Comecemos pelo incontroverso: o terrorismo não tem justificativa nem ética, nem moral, nem religiosa, nem política, nem tática, nem estratégica. É um ato de lesa-humanidade, primitivo e brutal que nega a civilização e a própria evolução humana. A medida de sua ignomínia independe de suas vítimas, se europeus ou norte-americanos ou judeus, se asiáticos ou árabes ou africanos ou persas ou turcos, ou palestinos, ou cristãos ou muçulmanos ou hindus. Se brasileiros. Onde quer que ocorra um só ato terrorista, a vítima é a humanidade como coletivo.
Por isso suas vítimas precisam ser igualmente pranteadas. Se o justo clamor provocado pela barbárie que se abateu sobre os parisienses – decretada uma vez mais pelo chamado Estado Islâmico –, se levantasse ante todos os atos de terrorismo, a começar pela violência inominável e covarde do terrorismo de Estado das grandes potências ocidentais, talvez o mundo conhecesse menos horror e nós hoje não nos sentíssemos tão desamparados.
A indignação mediática que nos querem impor, porém, é seletiva, e contra esse viés precisamos reagir, pois só assim emprestaremos força moral à nossa reação.
Querem justamente que choremos quando as explosões são em Paris (ou Nova Iorque, ou Madri) e atingem pessoas com as quais nos identificamos cultural e fisicamente, mas dessa mesma violência pouco nos falam quando explode em Cabul, ou quando suas vítimas são negros, ou árabes, ou asiáticos ou palestinos ou persas. Nesses casos a violência é banalizada porque não nos ameaça (ora, somos ocidentais e brancos!), assim como não nos atinge a violência urbana quando restrita às periferias de nossas metrópoles, fazendo vítimas predominante entre negros e pardos e pobres, sejam marginais, sejam civis indefesos, sejam policiais.
Na quinta-feira 12, na véspera dos atentados parisienses, cerca de 60 pessoas perderam a vida e os feridos contam-se em mais de duas centenas, vítimas de atentados levados a cabo pelos mesmos facínoras do EI. Mas desta feita a explosão do irracionalismo se deu no Líbano, e suas vítimas eram árabes, na maioria membros do Hezbollah, adversário de Israel, aliado xiita do Irã mas inimigo de morte do EI.
Na Turquia, dias antes, o EI matara 100 pessoas na Estação Central de Ancara.
Suas vítimas não contaram com o pranto mediático, muito menos sequer uma vela foi acesa com a morte dos mais de 200 passageiros do avião russo derrubado nos céus do Egito, pelo EI, sempre ele.
Já entrou para o esquecimento a sorte dos 700 mil palestinos, expulsos de suas terras e de suas casas pelos continuados assentamentos do Estado de Israel. Não nos choca mais saber que se contam em cerca de 100 os palestinos mortos pelas incursões do poderoso exército de Israel, só no ultimo mês.
Sequer nos perguntamos quantas vidas foram ceifadas na Guerra contra o Afeganistão, quantas foram ceifadas na invasão do Iraque, quantas presentemente estão sendo ceifadas na Líbia e na Síria onde EUA, França e Inglaterra, que pretendem a derrubada de Assad, exercitam sua guerrinha-fria contra a Rússia, que dá sustentação diplomática e política ao ditador.
Para nós, em nosso distanciamento, foi impossível conhecer a dramaticidade da ‘guerra’ do Iraque promovida pelos EUA. Pela televisão, ‘ao vivo a cores’, em cadeia mundial, sem a visibilidade de cadáveres, sem sangue, a invasão foi, emocionalmente, apresentada como um reality show ou um vídeo game futurista. Registramos apenas a estética dos mísseis com suas luzes iluminado a escuridão do céu numa noite sem lua.
Síria, Turquia, Líbia, Iraque, todos fronteiras artificiais impostas pela Inglaterra e pela França a parir do Acordo Sykes-Piot (1916) que – violentando culturas e histórias milenares – serviu tão-só para redesenhar o Oriente Médio, para assim melhor explorá-lo.
Como surgiu esse ódio sectário que corre do Oriente Médio, e que se estende pela Ásia e pela Europa e vem ensanguentar as cidades mais queridas do Ocidente?
Quem financia tanto terror?
Quem entrega armas e equipamentos de guerra nas mãos desses facínoras?
A resposta inescapável é única: são os que hoje derramam lágrimas de crocodilo.
O chamado Estado Islâmico, uma decorrência da Al Qaeda – por sua vez uma criação dos EUA – é financiado pelos petrodólares dos países do Golfo Pérsico, à frente de todos a Arábia Saudita, a maior potência do Oriente Médio, e principal aliada do Ocidente (seja lá o que isso hoje signifique).
São também esses dólares que financiam a indústria bélica do EUA, da Inglaterra e da França, os maiores fabricantes de armas e equipamentos de guerra do mundo, os maiores fornecedores e os maiores traficantes de armas. E, não obstante, ou por isso mesmo, são eles, os fornecedores de armas aos terroristas que nos ameaçam e matam seus povos, membros com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Segurança?
Osama Bin Laden – é sabido – foi recrutado, treinado e financiado pelos EUA para dar combate às tropas soviéticas que defendiam o governo do Afeganistão. Em crise, a Al Qaeda (aquela do atentado contra as torres gêmeas) foi salva pela invasão do Iraque pelo segundo Bush. Dela surge o EI.
Assim e em nome de nada – ora em nome do combate a tropas soviéticas no Afeganistão, ora em nome de mentiras deslavadas (as ‘armas de destruição em massa’ de Sadam Hussein), ora sob o pretexto da defesa de minorias (Síria), ora sob pretexto nenhum (Líbia), os EUA – com a cooperação militar da França e da Inglaterra –, destruíram as estruturas sociais-religiosas do Iraque e dos demais países, acenderam conflitos religiosos e tribais, destruíram nações e as organizações políticas. Em síntese, com a anarquia e o caos, ensejaram a proliferação de verdadeiros ‘Estados’ armados com exércitos agressivos, exércitos de terroristas aptos a agir em qualquer parte do mundo.
O Estado Islâmico e seu califado no Iraque e na Síria são fruto da invasão e destruição do Afeganistão, do Iraque, da Síria e da Líbia. A França interveio na Síria e os EUA financiam e dão assistência militar (inclusive com o fornecimento de armas e munições aos terroristas (que eles batizam de ‘rebeldes’) que lutam contra a ditadura de Bashar al-Assad, que, por seu turno, apoiado pela Rússia, combate o EI.
Os facínoras do EI colhem o fruto da destruição dos Estados árabes, de suas organizações sociais e politicas, e, nomeadamente, da destruição das forças armadas do Iraque, da Síria e da Líbia, cujos quadros foram atraídos pelos fanáticos, que também se beneficiam, ainda graças à intervenção do ‘Ocidente’, com o rompimento do tênue equilíbrio de forças entre xiitas e sunitas consequente das derrubadas de Saddam Hussein e Muamar Kadafi.
Os EUA, após a ignomínia do 11 de Setembro, conduziram operações secretas, com drones e execução de civis suspeitos em 70 países. Da injustificada invasão do Iraque – país que nada tinha com o ataque covarde – resultou uma guerra desastrosa (condenada até mesmo nas memórias do Bush pai) que fortaleceu a Al Qaeda (lembremos mil vezes, criada pelos EUA para combater os soviéticos no Afeganistão) e propiciou as condições para o surgimento do EI. Deu no que deu. O medíocre François Hollande, elevado pelos terroristas à condição de ‘presidente marcial’ fala em guerra.
Que virá depois?
O simplório Jeb Bush, irmão do Bush 2 (o principal responsável pela depredação do Iraque e suas consequências vividas hoje), já declarou, em campanha pela candidatura republicana à presidência dos EUA, que o atentado de Paris é “uma tentativa de destruição da civilização ocidental”.
Antes dele, e melhor e mais perigosamente do que ele, Samuel Huntington já havia anunciado o ‘choque de civilizações’ (na essência a ‘guerra’ contemporânea teria como eixo os conflitos culturais e religiosos, opondo nossas civilizações), dando sua lamentável contribuição para a intolerância e o ultra anti-islamismo que ameaça infeccionar a sociedade norte-americana.
O cenário é muito mais complexo do que supõe a mediocridade, dividindo o mundo entre os ‘bons’ (nós) e os ‘maus’ (os outros) com o que a nova direita europeia (ex-socialistas incluídos) e os republicanos estadunidenses simplesmente repetem o maniqueísmo dos fanáticos que pretendem combater, os ‘cruzados’ com sinal trocado, pois, hereges, agora, somos nós, os que não seguimos Alá.
Algozes e vítimas, cada um a seu modo, se identificam na estratégia de propagar o ódio contra os que não compartilham sua ideologia. O ódio de um é a força que alimenta o ódio do outro e, assim, se tornam irmãos siameses e interdependentes.
Voltamos às Cruzadas?
A violência terrorista avança no mundo e agora grassa em uma Europa onde a xenofobia não é nova mas é crescente. As manifestações de preconceitos étnicos, especialmente contra os árabes, soma-se à intolerância religiosa, particularmente o anti-islamismo, reforçado pelos atos de terrorismo.
Essas manifestações prosperam em todo o mundo, mas avançam principalmente nos EUA (onde se tornam corriqueiras entre os pré-candidatos republicanos) e na Europa, símbolo de civilização que não conhece a inocência, mas sim a guerra como a arte da política: guerras fratricidas, guerras de conquista, séculos de exploração e depredação coloniais, uma história de colonialismo, pirataria, opressão dos povos subjugados. Em um só século duas guerras mundiais e o holocausto.
Roberto Amaral, escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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