Diz a máxima que o capitalismo privatiza os lucros e socializa os prejuízos. No caso da Sabesp, a frase é ainda mais verdadeira: a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos ocorrem simultaneamente.
No ano de 2014, marcado por uma crise sem precedentes no abastecimento de água no Estado de São Paulo, a Sabesp apresentou no segundo trimestre um lucro líquido de R$ 302,4 milhões e deve chegar ao fim do ano com um montante próximo do R$ 1,9 bilhão de lucro de 2013.
Isso mesmo! Enquanto parte da população da região metropolitana vê as torneiras secas há meses (como mostra o site colaborativo faltouagua.com), os acionistas da Sabesp têm um faturamento nada escasso. Diante desse quadro, o governo estadual tenta convencer a população de que a culpa é da falta de chuvas. Não é!
Culpar São Pedro pela crise hídrica em São Paulo é brigar com os fatos e desconhecer – ou querer esconder – a ineficiência da gestão da Sabesp, em grande parte provocada pela forma como a empresa é constituída economicamente e pelos interesses que tem de atender.
Dentre alguns pontos discordantes aqui e ali, pode-se tomar essa conclusão do debate realizado na USP na terça-feira (11/11) com acadêmicos especializados em urbanismo e gestão de recursos hídricos. No encontro promovido pelo CENEDIC (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania), discutiram o tema Gabriel Kogan, arquiteto mestre em gerenciamento hídrico no IHE (Institute for Water Education), Antonio Carlos Zuffo, professor do Departamento de Recursos Hídricos da Unicamp, Luis Antonio Venturi, professor da USP na área de Geografia dos Recursos Naturais, e Nabil Bonduki, professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, vereador pelo PT e membro da CPI da Sabesp.
A questão político-econômica
Para entender a crise da água em 2014 é preciso voltar 20 anos no tempo. Em 1994, a Sabesp deixou de ser 100% estatal, tornando-se uma empresa de economia mista e capital aberto. Até 1997, ela era negociada no mercado de ações de balcão, com o governo dono de 95% da empresa.
Em 1997, as ações foram transferidas à Bovespa e, em 2002, passam a ser negociadas também na Bolsa de Valores de Nova York. Hoje, o Governo de São Paulo detém 50,3% das ações. O restante, 49,7%, é negociado nos mercados financeiros brasileiro e norte-americano.
Para Gabriel Kogan, essa configuração já é um problema. “Água é algo muito estratégico para ser gerido de maneira privada”, analisa. Para ele, o que ocorreu desde a abertura do capital foi uma maximização dos lucros dos acionistas ao mesmo tempo em que os investimentos que poderiam ter evitado a crise atual, como ampliação da rede de captação e saneamento, foram minimizados.
Agora, a crise é enfrentada com a externalização dos custos. O governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) pediu ao Governo Federal uma verba de R$ 3,5 bilhões para combater a crise hídrica com projetos a longo e médio prazo. Gabriel Kogan lembra que a quantia equivale a dois anos de lucros dos acionistas.
Ou seja, a Sabesp terá mais dinheiro público, agora da União, sendo que seus acionistas têm esse dinheiro. Mas a externalização de custos pode ser ainda mais cruel. Nós estaremos financiando a Sabesp e seus acionistas, mas e o prejuízo do dono de restaurante da região periférica, que fecha as portas porque falta água quase diariamente porque a Sabesp não investiu no passado? Quem o indenizará?
Para Nabil Bonduki, esse tipo de gestão da Sabesp é totalmente incompatível com o uso sustentável da água. “A água virou objeto de lucro. A Sabesp vive de vender água. Quanto mais água usarmos, maior vai ser a lucratividade da empresa”, comentou.
Para o vereador, a conscientização sobre o uso racional deve ocorrer, inclusive na época de abundância da água, para que os reservatórios estejam sempre cheios, já que, uma vez que eles estejam vazios, a recuperação torna-se muito mais difícil, devido ao chamado “efeito esponja” (com as represas esvaziadas, parte do solo argiloso que antes ficava submersa fica exposta e seca. Quando a chuva acontece, o solo absorve a água como uma esponja, antes de ser capaz de armazenar o líquido precioso).
Dona Rute, moradora do Capão Redondo, vive um racionamento não declarado que pode durar até 9 dias sem água na torneira. A redução do consumo não interessa à lucratividade da empresa. Foto: Sarah Pabst
Diante da lógica da maximização dos lucros, a Sabesp não tomou as medidas necessárias para conter a crise já em 2013, quando o nível dos reservatórios estava baixando. Políticas de racionamento, com penalização de quem desperdiçasse água, e de informação não foram feitas.
Ao contrário, o governo decidiu dar um bônus a quem economizasse. Para Nabil, essa foi a única medida séria, mas totalmente ineficiente, já que gerou uma economia “pífia” de 5%. Muito mais poderia ser obtido se houvesse um investimento da Sabesp na redução de perdas com vazamentos.
Integrante da CPI da Sabesp na Câmara Municipal de São Paulo, Nabil Bonduki diz que é preciso investigar como a redução de perdas de 2009 a 2014 foi de 0,6% (de 20,4% para 19,8%) sendo que o contrato estabelecia um investimento nada modesto de R$ 1,1 bilhão – um investimento bilionário para um resultado insignificante.
Mas a Sabesp não teve apenas um ano para tomar medidas que evitassem o problema atual. O esgotamento do sistema Cantareira já era previsto no ano de 2001 por Aldo Rebouças, professor emérito do Instituto de Geociências da USP, falecido em 2011. À época, Aldo Rebouças disse que o problema era seriíssimo, porque o nível estava perto do limite do sistema.
