ambientes de trabalho adoecedores. Aliás, a própria CLT, no art. 157, impõe cláusula de incolumidade que deve servir para neutralizar os efeitos nocivos da regra do art. 611A, quando atribui ao empregador a obrigação de “cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho”.
Na mesma linha, o art. 189 da CLT estabelece que “serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”. Ou seja, a condição insalubre de trabalho é circunstância definida em lei, cujo escopo é a proteção à saúde de quem trabalha. Não está à disposição do intérprete, seja ele juiz, advogado, sindicato, trabalhador ou empregador.
Por isso mesmo, o art. 191 da CLT estabelece que a “eliminação ou a neutralização da insalubridade ocorrerá:
I – com a adoção de medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância; ou
II – com a utilização de equipamentos de proteção individual ao trabalhador, que diminuam a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância”.
Logo, a norma coletiva, para ter validade, terá que aliar a previsão acerca do adicional devido com prova técnica que demonstre seja tal adicional efetivamente adequado para afrontar o dano causado ao trabalhador.
Do contrário, certamente deverá ser observado o art. 192 da CLT: “O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário-mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo”, aliado à previsão do art. 195, no sentido de que a “caracterização e a classificação da insalubridade e da periculosidade, segundo as normas do Ministério do Trabalho, deverá ser feito através de perícia a cargo de Médico do Trabalho ou Engenheiro do Trabalho, registrados no Ministério do Trabalho”. Note-se que os parágrafos desse dispositivo tornam clara a necessidade de trabalho técnico especializado, para a aferição do grau de insalubridade. E se a intenção for efetivamente privilegiar a autonomia coletiva da vontade, sem reduzir direitos, como disseram os defensores da “reforma”, a previsão de grau de insalubridade em norma coletiva não poderá prescindir da análise técnica, podendo as empresas utilizarem a faculdade do § 1º do art. 195 (É facultado às empresas e aos sindicatos das categorias profissionais interessadas requererem ao Ministério do Trabalho a realização de perícia em estabelecimento ou setor deste, com o objetivo de caracterizar e classificar ou delimitar as atividades insalubres ou perigosas).
E devendo, o Poder Judiciário Trabalhista, observar o que determina o § 2º dessa mesma norma (Arguida em juízo insalubridade ou periculosidade, seja por empregado, seja por Sindicato em favor de grupo de associado, o juiz designará perito habilitado na forma deste artigo, e, onde não houver, requisitará perícia ao órgão competente do Ministério do Trabalho). Por fim, o § 3º do art. 195 da CLT não deixa dúvida acerca da necessidade de perícia, mesmo que haja previsão acerca do grau de insalubridade, em norma coletiva: “O disposto nos parágrafos anteriores não prejudica a ação fiscalizadora do Ministério do Trabalho, nem a realização ex officio da perícia”. Portanto, é certo que acordo para definição de grau de insalubridade não terá efeito algum, caso em juízo se verifique que o adicional devido é diverso daquele ajustado.
Quanto ao aspecto processual, a previsão do mesmo art. 611A da CLT, em seu § 1º, no sentido de que “no exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação” não altera essa conclusão. Esse artigo estabelece que “a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”. É mesmo evidente que uma regra como essa não poderá eximir o Juiz do Trabalho de fazer cumprir a Constituição, nem o impedirá de zelar pelo andamento rápido das causas (art. 765 da CLT), atuando para conferir máxima efetividade à tutela (art. 775, § 2º, da CLT). Regras como aquela inserta no § 3º do art. 8º da CLT buscam repristinar uma noção de atividade jurisdicional que não se sustenta. Aliás, nunca se sustentou.
A idealização de um juiz “boca da lei”, sem compromisso com a justiça das suas decisões, com as repercussões sociais e políticas de seus atos, nunca existiu. Nem na época de Napoleão. Muito menos agora.
A edição de um número cada vez mais extenso de normas ou, para ficarmos apenas com o exemplo da lei que aqui examino, a introdução de regras estranhas ao contexto de determinado código, avessa ao que lhe justifica a existência, evidentemente não facilitará a produção de juízes “carimbadores”, como parece ser o objetivo dessa “reforma”. Ao contrário, a técnica de inflacionar a atividade legislativa acaba criando brechas que permitem aos juízes um espaço praticamente ilimitado de atuação. Ou seja, produzem resultado oposto àquele pretendido por quem, como Ricardo Ferraço em seu relatório, se rebela contra o que chama de “danoso populismo judicial”. A expressão, que aparece nove vezes no relatório de Ferraço, é uma crítica à jurisprudência trabalhista. Mas não aquela que ao longo das últimas décadas desconfigurou o sistema de proteção às relações de trabalho, chancelando jornada de 12h, banco de horas, extensão de trabalho em atividade insalubre ou fixando salário mínimo como base para cálculo dos adicionais de proteção à saúde. Pelo contrário, essas lesões foram incorporadas ao texto da CLT.
O que os idealizadores da “reforma” criticam são decisões judiciais que majoram a proteção legal, na linha da “melhoria das condições sociais” preconizada pelo caput do art. 7º da Constituição. Ignoram, porém, o fato de que quanto mais regras, maior o espaço de atuação, para o bem e para o mal, para a construção da sociedade idealizada em 1988 ou para a sua completa destruição.
Daí porque determinar que o juiz deve examinar a norma coletiva atentando para as regras do Código Civil, permitirá extrair de lá elementos que confirmem e reforcem a racionalidade da CLT. E eles existem. A norma do artigo 113 do Código Civil, por exemplo, determina que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”, e será nulo o ajuste quando “não revestir a forma prescrita em lei” (IV, do art. 166). Ora, a “forma prescrita em lei”, para a fixação do grau do adicional de insalubridade, é a perícia. Do mesmo modo, podemos extrair do Código Civil a regra segundo a qual é nulo o negócio jurídico quando “tiver por objetivo fraudar lei imperativa” (Art. 166, VI), hipótese da tentativa de suprimir ou fragilizar o direito a adicional de salário constitucionalmente assegurado. A norma coletiva também será nula se permitir, ainda que de forma indireta, a supressão de regra de proteção ao trabalho, na forma do artigo 9º da CLT e do art. 1.707 do Código Civil (“Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”).
O que percebemos, então, é que os idealizadores da “reforma”, que nada tem de ingênuos, revelam-se desconectados da realidade do ordenamento jurídico e do momento histórico em que vivemos, ao pretenderem, invocando um Código Civil há muito constitucionalizado, descaracterizar a proteção que informa e justifica a existência mesma do Direito do Trabalho. E acreditando (ou fingindo crer) que com isso estarão eliminando o espaço de atuação dos juízes e juízas cuja missão, assumida perante o Estado e a sociedade, é fazer valer a ordem constitucional.
Outra grave tentativa de fragilização do sistema de proteção à saúde dos empregados, buscando impedir o acesso à justiça e a dedução de pretensão acerca das condições insalubres e perigosas de trabalho, está nos artigos 790 e 791 da CLT. A inserção, no art. 790, de um § 3º, dizendo que o benefício da justiça gratuita poderá ser alcançado apenas àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social evidentemente não impede que o Juiz defira tal benefício, tal como inclusive refere o § 4º do mesmo dispositivo, a todo aquele que “comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo”. Na realidade das relações de trabalho judicializadas, essa prova pode ser o próprio TRCT ou qualquer outro documento que demonstre a perda da fonte de subsistência.
Além disso, o conceito legal de assistência judiciária gratuita é aquele da Lei 1.060, que continua em vigor. Portanto, abrange todas as despesas do processo. É também o que estabelece o Código de Processo Civil (CPC), em seu art. 98, § 1º, que expressamente dispõe que tal benefício abarca, inclusive, “os honorários do advogado e do perito”. Logo, uma regra que pretenda estabelecer gravame ao trabalhador beneficiário da assistência judiciária gratuita, contrariando frontalmente a norma geral e aquela contida no CPC, qualificando-se, desse modo, como avessa à noção de proteção que informa e justifica o Direito do Trabalho, não poderá ser aplicada.
