Essa madrugada, para muitas pessoas no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair da União Europeia. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres, Oxford e Cambridge são ilhas.
Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora das ilhas.
Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia – que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.
Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares – nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional – como sempre é – baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.
Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a vida fodida da classe trabalhadora que perde seu estado de bem estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou. Tudo acabou.
Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, certo?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe.
Como diz o escritor britânico Owen Jones, romantizar o trabalhador de uma mina de ferro tampouco é o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” – gritava uma trabalhadora de uma universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.
Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política. “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” – mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.
Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade – o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.
Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o Partido Trabalhisa – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora.
Uma massa – como diria o historiador E. P. Thompson – cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam – cegamente – pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.
Como sempre, são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas, ameaçado de perder o posto. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro. Projeta-se no mito do sucesso dos empreendedores ao mesmo tempo em que rejeita o imigrante.
Por fim, uma questão que não quer calar: Quem é de esquerda e acredita na democracia teve de se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos do referendo. Eu tenho ouvido muitos políticos que admiro se perguntando “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”.
Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então, não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer?
Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos trabalhistas dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.
Esse tipo de questão abre diversas frentes de discussão que se referem ao próprio Brasil, sua democracia representativa e a possibilidade de chamar eleições novamente. Afinal, o povo é soberano ou não é? É um momento para pensar o que entendemos por democracia e, finalmente, olharmos seriamente para os anseios e as penúrias das classes trabalhadoras sacrificadas no Reino Unido, no Brasil e no mundo.
Rosana PinheiroMachado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford. Texto originalmente publicado na Carta Capital
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