Aleppo: questione antes de compartilhar

O fenômeno da proliferação das notícias falsas alcançou um novo pico na semana passada, com a retomada da metade leste de Aleppo pelo exército sírio, quatro anos após ser ocupada por grupos opositores. Dias antes, mas, sobretudo, após o anúncio do controle total da cidade pelo governo, uma avalanche de notícias dramáticas ganhou com força as redes.

A maioria dava conta de que os soldados leais ao líder sírio, Bashar Al-Assad, estariam assassinando civis a esmo e exercendo tamanho pavor entre as mulheres que algumas escolheram se matar em vez de serem capturadas. Crianças em orfanatos imploravam por ajuda, enquanto habitantes de Aleppo emitiam suas “últimas”mensagens antes da morte certa.

O que seria um cenário de extremo terror foi rapidamente desenhado pelos principais centros de informação hegemônicos e disseminado nas redes sociais. Títulos horripilantes, fotos de crianças apavoradas e depoimentos “finais” dos que supostamente estavam em Aleppo ocuparam, em poucas horas, as contas pessoais de milhões de pessoas ao redor do mundo.

Frente ao que parecia ser uma tragédia, noticiada exaustivamente pelos principais veículos de comunicação, era preciso se manifestar. Com isso, um número impressionante de notícias não verificadas e tendenciosas se espalhou e uma narrativa binária e superficial ganhou destaque. Com fontes bastante questionáveis.

Uma das notícias mais compartilhadas informava que mulheres estariam escolhendo entre ser estupradas ou se suicidar. Apesar de a maioria dos títulos de jornais cravar o fato como certo, não havia qualquer depoimento ou prova, mesmo que circunstancial. A fonte real, Abdullah Othman, pertence à Frente da Conquista do Levante, um antigo braço sírio da Al Qaeda – grupo terrorista responsável pelo 11 de Setembro de 2001 e outras dezenas de atentados ao redor do mundo. Não é difícil imaginar que é de total interesse dele semear informações falsas sobre o governo sírio – seu inimigo direto.

Outro grupo terrorista atuante na Síria é o Estado Islâmico, que tinha presença em Alepo e a mantém em outras regiões do país. O Daesh, como é chamado no mundo árabe, pretende estabelecer um califado nas regiões de maioria sunita.

O uso de notícias falsas para pautar o sentimento global sobre um fato não é novo. Sobre a Líbia, em 2011, a própria representante dos EUA na ONU, Susan Rice, disse que o líder Muamar Kadafi distribuía Viagra entre suas tropas para promover estupros em massa. Os recentes vazamentos de e-mails da ex-chefe do Departamento de Estado Hillary Clinton mostraram que se tratava de um rumor alimentado por um assessor seu, Sidney Blumenthal.

As armas de destruição em massa que Saddam Hussein foi acusado de ter no Iraque justificaram a invasão do país por George W. Bush – elas, porém, jamais foram encontradas. Anos antes, uma garota do Kuwait deu um tocante depoimento em que acusou o exército iraquiano de, durante a invasão ao país em 1990, tirar centenas de bebês de incubadoras e deixá-los à morte. Novamente, se descobriu depois que se tratava de uma mentira.

Apesar de o uso de notícias falsas para criar tendências e justificar ações não ser recente, foi com o crescimento das redes sociais que esse recurso ganhou novos contornos e mais volume. Um rumor qualquer, que antes demoraria meses para ser absorvido pelo público, hoje se transforma em verdade em apenas algumas horas. Como quando lançamos uma pequena pedra num lago, as ondas formadas continuam se multiplicando, ganhando força e tamanho. Hoje, mesmo que se descubra que a notícia que iniciou esse movimento é falsa, se torna praticamente impossível acessar todos aqueles impactados e reverter a primeira impressão.

Confiando justamente nesta dinâmica, os interesses que controlam grupos terroristas na Síria – cuja missão é a de derrubar Assad – orquestraram um conjunto de boatos e depoimentos duvidosos, prontamente disseminado pelos maiores emissores de informação mundiais. Esse trabalho também é facilitado pelos cinco anos de propaganda negativa direcionada unicamente contra o líder sírio, acusado de violações aos direitos humanos antes e depois do início da guerra.

No entanto, o DNA das forças opositoras, seus atos e seus financiadores pouco aparecem nas televisões, jornais e sites, gerando um quadro de “bons combatentes opositores” versus os “malvados soldados governistas”.

Um outro lado

Em julho deste ano, a Anistia Internacional (AI) divulgou um relatório onde alertava para “abduções, torturas e assassinatos sumários” de civis sírios por grupos armados no leste de Aleppo e Idleb. No documento, a organização de direitos humanos demonstra preocupação com o grau de violência exercido nessas áreas controladas pelos opositores, que, “aparentemente, são apoiados por governos como o do Catar, Arábia Saudita, Turquia e EUA”.

