De início, peço desculpas aos leitores porque este não vai ser um texto elegante porque é necessário dar o nome correto aos fenômenos que ocorrem no mundo do trabalho. O poder da linguagem é mesmo surpreendente e faz com que exploradores e explorados adotem o mesmo discurso da alienação e dominação em tom uníssono. Assim é que grandes corporações, empresas transnacionais e mesmo empregadores de pequeno porte vêm adotando já há alguns anos em sua linguagem o termo “colaborador” para designar seus empregados de mais baixo escalão: ajudantes gerais, de produção, auxiliares de manutenção ou de limpeza etc. Surgiu mais recentemente o termo “ponto focal” para designar os chefes imediatos, ou seja, aqueles que ficam com o “chicote na mão”, cobrando metas inatingíveis impostas de cima para baixo. Só que esses “feitores modernos” também são pressionados pela empresa, sob pena de serem punidos numa espécie de assédio horizontal-vertical.
Então, num passe de mágica ou de retórica bem engendrada, trabalhadores se tornam “colaboradores” e “chefe” se torna “ponto focal” porque todos devem colaborar com a empresa e, inconscientemente, passam a crer que a empresa que os explora e deles retira todo o seu lucro esteja muito preocupada com a qualidade de vida e o bem-estar de seus “colaboradores”. Freud explica.
Mas ao invés de Freud, vamos citar Marx. Para o filósofo alemão, esse fenômeno se chama alienação, onde o trabalhador, desenvolvendo a sua atividade criadora em condições que lhe são impostas pela divisão da sociedade em classes, é transformado num mero meio para a produção da riqueza particular simbolizada pelo dinheiro. Em lugar do produto ser criado livremente pelo produtor (trabalhador), é o produtor que fica subordinado às exigências do mercado capitalista onde o produto vai ser vendido provocando um fenômeno de desumanização ou estranhamento. É assim que o trabalhador passa a desconhecer todas as suas potencialidades criadoras como ser humano e deixa de se desenvolver em sua plenitude[1]. A alienação afeta o trabalhador em sua maneira de pensar, em seu modo de compreender as coisas e o próprio sistema em que está inserido e, assim, alguns indivíduos detentores dos meios de produção capitalista criam instituições, símbolos e expressões que parecem ganhar vida própria e os impõem à toda a sociedade alegando que são da conveniência universal, tornando-se verdades absolutas.
Clóvis de Barros Filho e Gustavo Fernandes Dainezi ilustram bem essa situação: “Quando alguém lhe propõe um workshop na praia, o que está dizendo é: ‘Olha, meu amigo, nós vamos lá fazer cobranças, colocar metas para você cumprir, aumentar a sua carga de trabalho, aumentar sua preocupação e tudo mais, mas não se preocupe, no final, você faz uma tirolesa e esquece um pouco a parte ruim da vida, porque esta nós não vamos mudar nem um pouquinho’”[2].
E arrebatam: “Estamos todos, no final das contas, sob as asas do capital, e, quando legitimamos todas as estratégias de dominação e alienação, somos o pior dos seres para nós mesmos, porque aceitamos o enrabamento e achamos que o enrabamento faz parte da natureza das coisas, que o mundo é assim, uns fodem e os outros são fodidos. E ainda nos alegramos com o curativo existencial da qualidade de vida, e achamos que a empresa que nos explora é muito preocupada conosco, quando, na verdade, tudo isso não passa de distrações baratas para que não se questione e nem se perceba a injustiça de todo o resto de sua convivência”[3].
Como precavi no início, esse não seria um texto polido, elegante. Entretanto, mais deselegante do que este artigo é a situação atual da classe trabalhadora que convive diariamente com a estafa, o estresse, cobranças por metas inatingíveis, horas extras habituais, banco de horas perversos, salários indignos, desgaste, sobrecarga, locais de trabalho insalubres ou perigosos, assédio moral, acidentes e doenças ocupacionais… e ainda assim é chamada de “colaboradora” no discurso capcioso adotado pelo capital (empresariado).
Na língua portuguesa, “colaborar” significa voluntariamente trabalhar para o bem comum visando um mesmo objetivo[4], o que não é o caso. Por isso, a linguagem ocupa um papel fundamental no processo de conservação das relações de produção como elas são; embora se disfarce de neutralidade. Ora, o operário não tem escolha já que é forçado a vender a sua força de trabalho ao capitalista para poder sobreviver no sistema econômico atualmente vigente. Mais correto atualmente seria chamar o trabalhador de “explorado” ou “precarizado”, afinal, considere que o detentor do capital é o explorador do seu trabalho e dele retira a mais-valia a fim de buscar o lucro a qualquer custo, inclusive, sob a constante ameaça de “flexibilizar” (leia-se: precarizar) a legislação trabalhista para aumentar ainda mais a lucratividade sob o falacioso discurso da “crise econômica” ou da “falta de competitividade”.
Então, trabalhador, entenda bem: você não é “colaborador”, você é o “pato”, somos todos “patos”!
Átila da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Processual Civil. Pós-graduando em Sociologia. Foi juiz do trabalho na 23ª Região, procurador federal e delegado de polícia civil. Publicou os livros: Execução Civil – Aspectos Destacados (Curitiba: Juruá, 2007) e Crise Econômica, Flexibilização e O Valor Social Do Trabalho (São Paulo: LTr, 2015). Autor de artigos jurídicos em publicações especializadas. Professor na pós-graduação na UNIVATES em Lajeado/RS e na FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul.
[1] Konder, Leandro. Marx: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 3ª ed., 2015, p. 39.
[2] Devaneios sobre a atualidade do Capital. CDG Editora, 1ª ed., 2014, p. 24.
[3] Ob. cit., p. 25.
[4] http://www.dicio.com.br/colaborar/.
Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor