Este artigo, busca elucidar a perspectiva de ameaça à qualidade de vida das mulheres trabalhadoras rurais com o nefasto projeto de emenda constitucional – PEC 287/ 2016, que propõe a reformulação da previdência social. Para tanto, buscaremos compreender como esse projeto faz um recorte de gênero na medida que penaliza mais as trabalhadoras, desconsiderando a sua jornada tripla. Por fim, tentaremos compreender melhor o conceito qualidade de vida a partir da contribuição de alguns autores que se debruçaram em suas pesquisas sobre essa temática, e como indicadores são formulados para respaldar determinado conceito.
O sociólogo Jessé de Souza em sua reflexão crítica a respeito do uso direcionado e intencionalizado da ciência e traz a seguinte contribuição: “Os seres humanos são animais que se interpretam. Isso significa que não existe “comportamento automático”, este é sempre influenciado por uma “forma específica de interpretar e compreender a vida” (2015, p.17)
Essa reflexão traz elementos consistentes na compreensão da política que chamaremos de “recorte de gênero,” identificado na proposta de Reforma da Previdência Social – PEC 287/2016. Considerando nossa estrutura de sociedade eminentemente machista e patriarcal, se torna inadmissível quaisquer possibilidade das mulheres conseguirem o mínimo de direitos garantido na constituição. Simone de Beauvoir afirma: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
Proposta de Reforma da Previdência Social e suas consequências para as trabalhadoras rurais
Segundo relator da reforma da Previdência na Câmara Federal, só caberia um olhar diferenciado para a aposentadoria especial às mulheres casadas e justifica: “Se você é uma mulher casada, tem filho, cumpre jornada no seu trabalho e chega em casa tem que cuidar de filho, marido etc, é um fato a ser considerado. A mulher que é solteira, que não tem filho, por que vai ter uma diferença em relação ao homem? ” (2017, Deputado Federal Arthur Maia, relator da comissão especial que analisa a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 287). É com este tipo de pensamento arraigado de machismo que a comissão da reforma da previdência na Câmara Federal segue o debate dos rumos da previdência social brasileira.
Para elucidar as principais propostas de mudanças na previdência que ameaçam a qualidade de vida das mulheres trabalhadoras rurais, como podemos observar:
Conteúdo: |
Como é atualmente: |
Com a Reforma: |
Contribuição dos rurais para o INSS |
– o desconto em carteira dos assalariados rurais; – Já os agricultores contribuem com 2,1% de sua comercialização. |
-Na nova proposta se acrescenta uma nova contribuição individual obrigatória. |
Idade mínima para aposentadoria |
– Homens 60 – Mulheres 55 |
Homens e Mulheres – 65 anos |
Aposentadoria por tempo de contribuição |
– Homens 35 – Mulheres 30 |
Deixará de existir |
Tempo mínimo de contribuição |
15 anos |
25 anos para receber 76% do valor da aposentadoria. Para receber 100% terá que contribuir mais 24 anos, portanto 49 anos. |
Pensões por morte |
-Valor integral com o mesmo reajuste do salário mínimo. -É permitido uma pessoa receber mais de um benefício, como pensão por morte e aposentadoria. |
-50% do valor integral, mais 10% por dependente; -reajuste desvinculado do salário mínimo; Vetada o acúmulo de benefícios. |
Fonte: Quadro elaborado pela autora
Como podemos ver, essa proposta desumana que cai sobre o colo dos trabalhadores e trabalhadoras, afetará diretamente as mulheres trabalhadoras, em especial as trabalhadoras negras e trabalhadoras rurais. Para tanto, buscarei focar nos danos que causará às trabalhadoras do campo. Para estas mulheres que lutam a vida inteira, a proposta de equiparar a idade aos homens, mínima aos 65 anos é um dos pontos mais cruéis da proposta. De acordo com a regra atual elas têm direito ao benefício aos 55 anos de idade, em razão do trabalho penoso debaixo de sol e chuva e de iniciar sua vida laboral ainda muito jovem. Ela acarretará no aumento de 10 anos de trabalho duro na roça para essas mulheres.
