Todo mundo gosta de música, pelo menos de canção, a música que tem uma letra junto. Generalizo, mas falo de uma maioria acachapante, tipo torcida do Corinthians, 99,9% de probabilidade no teste de dna, o gostoso requebrado da mulata, e por aí vai; neste caso, discordo do Nelson Rodrigues quanto à burrice da unanimidade: a canção brasileira ocupa um status privilegiado no processo de atribuição de uma identidade nacional, talvez só equiparado ao futebol e ao carnaval.
Isso se deu aqui de uma forma muito especial – como uma espécie de compensação a uma população em sua maioria iletrada (com baixo grau de escolarização e pouco afeita ao contato com a literatura), desenvolveu-se uma criação sofisticada, muitas vezes trazendo elementos da cultura erudita e reelaborando-a através da maciez que o texto adquire ao receber uma música que o completa.
De fato, nossa canção popular se confunde com nossa formação enquanto povo. E, se muitos especialistas apontam a música popular brasileira, a norte-americana e a cubana como as mais elaboradas em todo o mundo, aí tem coisa. Qual seja, a fusão da música europeia com a negra, a elaboração harmônica com a polirritmia.
Quanto aos negros, de todas as raças que nos formaram, incluindo os Brasis (índios) que já se encontravam aqui, foram o grupo sem sombra de dúvidas mais criativo e importante na construção daquilo que entendemos como Brasil – apesar de toda a brutalidade por que passaram e cujas marcas ainda estão presentes em ações, omissões e preconceitos.
Mas vivemos novos ares: o rap constrói seu discurso poético-incisivo, disseminando uma potência de indignação, de inconformismo e de ação resistente frente aos cínicos mecanismos de exclusão de uma elite branca que, ideologicamente, nega sua opressão.
As parcelas da população ainda excluídas reivindicam cada vez mais seu quinhão de inserção de forma igualitária na sociedade, e as políticas de inclusão dos últimos governos só aguçaram este direito. Creio que seja um caminho sem volta.
Assim, saudamos o dia da Consciência Negra com toda contundência, respeito e alegria. Não como uma importância folclórica, passada, mas presente na reinvenção diária da vida; como afirmação da contribuição daquilo que tanto nos orgulhamos como brasileiros. E aqui volto à canção.
Como compositor, como brasileiro e como pessoa, atrevo-me a sentir orgulho do sangue miscigenado indígena e negro que corre em minhas veias, ainda que aparentemente seja classificado como branco. Pois como disse Darcy Ribeiro, a aventura do negro foi de tal magnitude aqui nos trópicos que, deixando de ser eles, se tornaram nós.
Maurício Baraças é músico, compositor e colaborador do Portal CTB