Convém aqui pontuar que sigo acreditando, tal como já expressei várias vezes, que a conservação das normas processuais da CLT, em detrimento da aplicação indiscriminada das regras do CPC ao processo do trabalho, é medida de resistência que se impõe. O CPC, editado sob a mesma ideologia de desmanche que informa a Lei 13.467/17, sem dúvida tem a pretensão de assimilar e com isso desconfigurar o processo do trabalho a ponto de legitimar sua extinção. Essa é a razão pela qual precisamos conservar as normas processuais da CLT, em tudo quanto identifiquem e produzam um procedimento simples, oral, célere e efetivo. Isso, porém, não impede que em situações excepcionais, como aquela gerada pela Lei 13.467/17, apliquemos normas flagrantemente mais favoráveis ao trabalhador, quando necessário, ainda que localizadas fora do texto celetista. O que precisa ser preservado não é o conteúdo desta ou daquela regra. O parâmetro de preservação reside justamente na proteção e, por consequência, exclusivamente nas regras (processuais e materiais) que materializam esse princípio, adquirindo assim o status de verdadeira norma jurídica constitucional.
Essa é também a razão pela qual a regra do art. 790-B da CLT, ao referir que a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, “ainda que beneficiária da justiça gratuita”, não poderá ter interpretação diversa daquela já praticada na Justiça do Trabalho, que reconhece ao trabalhador a responsabilidade, mas dispensa o pagamento, exatamente em face do benefício que lhe foi reconhecido. Nada há de ser alterado, portanto, na compreensão quanto à aplicação dos recursos da União, como já ocorre, para permitir a efetiva remuneração do auxiliar do juízo, quando a parte autora está ao abrigo da assistência judiciária gratuita.
A regra inserta no § 1º desse dispositivo, no sentido de que o juízo deverá respeitar o limite máximo estabelecido pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho, ao fixar o valor dos honorários periciais, não poderá evitar a análise da atividade pericial, que poderá, no caso concreto, representar esforço que justifique remuneração superior a tal limite. O Conselho Superior da Justiça do Trabalho edita recomendações, mas não detém competência para fixar valores de remuneração para os auxiliares do juízo. O § 3º do art. 790-B da CLT também estabelece proibição que contraria frontalmente norma contida no CPC. Dispõe que “o juízo não poderá exigir adiantamento de valores para realização de perícias”.
Ora, o art. 95 do CPC, que não está fundado na noção de proteção a quem trabalha, estabelece que a remuneração do perito poderá ser adiantada. Essa regra, se mais adequada à situação concreta, deverá ser utilizada pelo juízo, em detrimento daquela contida na CLT, porque evidentemente mais favorável. O § 3º do art. 95 do CPC diz expressamente que quando o pagamento da perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da justiça, ela poderá ser custeada com recursos alocados no orçamento do ente público e realizada por servidor do Poder Judiciário ou por órgão público conveniado, tal como já ocorre na Justiça do Trabalho. Portanto, a disposição enxertada na CLT, no § 4º do mesmo art. 790B, no sentido de que “somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo”, é de ser afastada, porque incompatível com a própria noção de gratuidade que, aliás, é decorrência lógica da proteção. Aqui há uma questão ainda mais grave. É que o crédito alimentar é insuscetível de renúncia, cessão, compensação ou penhora (art. 9º da CLT e art. 1.707 do Código Civil). O fato de que os créditos trabalhistas são alimentares está consolidado na redação do art. 100 da Constituição, em seu § 1º, segundo o qual tem natureza alimentícia os créditos “decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez”. Logo, não podem ser compensados.
A interpretação proposta evita o esvaziamento da atividade pericial, que tanta importância possui para a prevenção e coibição de práticas perniciosas à preservação da saúde de quem trabalha. Se aplicarmos as regras da Lei 13.467/17, sem o filtro constitucional e legal que aqui se propõe, os trabalhadores ficarão inibidos de denunciar práticas nocivas ou deduzir suas pretensões, em relação a matérias que dependam de exame pericial, pois saberão dos riscos (no mais das vezes economicamente insuportáveis) que essa lei lhes reserva. Com isso, porém, o que estaríamos promovendo seria um retrocesso social impressionante, pois haveria um estímulo a práticas de desrespeito ao direito fundamental a um ambiente minimamente saudável de trabalho, além da vedação concreta do acesso à jurisdição.