Outra proposta impactará negativamente, principalmente as mulheres idosas de renda baixa, será a pensão por morte, como se observa na tabela acima. Em caso da perda de seu companheiro, essas mulheres aposentadas, não terão mais direito de acumular sua aposentadoria com a pensão deixada pelo seu cônjuge. Essas passarão a receber apenas 50% do valor do benefício que o segurado recebe (trabalhadores rurais, em sua maioria é um salário), e desvinculado do salário mínimo, o que concretamente resultará numa esmola mais à frente.
A forma de contribuição dos trabalhadores rurais para a previdência social possui algumas especificidades. Os trabalhadores e trabalhadoras assalariados rurais têm hoje o desconto normal em seu registro na carteira assinada, já os produtores rurais, meeiros, arrendatários rurais ao vender sua produção aplica-se uma alíquota de 2,1% como aponta o Instituto de Estudos Previdenciários, destina-se à Seguridade Social: I – 2% (dois por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; II – 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho. Desde que exerçam suas atividades em regime de economia familiar. Este ponto também sofrerá alteração com a proposta da reforma da PEC 287 onde se propõe acrescentar mais uma contribuição, sendo individual e obrigatória, sem valor definido na proposta.
Segundo a organização de classe dos trabalhadores e trabalhadoras na agricultura do Estado de Minas Gerais – FETAEMG, a realidade da roça mostra que quem trabalha no campo, convive cotidianamente a mercê dos resultados que terão de sua safra, que por vez depende de fatores inerentes a eles, como o fator climático. No entanto, esses trabalhadores e trabalhadoras não podem contar com dinheiro mensalmente, logo, como iram fazer para pagar essa contribuição individual a todos os membros da família? Se considerarmos a probabilidade da família ter que escolher somente um para fazer a contribuição, o resultado recairá no recorte de gênero, mais uma vez. As mulheres trabalhadoras rurais se submetem a esta condição em razão da situação financeira de sua família, o que tornará mais distante a possibilidade do empoderamento dessas mulheres, pois sem a perspectiva de adquirir esse direito, fruto de sua atividade laboral, se voltariam para os afazeres domésticos (cuidar da casa, dos filhos e marido), o que seria um retrocesso de um processo de independência financeira que se vem construindo com muita dificuldade. Simone de Beauvoir (1967) é categórica na afirmativa: “É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que o separa do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta.” Logo, sua relação social será estabelecida pela dependência econômica.
Essas trabalhadoras dão duro a vida inteira na perspectiva de ter o mínimo de qualidade de vida em sua idade mais avançada, através da garantia do direito à aposentadoria rural, para além do recorte de gênero que está sendo imposto a estas mulheres, a reforma também contribuirá na expulsão dessas famílias do campo, pois irá gerar miserabilidade não somente na roça como também, nas cidades que deixará de movimentar as receitas significativas que proviam desse benefício que destinava ao mercadinho, à padaria, ao açougue, ao sacolão, enfim, muitas cidades pequenas irão sofrer as consequências da ausência dessa movimentação econômica.
Qualidade de vida: uma representação social ou um ponto de vista ético da plenitude humana?
A busca na garantia de um direito mínimo de dignidade humana dessas mulheres que vivem na roça invisibilizadas pelo poder público, traz à tona a discussão conceitual do que devemos considerar qualidade de vida. Dialogaremos com alguns autores que se debruçam a elucidar melhor esse conceito, problematizando aspectos sobre a temática e contextualizando a realidade imposta a estas mulheres.
Observa-se que qualidade de vida é um conceito de vários significados e que tais significados têm uma intencionalidade política afirmada e reafirmada por seus indicadores, como aponta Pereira, Teixeira e Santos, dependendo de qual abordagem se pretende pontuar.
A forma como é abordada e os indicadores adotados estão diretamente ligados aos interesses científicos e políticos de cada estudo e área de investigação, bem como das possibilidades de operacionalização e avaliação.” (Pereira, Teixeira, Santos, 2012,p. 241)
Herculano problematiza vários aspectos do conceito qualidade de vida e considera importante os pressupostos de qualidade de vida, e é sempre importante considerar as diversas variáveis desse indivíduo que é coletivo: a cultura; o território; a identidade de grupo; a diversidade, enfim, cabe um olhar mais amplo na construção de indicadores que reflita o mais próximo de determinada realidade que se objetive mensurar ter ou não qualidade de vida. Ele segue:
O que é exatamente qualidade de vida e qual seria o grau de prioridade desta discussão em um país onde milhões de pessoas não têm suas necessidades básicas atendidas? À primeira vista, parece uma discussão secundária, a ser feita apenas depois de cumpridas certas etapas. Mais ou menos como, por exemplo, discutir a qualidade do feijão apenas depois de garantir que haja feijão, ainda que duro ou queimado. (Herculano, 2000, p.03)
Podemos considerar qualidade de vida uma mera representação social como questiona Minayo (2000). Aparentemente SIM. Considerando que nossa identidade se constitui no processo de sociabilidade de cada ser humano, e que essa relação se constitui em nossa atividade humana, essas mulheres que almejam ter qualidade de vida no campo, se deparam com a dura realidade de quem vive na roça. Tal realidade objetiva ao longo de sua vida exercerá em suas subjetividades uma satisfação e contemplação diante da possibilidade de usufruir tal direito, que não teriam se suas condições objetivas fossem diferentes.
Em todos eles, devemos levar em conta que a definição do que é qualidade de vida variará em razão das diferenças individuais, sociais e culturais e pela acessibilidade às inovações tecnológicas. Dado ao efeito-demonstração, a diferença entre o que temos e o que queremos tende a existir sempre. (Herculano, 2000, p.05)
Para Minayo (2000), qualidade de vida é uma característica especificamente humana. Logo se dá fruto da relação na e em sociedade, se fazendo considerar vários aspectos. Tanto individuais quanto coletivos.
Qualidade de vida é uma noção eminentemente humana, que tem sido aproximada ao grau de satisfação encontrado na vida familiar. […] Pressupõe a capacidade de efetuar uma síntese cultural de todos os elementos que determinada sociedade considera seu padrão de conforto e bem-estar. (Minayo, 2000, p. 02)
Nessa perspectiva, qualidade de vida, não é necessariamente ter saúde, porém ter saúde é um pressuposto para qualidade de vida. Cada indivíduo deve ser considerado nas suas várias dimensões: históricas, culturais, econômicas, sociais. Para tanto, seus indicadores devem refletir tais premissas numa orientação que vise a dignidade humana e não a dignidade aparente.
Considerações Finais
Como observamos, diversas são o uso que se atribuem ao conceito de qualidade de vida. Muitos as usufruem com viés de sucesso administrativo como aponta Pereira,Teixeira e Santos (2012) outros trazem características mais reflexivas e profundas como aponta Minayo (2000) ainda tem os que creditam qualidade de vida somente a uma vida recheada de satisfação como questiona Herculano (2000). Concordamos com Pereira, Teixeira e Santos (2012) que o uso mais adequado ao conceito de qualidade de vida é o que fora desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (1998, OMS), que considera:
Qualidade de vida reflete a percepção dos indivíduos de que suas necessidades estão sendo satisfeitas ou, ainda, que lhes estão sendo negadas oportunidades de alcançar a felicidade e auto-realização, com independência de seu estado de saúde físico ou das condições sociais e econômicas. (Pereira, Teixeira e Santos, 2012, p.245)
Se considerarmos o que Minayo (2000) considera como “patamar mínimo e universal para se falar em qualidade de vida diz respeito à satisfação das necessidades mais elementares da vida humana: alimentação, acesso a água potável, habitação, trabalho, educação, saúde e lazer” (p.4) Temos nessa proposta de Reforma a eminencia concreta de risco de perda do mínimo de qualidade de vida que essas trabalhadoras poderiam ter na roça. Para tanto, também se faz necessário refletir sobre a importância do debate na construção dos indicadores que irão determinar a existência ou não de qualidade de vida.
Precisamos dialogar com as mulheres, trazer à tona as consequências que trará essa proposta de reforma em nossas vidas.Caso contrário, veremos o regresso das conquistas ínfimas de desenvolvimento e dos direitos humanos e sociais como aponta Minayo.
Kátia Gomes Gaivoto é secretária-geral adjunta da CTB nacional e diretora do Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho (CES)
*Título original “Qualidade de vida das trabalhadoras rurais ameaçada com a PEC 287”
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