Em depoimento à Anistia Internacional, um garoto de 17 anos capturado pelo grupo terrorista Jabhat al-Nusra conta que conheceu cinco mulheres que estariam sendo acusadas de adultério e seriam “somente perdoadas por meio da morte”. Ele depois assistiu um vídeo mostrando combatentes assassinando uma delas em público. Outro entrevistado conta que havia ficado feliz por não estar mais sob controle de Assad, mas que “agora a situação é pior”.

Assim como este levantamento feito pela AI, outras organizações e jornalistas alertaram durante anos para o que estava acontecendo nas áreas controladas pelos terroristas. Histórias, inclusive, muito parecidas com as que atualmente estão sendo compartilhadas como sendo protagonizadas por soldados leais a Assad.

De acordo com o Acnur, a agência da ONU para refugiados, ao redor de 40 mil sírios chegaram à parte oeste de Aleppo nos últimos dias com relatos de fome, violência e terror. “Estávamos famintos, precisávamos fugir”, contou um menino aos voluntários. A situação teria se agravado muito nos últimos cinco meses, pois os grupos opositores impediram a chegada de ajuda humanitária ao leste. O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, admitiu em 10 de dezembro que a oposição síria ameaçou pessoas e bloquearam ajuda humanitária.

Jornalistas independentes, como a norte-americana Vanessa Beeley, reportaram os momentos anteriores e posteriores à retomada total de Aleppo e suas informações também contrastavam com aquelas propagadas pela cobertura hegemônica ocidental. Em sua conta no Facebook, ela publicou vídeos e fotos da assistência dada aos que escaparam das áreas controladas por terroristas. O que vemos são crianças recebendo comida e bebidas quentes, em filas organizadas.
Outra voz dissonante foi a do experiente repórter britânico Robert Fisk, especialista em Oriente Médio, que publicou há três dias um artigo intitulado “Há mais de uma verdade para contar a dramática história de Aleppo”. Nele, o jornalista do The Independent explicita como os mesmos grupos que são alvo da “Guerra ao Terror”, capitaneada por Washington, controlavam o leste de Aleppo.

Também colaborador do Independent, Patrick Cockburn, veterano correspondente no Oriente Médio, ressaltou a profunda diferença de tratamento midiático entre os acontecimentos no Leste de Aleppo e em Mosul, Iraque – cidades que compartilham praticamente a mesma realidade. Enquanto que, na primeira, os grupos opositores estariam protegendo seus cidadãos da ameaça de Assad e de Moscou, na segunda o Estado Islâmico estaria usando iraquianos como escudo humano e evitando fugas.

Financiamento e interesses

Utilizando-se dessa lógica binária, na qual o mundo é pintado em preto ou branco, a propaganda das forças hegemônicas ganha corações e, consequentemente, apoio em massa. Com a opinião pública indignada e exigindo justiça, se torna mais fácil aprovar resoluções para mais ataques militares – mesmo que a intenção não seja a de trazer paz à Síria.

Por que então o Congresso dos EUA aprovou neste mês uma emenda dentro do Ato de Autorização da Defesa Nacional (orçamento para a Defesa) que deixa aberta a possibilidade de a oposição síria ter acesso a mísseis capazes de derrubar aviões civis (os chamados “MANPADS”)? Dar armas de alta potência a reconhecidos terroristas, colocando a segurança de toda a população mundial em risco, não parece ser um ato pacifista.

Ao se investigar quem financia esses grupos, os interesses em torno da queda de Assad começam a ficar mais claros. Como até mesmo a Anistia Internacional reportou em julho, EUA, Catar, Arábia Saudita e Turquia são quem mais injetam dinheiro e armas na insurgência. E não se trata de um segredo.

Em depoimentos ao Financial Times, líderes “rebeldes” relataram receber salários para lutar na Síria. No total, diz a matéria de 2013, mais de 3 bilhões de dólares teriam saído de cofres cataris diretamente para grupos opositores sírios. Foi em 2013 também quando o presidente dos EUA, Barack Obama, começou a secretamente armar a dissidência síria e a financiá-la, contando com dinheiro saudita, conforme detalha esta reportagem de janeiro de 2016 do The New York Times.