A Sabesp poderia ter feito um planejamento para “salvar” o Cantareira, mas optou por outra medida, como mostra a reportagem “Sabesp maquia crise no sistema Cantareira”, de Mariana Viveiros, da “Folha de S.Paulo”, em 29 de março de 2001. A repórter obteve um documento interno produzido pela Superintendência de Comunicação da empresa. A orientação era esconder a crise.
E não é de hoje que a influência do capital prejudica o abastecimento sustentável da Grande São Paulo. Em uma entrevista à Agência Fapesp em 2012, a geógrafa Vanderli Custódio, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, disse que a vazão do Tietê quando atravessa a região metropolitana é de 82 metros cúbicos por segundo. A Sabesp, com todos os seus sistemas em capacidade máxima, produz aproximadamente 67 metros cúbicos de água por segundo.
O Tietê, portanto, abasteceria São Paulo inteira e ainda sobraria água, mas isso hoje é totalmente inviável dada a poluição do rio, que tem origem na concessão feita na década de 1920 pelo governo paulista à Light, quando se permitiu a inversão do curso do Rio Pinheiros visando à exploração dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia.
Tais problemas levam à questão central pela qual passam as possíveis soluções para a crise: a reestatização da Sabesp. Como uma empresa sem controle público e sob a lógica do capital poderia gerir um recurso essencial à vida? Para Gabriel Kogan, essa mudança será impossível “sem o povo nas ruas”.
A questão natural
Só a água do Aquífero Alter do Chão, na Amazônia, abasteceria a humanidade inteira por três séculos. A água do Aquífero Guarani, mais 150 anos. O dado impressionante foi um dos exemplos utilizados pelo professor Luis Antônio Venturi para ilustrar o fato de que a água é, numa perspectiva geográfica dos recursaopedro3sos naturais em escala planetária, o recurso mais abundante do planeta. É praticamente inesgotável.
Tendo em vista que a fonte das águas continentais são os oceanos, enquanto eles existirem, enquanto o sol aquecê-los, enquanto a Terra girar para levar a umidade aos continentes e enquanto a lei da gravidade permitir as precipitações – o que deve acontecer “por um certo tempo”-, não é possível pensar na finitude da água.
Mas, e numa escala local? Segundo Venturi, o mapa hidrográfico de São Paulo é de dar inveja a qualquer região. Por que estamos nessa crise, então? Venturi estabelece sete motivos:
1- Os sistemas não são equilibrados em relação à oferta e demanda. O sistema Rio Grande estava com o dobro de água do Cantareira para atender uma população cinco vezes menor.
2- Os sistemas não estão eficientemente articulados em rede. Deste modo, toda a água que temos não está disponível para todos.
3- Problemas de perdas na rede de distribuição. A média mundial de perdas é de 11%, enquanto em São Paulo é de 19,8% (segundo os dados oficiais, embora especialistas acreditem que essa porcentagem seja maior; na Holanda é de 0%).
4- Algumas represas, como Atibainha, são em formato de pires, com grande superfície de evaporação e baixo armazenamento (o formato ideal seria de uma xícara, por exemplo).
5- Os sistemas só estão sendo equipados agora para usar o volume morto, necessário em planos emergenciais. Sem planejamento, estamos correndo atrás do prejuízo.
6- Você já reparou que a água que bebemos é a mesma água limpíssima que usamos para dar descarga? Sem a utilização da água de reúso, ocorre uma perda qualitativa da água. Metade da água usada em casa poderia ser não-potável.
7- Estiagem natural.
De acordo com Luis Antônio Venturi, o governo de São Paulo, ao falar com a população sobre a crise, inverte a ordem, colocando a estiagem natural como primeira causa, sem assumir as outras causas, que refletem erros da Sabesp. E mais: essa estiagem não é a maior, já que a falta de chuvas foi mais grave nos anos de 1963 e 1984. Além disso, a estiagem era previsível. São Paulo possui uma ampla base estatística que permite saber quando haverá períodos de mais ou menos chuva.
O professor Antônio Carlos Zuffo revelou alguns fatos que mostram que o atual período não é excepcionalmente seco em São Paulo. Vemos em 2014 seca em São Paulo e na Califórnia, e enchentes na Amazônia e na Europa (na Croácia é a pior da história).
No ano de 1953 o quadro foi rigorosamente o mesmo, com direito a grave estiagem em São Paulo e a maior enchente do Amazonas. Zuffo ainda recordou uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo de 27/11/1953, com o título “Mudanças Climáticas ameaçam a produção de café no Brasil”.
O curioso, segundo Zuffo, é que em 53 não havia nem Transamazônica. Para o professor, a ação humana (antrópica) é ínfima perto da influência dos ciclos solares no clima global. Esse assunto ainda gera mais discussão entre os especialistas, mas o fato mostra que a estiagem em São Paulo não é sem precedentes e que era previsível.
“Como São Paulo fica à mercê de chuva como as sociedades primitivas?”, questiona Luis Antônio Venturi. O professor ainda nota que o governo de São Paulo pode ficar em uma situação desconfortável em breve.
Quando começar a chover, o problema da água não será resolvido, dada a situação dramática do Cantareira. Haverá alagamentos, como já houve há algumas semanas. O governo certamente colocará a culpa das inundações na chuva, não no assoreamento ou impermeabilização do solo.
Surgirá, então, a incômoda questão: Como é possível faltar água pela escassez de chuvas e ao mesmo tempo haver enchente pelo excesso de chuvas?
São Pedro merece ser poupado dessa. Ele não está no mercado de ações.
Esta reportagem faz parte da Conta D’água (contadagua.org), uma iniciativa de diversos coletivos e veículos independentes para a produção de reportagens, ensaios, notícias e entrevistas sobre a crise hídrica de São Paulo.