Em épocas de carnaval é muito comum ver pessoas se “fantasiando” de negra, pintando o rosto de preto, colocando peruca afro, passando batom vermelho de forma esdrúxula com a intenção de aumentar os lábios.
Para entender o quão ofensivo isso é, se faz necessário entender o contexto e a história do black face. De acordo com o site “History of Black face”, o black face começou quando homens brancos se caracterizavam de homens negros escravos ou livres durante a era dos shows dos menestréis (1830-1890) e essas caricaturas tornaram-se fixas no imaginário americano reforçando estereótipos. Comediantes faziam sucesso apresentando, para um público formado por aristocratas brancos, personagens estereotipados de pessoas negras com o intuito de ridicularizá-las. Além de pintar o rosto de preto, esses comediantes pintavam exageradamente a boca de vermelho para chegarem numa “representação ideal” do que eles julgavam ser o negro. Depois, essa prática ganhou espaço no cinema no início do século XX. Como exemplo, temos o filme O nascimento de uma nação de Griffith. O primeiro filme falado da história, O cantor de jazz, de 1927, também se utilizou dessa “técnica”, o ator Al Johnson para interpretar um jovem cantor negro de jazz pintou seu rosto de preto.
Como nos ensina Charô Nunes no texto Black face, Yes we can, o black face serve tanto como estereótipo racista e como forma de exclusão. Se no primeiro caso, ridiculariza, no segundo, não dá oportunidades para atores, atrizes, modelos negros e negras, por que se há artistas negros, por que raios uma pessoa precisaria se pintar de negro para isso? E eu acrescentaria: o que a mídia brasileira faz, de modo geral, é um “avanço” disso. Para papéis bem específicos, até se contratam atores negros, mas para reforçar estereótipos e estigmas. A mulher negra ainda é a gostosa do samba ou a empregada e o homem negro o malandro e ladrão.
Logo, se pintar de negro não tem graça alguma, é ofensivo. Essas pessoas esquecem também que assim como pessoas de outras etnias, somos altas, baixas, gordas, magras, umas com lábios grossos, outras com finos, somos diversas assim como qualquer ser humano. Há algum tempo, a comediante Kefera Buchman gravou um vídeo chamado “Tá liberado, é carnaval” onde aparece pintada de preto, com uma peruca black power dançando de forma ridícula e caricata. Ou seja, se utilizando da versão brasileira do black face, “a nega maluca”. Nesse vídeo, a humorista ultrapassa todos os limites do bom senso e do respeito ao retratar mulheres negras de forma tão ultrajante. Nunca vi uma mulher negra se comportar do modo como ela fez.
Eu já escrevi sobre o humor aqui nesse espaço e repito: o humor não está isento, carrega também a ideologia racista. Isso é engraçado para quem, Kefera? Está faltando criatividade para ser engraçada, então você precisa rechaçar mulheres negras? Não precisamos e não queremos este tipo de “homenagem”. Quer nos homenagear? Tenha consciência do racismo do país em que vive e lute para combatê-lo. Alguém faria piada sobre os horrores de Auschwitz? Não, isso seria um completo absurdo e desrespeito. Mas acham graça de fazer piada sobre escravidão, com mecanismos racistas criados para nos oprimir.
Uma mulher negra com cabelo crespo comumente ouve piadas e é discriminada e, no carnaval, a mesma pessoa que ridiculariza nossos cabelos quer se vestir de “nós” para seguir ridicularizando. Recentemente participei de um programa da Al-Jazeera English sobre racismo no Brasil juntamente com Nênis Vieira, do Blogueiras Negras e Daniela Gomes, do Afroatitude. Fiquei muito feliz por poder falar de forma aberta e franca sobre essa chaga que nos aflige. Sonhando com o dia em que a mídia brasileira pare de tratar o assunto com descaso e julgando que vale tudo para o riso. Não somos fantasias de carnaval em nenhum sentido: para sermos ridicularizadas ou sermos tratadas como meros corpos que sambam e rebolam. Respeitem nossa humanidade.
Djamila Ribeiro é blogueira do Escritório Feminista
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