Também se investiu intensamente na construção de instituições dedicadas a pautar a imprensa com informações simpáticas aos opositores. Uma delas é a Revolutionary Forces of Syria, mantida pelo governo britânico e sediada na Turquia. Em matéria publicada pela jornalista norte-americana Rania Khalek, ela revela uma troca de e-mails de um repórter sondado pela RFS, que chegou a lhe oferecer um salário de 17 mil dólares. “Eu conversaria com pessoas da oposição na Síria e escreveria matérias baseadas nas declarações de ativistas a filiados aos grupos armados em lugares como Aleppo”, relatou o profissional, que pediu anonimato.

De acordo com Khalek, campanhas midiáticas promovidas pelo RFS têm grande impacto ao redor do mundo. Seus vídeos e hashtags, a maioria com um apelo moderno, são rapidamente disseminados no Ocidente, como a #AvengersInAleppo (Avengers em Aleppo), que publicou fotos de crianças pedindo para que super-heróis os salvassem.

É também de responsabilidade do RFS propagandear ações dos “Capacetes Brancos”, grupo de voluntários que promove salvamentos na Síria e que chegou a ganhar uma série exclusiva no Netflix. No entanto, conforme detalha nesta reportagem o jornalista Max Blumenthal, ao contrário de heróis anônimos, esses indivíduos pertencem a grupos terroristas e são financiados para pressionar pela agenda de “mudança de regime” na Síria. Eles teriam chegado a receber 23 milhões de dólares da Usaid, agência norte-americana para o desenvolvimento internacional.

Se pelo lado dos EUA e seus aliados a justificativa para a guerra na Síria é a de libertar esse povo de Assad, outras vozes apontam interesses geopolíticos e econômicos (sobretudo energéticos). O que teria sido um levante popular espontâneo pedindo reformas e liberdade em 2011 logo se transformou em um conflito entre as forças do Estado sírio e a dissidência, desde o começo abastecida com armamento e apoio logístico. Telegramas vazados pelo Wikileaks detalham como Washington forçou agressivamente a agenda de mudança de governo desde 2006.

Apesar de apoiar o governo de Assad desde o começo da guerra, a Rússia só passou a atuar com envolvimento militar direto no segundo semestre de 2015 – fato que transformou radicalmente o cenário e permitiu avanços das tropas sírias. Ao mesmo tempo, esquentava a disputa entre Washington e Moscou, no que atualmente analistas afirmam ser uma “segunda Guerra Fria”.

Fake News

No caso sírio, apesar de se observar um panorama em que a verdade parece ser o que menos importa, a ainda relativa credibilidade e a extensa malha de alcance de grandes conglomerados midiáticos contribuem para que o consumidor de notícias comum compartilhe em suas redes a informação disseminada por eles. Mas, conforme as eleições norte-americanas revelaram, a proliferação de notícias falsas muitas vezes tem como emissor páginas fantasmas ou claramente tendenciosas. Assim que a história cai nas redes, é freneticamente distribuída. E o dano já está feito.

Mês passado, diretores de Facebook e Google anunciaram que irão banir sites que compartilhem notícias falsas. Em entrevista recente desde Moscou, onde está exilado, Edward Snowden problematizou o tema das notícias falsas, mas ressaltou que a solução não passa pela eleição de um juiz, mas a participação ativa dos cidadãos. A resposta a esse discurso, segundo o ex-funcionário da NSA, não é a censura: “Temos de exercitar e espalhar a ideia de que o pensamento crítico hoje importa mais do que nunca, frente ao fato de que as mentiras parecem estar ficando muito populares”.

Na resposta de Snowden também está incluído um alerta sobre como o combate às notícias falsas pode esconder uma caça aos meios que não compartilham da ideologia mundial dominante. A acusação de que meios russos influenciaram o resultado das eleições nos EUA a partir da disseminação de notícias falsas vem ganhando cada vez mais força. Em novembro, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução contra as notícias falsas, mencionando, em particular, o canal RT, a agência Sputnik, a fundação Russky Mir e a agência federal Rossotrudnichestvo. Todos russos.

Como diversos jornalistas e organizações demonstraram no caso sírio, a grande maioria das notícias falsas ou tendenciosas não foi publicada por blogs obscuros, mas pelos principais veículos de informação ocidentais, com apoio de agências e logística oficiais. O Google derrubaria o site do NYT caso fosse verificada a publicação de uma mentira? Diria que não.

Mais do que um momento de necessária autocrítica da classe jornalística e da responsabilidade em torno do nosso trabalho, está a necessidade de que os receptores dessas informações, a população que habita o ambiente virtual, questione os conteúdos, busque vozes dissonantes e pense duas vezes antes de clicar em “compartilhar”. Ali pode existir uma propaganda, não um fato.

Por Marina Terra, no Opera Mundi
Foto: CC / CHRISTIAAN TRIEBERT / WIKIMEDIA

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