Votar foi a forma de opositores e apoiadores do chavismo se posicionarem politicamente no último domingo (16), num dia que foi visto como decisivo para a estabilidade do governo de Nicolás Maduro. Numericamente, os favoráveis à manutenção do governo eleito foram maioria: mais de 11 milhões de venezuelanos participaram da simulação da Assembleia Nacional Constituinte que está marcada para dia 30 deste mês, segundo informações parciais do Comando de Campanha Zamora, que atua com o pleito da Constituinte. O Consejo Nacional Electoral (CNE), que audita as eleições na Venezuela, deve confirmar o resultado na tarde desta segunda (17).
Paralelamente, 7 milhões de pessoas votaram no plebiscito simbólico — e considerado inconstitucional— chamado pela oposição.
Nenhuma das duas votações podem ser consideradas representativas do total da população: em uma divisão que lembra muito a disputa brasileira “coxinhas vs. mortadelas”, os cidadãos participaram somente do processo eleitoral de seu próprio grupo político — e, por isso, 98,4% dos 6.387.854 participantes do plebiscito do grupo da direita rejeitaram a formação da Assembleia Constituinte.
Ao contrário do clima de tensão propagado pelas agências internacionais, as ruas de Caracas estavam muito tranquilas: em um dia quente e muito ensolarado, famílias inteiras passeavam pelo centro da capital com suas crianças — coincidentemente, a data era o terceiro domingo de julho, quando se comemora o dia delas aqui no país.
A reportagem visitou dois espaços distintos: o bairro Savana Grande, onde havia um movimentado ponto de votação do plebiscito; e a região da Praça Carabobo, onde ocorria a simulação da Assembleia Constituinte no Liceo Andrés Bello e, a menos de uma quadra, outro ponto de votação do plebiscito. Todos estavam lotados, mas em nenhum momento foi possível notar hostilidade entre os grupos. Pelo contrário: tanto chavistas quanto opositores abordaram a reportagem para exaltar o quão importante era aquele momento para a democracia venezuelana.
No entanto, o Ministério Público informou que duas pessoas morreram e outras quatro ficaram feridas durante a votação do plebiscito informal no bairro de Cátia, subúrbio do oeste de Caracas. A oposição venezuelana acusa grupos paramilitares governistas, mas ainda não há informações oficiais de quem foram os causadores do ataque.
Confiabilidade dos resultados
Além de ser considerado ilegal, o plebiscito ainda sofre com o ônus da falta de auditoria: uma cédula de identidade ou um passaporte venezuelano dá direito a participar da eleição dentro e fora do país; a votação ocorre em cédulas de papel, que foram destruídas ao final do processo; e o CNE, que é um órgão independente do governo, também não o reconhece como legítimo.
A deputada Tamara Adrián, que foi a primeira trans eleita para a Assembleia Nacional da Venezuela, explicou à reportagem como funcionou o processo, que ela classificou como “ato de resistência contra a ditadura”. Ela, que é do partido de oposição Voluntad Popular e parte da articulação de oposição Mesa de Unidade Democrática (MUD), estava na mesa de votação do bairro de Savana Grande, em Caracas, e embasou:
“Os votos serão contados em cada uma das mesas. As caixas são abertas às quatro da tarde, ou quando o ato terminar. A partir daí, haverá um escrutínio em cada caixa, e todo o material é destruído nesse momento, e o resultado é transmitido para o centro de totalização que foi estabelecido para esse evento”.
Segundo ela, quatro ex-presidentes latino-americanos e 150 pessoas de diferentes organizações da sociedade civil latino-americana que foram testemunhas dessa votação.
Enquanto isso, a simulação da Constituinte contou com tecnologia de QR Code da cédula de identidade venezuelana, que garante que somente um voto por pessoa seja contabilizado, evitando fraudes.
Constituinte
A simulação teve o objetivo de explicar à população como funcionará a votação do dia 30. Normalmente, a votação tem uma foto do candidato na urna eletrônica; mas como são muitos candidatos, o CNE decidiu fazer por número, como os candidatos parlamentares no Brasil.
As pessoas primeiramente se identificam, deixam as digitais em uma tabela e depois digitam o número da identidade, que concentra todas as informações do cidadão acessíveis por QR Code, em uma máquina.
A trabalhadora do serviço penitenciário Noemi Mosqueda argumentou, assim como outros chavistas entrevistados, que Maduro tem insistido em diálogos de paz, mas sem retorno da oposição:
“O presidente é um homem de paz. Chamou o pessoal da oposição para se sentar à mesa, e vieram lideranças internacionais para sentar-se à mesa, mas a oposição não quer fazer um acordo. Não quer fazer nada. Simplesmente, querem que ele saia. E isso se chama golpe de Estado”, avaliou.
O que votou o plebiscito?
A cédula do plebiscito da oposição tinha três perguntas: 1) você repudia ou desconhece a realização da Assembleia Constituinte proposta pelo presidente Nicolás Maduro? 2) Exige que as forças armadas e todos os funcionários públicos obedeçam e defendam a Constituição de 1999 e respaldem a Assembleia Nacional? 3) Aprova que se proceda a renovação dos poderes públicos de acordo com o estabelecido na Constituição e a realização de eleições livre e transparentes, assim como a conformação de um governo de unidade nacional para restituir a ordem constitucional?
Em dezembro do ano passado, deveriam ter ocorrido eleições para governadores, mas o poder eleitoral — que a oposição acusa de servir ao governo — suspendeu a votação por prazo indeterminado.
Já o mandato de Maduro, eleito em 2013, termina somente em 2019. Novas eleições para presidente estão previstas para 2018, conforme a Constituição do país.
Uma curiosidade: mais de um chavista afirmou que, na história da Venezuela, a palavra plebiscito está associada a um processo que ocorreu durante a ditadura do general Marcos Pérez Jiménez: em 1957, ele quis prolongar seu mandato por mais cinco anos, legitimando o desrespeito à Constituição de 1953 a partir do voto popular.
“Aqui, a palavra ditadura não é usada sequer na democracia representativa, que é uma espécie de ditadura disfarçada. O que existe na Constituição é consulta popular, e isso que eles estão fazendo não é uma consulta popular”, rebate Marta Rivera, fiscal da Superintendência para Defesa de Preços Justos.
De Caracas, Venezuela
Camila Rodrigues da Silva para o Brasil de Fato