Participei recentemente de um evento na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), para refletir e debater sobre o cenário econômico futuro, visando a subsidiar seu planejamento estratégico. Sistematizo alguns pontos abordados.
A produção agrícola estruturou-se no Brasil como um setor econômico estratégico, decorrente da dimensão territorial para o plantio e criação animal, da qualidade do solo e do clima, dos investimentos e desenvolvimento em termos de ciência e tecnologia, respondendo a uma demanda crescente, interna e externa, por alimentos e insumos industriais. A produção agrícola e pecuária em grande escala estruturou-se com tecnologia de ponta, colocando o país como um dos maiores responsáveis pela segurança alimentar da população mundial.
Essa presença se fez com muitas e profundas transformações nas relações sociais de produção no meio rural brasileiro. A ampliação da capacidade produtiva, com expansão da área utilizada e incremento tecnológico, em uma sociedade que se urbanizou rapidamente, integrou de maneira acelerada a agricultura com os demais setores, tornando cada vez mais tênue a linha que a separa da indústria, comércio ou serviços. Os chamados complexos industriais integram cadeias produtivas de alta agregação de valor, fazendo da escolha do que produzir um complexo processo decisório.
A agricultura familiar, que produz em módulos bem menores do que a agricultura extensiva, mas que ocupa 70% dos quatro milhões de trabalhadores do setor agrícola, experimenta mudanças profundas e enfrenta desafios. Como atividade econômica que responde por grande parte da oferta de alimentos nas cidades, está desafiada a superar a produção para o autoconsumo, para atender a uma demanda crescente, a preços que remunerem adequadamente o produtor, capitalizando-o para investir na produção e, ao mesmo tempo, propiciando oferta de alimento barato e de qualidade na mesa do trabalhador urbano.
Planejar a organização desses trabalhadores da agricultura familiar é tomá-los como produtores, proprietários ou arrendatários que, com sua força de trabalho e o uso de máquinas e equipamentos, arriscam-se na produção de alimentos. O direcionamento para uma produção agroecológica de qualidade precisa ser realizado, respondendo ao desafio de promover aumento na quantidade ofertada, para garantir o abastecimento. O incremento da produtividade é elemento chave, o que implica desenvolver um tipo de conhecimento da ciência em termos tecnológicos, biológicos, químicos, genéticos, entre outros, orientado para uma produção agroecológica com escala, que preserve a qualidade do solo e o ambiente e produza alimentos saudáveis.
As diversas formas de produção, organizadas de maneira cooperada, compartilhando equipamentos, investimentos, pesquisa e conhecimento entre milhares de produtores, devem avançar para fazer, cada vez mais, da agricultura familiar uma grande organização, em termos de produção econômica, que domine e difunda tecnologia, oferecendo produtos em quantidade e com qualidade.
O incremento da produtividade na produção agrícola brasileira, de um lado, e a ampliação e espraiamento no território dos núcleos urbanos, de outro, estendeu para o campo uma série de serviços (energia, transporte, internet, escola, saúde, entre outros), promovendo mudanças substanciais na vida e organização das áreas rurais. A presença da indústria, colada à atividade agrícola, reorganiza as relações sociais de produção. Cerca de um terço da população rural, composta especialmente por jovens e mulheres, que vive em unidades da agricultura familiar, está ocupada em atividades não agrícolas, na indústria ou em serviços urbanos. Também aumenta a população que vive em núcleos urbanos e produz nas unidades familiares rurais.
As unidades rurais, principalmente da agricultura familiar, diversificam suas possibilidades produtivas e passam a desenvolver novas atividades, como lazer e turismo rural. Essas atividades (hospedagem, convívio com atividades produtivas, acesso a lugares turísticos etc) crescem no país, com vocação de preservação ambiental. Áreas mais próximas aos centros urbanos passam a ser local de moradia. O espaço rural também passa a ser sede de empresas. Há um movimento inverso daquele observado nos anos 60/70: moradores urbanos se deslocam para residir e produzir no meio rural brasileiro.
Essas mudanças, entre tantas outras, ocorrem simultaneamente ao processo de redução da população rural, que caiu de 25% (1991) para 16% (2010) da população brasileira. Os quatro milhões de trabalhadores rurais representam menos de 8% da população trabalhadora do país. Há, ainda, um grande contingente de trabalhadores rurais sem terra, lutando pela reforma agrária. Por outro lado, há também aqueles que já acessaram a terra e que demandam políticas agrícolas (crédito, seguro, assistência, comercialização, armazenagem, transporte, supressão de intermediários etc.), para que suas unidades produtivas sejam economicamente viáveis.
Vislumbra-se uma grande luta pela frente, que exigirá da CONTAG uma capacidade de organizar-se, priorizando o produtor familiar, para atender as demandas dessa força de trabalho, que insiste em empreender e produzir, com os riscos e desafios que tem que enfrentar em uma economia capitalista. As políticas públicas precisam ser fortalecidas e aperfeiçoadas, para que, cada vez mais, a agricultura familiar se posicione como parte essencial de um setor econômico estratégico para o país e o mundo.
Clemente Ganz Lúcio é diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social