Este tema é um desafio dos mais oportunos para nós da UBM (União Brasileira de Mulheres), da corrente feminista emancipacionista, que defendemos que gênero e raça se realizam em uma estrutura de classe. E mais que características, gênero e raça são processos históricos pautados em hierarquias, opressões e explorações, que se corporifcam em relações sociais e modos como se é tratada/o em instituições diversas, no mercado de trabalho e pelo Estado. Os governos preocupados com bem-estar social e de orientação social democrata modelam políticas compensatórias, no entanto, se omitem de políticas redistributivas. Consideram a pobreza um grande mal e não as desigualdades sociais e a produção de riquezas para poucos.
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Agora que o governo impostor se apossou do Estado brasileiro, até as políticas compensatórias estão em risco e com a PEC da maldade, que congela investimentos sociais por duas décadas, não vai ter nem como fscalizar a aplicação da lei Maria da Penha, o combate à violência contra as mulheres e os programas por uma educação não sexista. Com a chegada desta onda fundamentalista conservadora que proíbe até de se falar em gênero nas escolas, por considerar o tema uma “ideologia”, isso tudo já era.
Mas o mundo se move e as mulheres se agitam. Voltando ao desafo: sim, existe um novo feminismo que está descendo da favela e, por vielas próprias, enfrentando a ordem capitalista patriarcal. É um feminismo que não equaciona o projeto do feminismo emancipacionista, que tem como frente mais imediata a emancipação política e como horizonte a emancipação humana. Identifca-se com o que vem sendo chamado de “feminismo negro”, advoga a interseccionalidade de raça, classe e gênero, insistindo que sexismo, racismo e situação de classe se realizam por opressões que se combinam. Angela Davis (foto), uma das precursoras deste feminismo, observa, a partir do ambiente de esquerda norte-americano, nos anos 1980:
“As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas a raça também informa a classe. E gênero informa a classe. A gente precisa refetir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.”
Um dos princípios básicos do feminismo é descolar do corpo, da materialidade das condições de vida das mulheres, muitas assujeitadas, dóceis e passivas, outras tendendo a rebeliões. Então primeiro há que se conhecer quem é a mulher da favela, suas condições de vida, aqui também englobando aquela nas áreas urbanas periféricas, os ditos ‘bolsões de pobreza’, e como ela vem se fazendo feminista, ou seja, lutando individual e coletivamente por direitos que desestabilizem hierarquias entre homens e mulheres e reivindicando políticas de Estado contra violências e condições infra-humanas de vida.
Mães públicas
Nas falas de mulheres jovens que afrmam orientação libertária: “Vou pro funk e fco com quem eu quero. O corpo é meu”. Junto dessa consciência moldes comunitários, tanto de ajuda mútua no cuidar dos flhos da vizinha ou de se unirem contra um marido violento, como as ações em movimento social. Vem chamando atenção as associações de mães de jovens mortos pela polícia que se unem para pedir justiça. O caso das mães públicas é um tipo singular de feminismo. Cito as Mães de Acari, que por quase 15 anos gritaram pelos corpos dos flhos, depois da chacina de Acari, em 1990, quando 11 jovens foram sequestrados, assassinados e sumidos por forças policiais, no Rio.
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As Mães de Acari desencadearam um movimento internacional. Hoje são vários os movimentos de mães contra “o terrorismo de Estado”, a violência policial nas periferiase envolve o engajamento com a coisa pública, como a busca do corpo do flho morto e por justiça pelo assassinato legitimado pelo Estado. Sim há um feminismo que vem das favelas que se anuncia, em que os direitos do eu e do nós se acentuam e que há que se apoiar e seguir. Além
do Complexo do Alemão, outros casos são registrados de um feminismo “por mim e por muitos”. Entre outros movimentos contemporâneos, cito as Mães de Maio, as Mães de Copacabana, as Mães do Rio. Mães públicas, mães de muitos.
Por Mary Garcia Castro, socióloga e membro da União Brasileira de Mulheres (UBM). Foto: Geledés
Texto publicado originalmente na revista Mulher de Classe número 6, de Abril de 2017.