Nunca sei se o que vai indo pro “papel” vai também parar na coluna, às vezes não, mas ninguém fica sabendo
“Quem sabe sabe que não sabe, porque sabe que ninguém sabe. E quem não sabe não sabe, porque ninguém sabe”, já dizia o filósofo negro Itamar Assumpção. Aqui, de não sei quantos mil pés, desfrutando da vista aérea de um dia oco, escrevo. Nunca sei se o que vai indo pro “papel” vai também parar na coluna, às vezes não, mas ninguém fica sabendo. Hoje estou mais confessional. Tive um momento meio panicado com aviões no passado. Agora, graças a uma boa terapia e passadas muitas nuvens, turbulências leves não me causam nada, e as fortes, claro, não me interessam, mas demoram a me tirar do sério. Devo muito aos aviões. Tantos lugares e tantas experiências sensacionais. Paisagens, shows, pessoas. Tudo cabe no meu avião. E guardo momentos só pras aeronaves. Vez em quando termino uma leitura com tanta vida que tenho vontade de me levantar e dar uma corrida pelos corredores, ajudar no serviço de bordo, incluir as palavras que acabo de ler nos cardápios de biscoitos venenosos, como um antídoto. Comam conservantes e, em seguida, leiam isso aqui. Um Vinicius de Moraes, que fala de amor à Pátria, tipo #foranáusea.
Me entedia uma postagem cheia de hashtags depois do que já foi dito, para mastigar o que acabamos de ler. Deve ser porque nosso forte por aqui não é exatamente a interpretação de texto, não é mesmo? E o receio de não sermos compreendidos muitas vezes nos faz incompreensíveis. Por exemplo, como interpretar o prefeito-relax, Eduardo Paes, na entrega de uma chave de imóvel a uma mulher humilde e negra, dizer, “vai trepar muito no quartinho, hein?”. Se a frase fosse pro Enem, para que fosse interpretada pelos candidatos, causaria muita polêmica, certamente. Talvez tivéssemos também boas surpresas. Como eu interpreto? Eu, de cara, grifaria os vocábulos trepar e quartinho. No verbo, a ação sempre perversa de que mulher negra é pra isso, no substantivo, toda carga social que conhecemos bem. Qualquer semelhança com a senzala da casa não é mera coincidência. Por que um prefeito, ao entregar as chaves de um imóvel, que certamente foi desejado e batalhado ardentemente por essa mulher, não lhe disse: “Seja muito feliz aqui”, por exemplo? Há muitas maneiras de tentar ser feliz. Pra todos nós. Na triste cena, ele ainda sai e diz para uma turma que assistia à sua performance, “vai rolar muito canguru perneta!”. Isso é engraçado? Pra quem? Tá na hora de não ter graça nada disso. Independentemente do politicamente correto, que tanta gente acha que nos encaretou. Precisamos com urgência repensar nosso riso, nosso escárnio. Pensar a quem eles atingem e como isso afeta a vida de quem recebe a carga, bem como a de quem a envia sem pensar. No caso de um prefeito, a coisa tem menos graça ainda, penso eu.
Deixando Salvador, cidade que adoro e que faz parte da minha história, pois me orgulho do sangue baiano, vindo de meu pai. Lá participei de uma conversa linda, com Olívia Santana, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, e a jornalista e apresentadora Tia Má. Foi uma noite e tanto. Mulheres fortes, atentas, feministas negras e ativistas em suas áreas. Paramos pra conversar sobre a vida, os caminhos trilhados e nossa condição de mulheres que querem ver e transformar. Somos muitas, e havia homens bacanas na plateia. Precisamos do cinto de segurança. Precisamos ter onde segurar. Quando tudo fica no ar, à deriva, só temos quem somos, como pensamos, como agimos e onde encontrar cúmplices na jornada. Encontrei alguns preciosos ontem, foi um alento nestes tempos.
De manhã, a notícia terrível de que um menino de 10 anos foi assassinado por dois colegas, por conta de uma briga em sala de aula. Um desalento. Precisamos cuidar das crianças urgentemente, faz tempo. Só nelas, a meu ver, reside a chance de mudança real nas atitudes tão cotidianas de racismo, violência, machismo, misoginia, homofobia e assim por diante. Se pensarmos que uma criança de 10 anos já não tem mais jeito, temos que pensar também por onde temos andado, não é? Porque talvez sejamos nós que já não temos mais jeito.
Outro desafio de interpretação de texto! Por que os ilibados senadores que disseram o “não” final a 54 milhões de pessoas, na pessoa de Dilma Rousseff, decidiram manter os direitos da ex, se, a rigor, isso não estava previsto? Quem dá mais, quem dá mais? A senhora aí pode falar: Porque eles são gente boa no fundo? Você aí, o garotão de boné, fala: ah, porque ficaram meio culpados? Você, de verde e amarelo: porque é um final menos infeliz? O senhor aí, com esse livro na mão, por favor: porque são homens de Deus!
É, pra mim, foi em causa própria! Não, não é Casa própria! #pensandoapenasnoprópriofuturo #fabricandoantecedentesconvenientes
Zélia Duncan é cantora e compositora.
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