No que concerne à jornada e aos descansos assegurados pela Constituição, a “reforma” também revela clara pretensão de estabelecer práticas contrárias à proteção que informa e justifica o Direito do Trabalho e que, por via oblíqua, podem esvaziar o trabalho pericial contábil, se não forem aplicadas a partir de um filtro que se comprometa com a razão de existência de normas trabalhistas. O art. 611A disciplina a possibilidade de que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho disponham sobre: II – banco de horas anual; III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; X – modalidade de registro de jornada de trabalho; XI – troca do dia de feriado; XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho.
Essas hipóteses, todas elas, referem-se a parâmetros de proteção à saúde de quem trabalha e, portanto, condições para que o ambiente de trabalho possa ser considerado saudável. Portanto, deverão, sem exceção, receber disciplina mais favorável do que aquela prevista no ordenamento jurídico, para que possam “prevalecer sobre a lei”. Aliás, é importante ressaltar que essa previsão, de que a norma coletiva deverá prevalecer sobre a lei, precisa ser examinada a partir da aplicação do caput do art. 7º, segundo o qual os direitos dos trabalhadores ali elencados poderão ser complementados por outros que “visem à melhoria de sua condição social”. Nada impede, portanto, que o parâmetro de aplicação siga sendo exatamente aquele preconizado pela ideia de hierarquia dinâmica das fontes formais do Direito do Trabalho, que exige do intérprete a busca pela norma mais favorável a quem trabalha.
A referência à possibilidade de que as partes estipulem “modalidade de registro de jornada”, por sua vez, precisará dialogar com a norma do art. 74 da CLT, que não foi alvo da sanha destruidora da “reforma” e segue dispondo que é obrigação do empregador com mais de dez empregados, manter registro escrito da jornada. Logo, eventual disposição em norma coletiva precisará, necessariamente, ser compatibilizada com esse dever legal, do qual decorre o dever de exibição do respectivo documento em juízo, a fim de que seja possível aferir a sua idoneidade e o pagamento integral do tempo de vida colocado à disposição. A norma do art. 400 do CPC, que impõe sejam admitidos como verdadeiros os fatos que por meio de documento a parte deveria demonstrar, quando tais documentos não são exibidos em juízo, tem agora ainda mais razão para ser aplicada ao processo do trabalho.
É bom que se diga que os argumentos aqui discutidos certamente não salvam a Lei 13.467/17, nem a tornam menos inconstitucional. Também é fácil perceber que todo esse esforço hermenêutico não terá resultado prático se não houver, por parte de todos os intérpretes da legislação trabalhista, o que Konrad Hesse chama de “vontade de Constituição”.
Há uma importância vital, para o Direito do Trabalho, na atuação comprometida com a proteção, por parte de peritos, advogados, sindicalistas, professores e juízes.
O desmanche que se pretende operar, naquilo que a partir de 1988 tentamos implementar como modelo de convívio social, não se resume a essa legislação. Muitas outras propostas de lei ainda tramitam, como a PEC 300 ou o PL 6442, e outras tantas já estão em vigência, como a lei do motorista, do auxiliar autônomo de carga e descarga ou do trabalhador doméstico, para referir apenas alguns exemplos da seara trabalhista.
O trabalho de resistência, resgate e convencimento acerca da racionalidade do Direito do Trabalho deve ser assimilado e partilhado por todos. E faz parte desse trabalho seguir lutando pela revogação da Lei 13.467/17, sobretudo em razão de seu caráter simbólico, de sua pretensão de reduzir significativamente as bases, já tão concretamente insuficientes, de preservação da saúde e da vida de quem trabalha.
Do mesmo modo, é essencial criar fundamentos para que, até que o rumo da constante progressividade da proteção social seja retomado, não tenhamos que amargar um retrocesso estrutural que comprometa as bases de convívio, cidadania e civilidade já conquistadas ao longo de anos de luta, impedindo que os trabalhadores sigam tendo condições mínimas de resistência e organização para a superação do sistema, objetivo que mais do que nunca precisa ser fortalecido.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD. Foto: Reprodução do Youtube
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