O poder da finança

Carta do Banco Santander enviada a seus clientes preferenciais alertou a turma da bufunfa: atenção!, são grandes os riscos envolvidos na reeleição da presidenta Dilma Rousseff. As desculpas do presidente do banco espanhol e as anunciadas providências a serem tomadas para sanar o deslize epistolar não conseguem esconder o significado do episódio.

O desditado “analista” do Santander revelou um segredo de Polichinelo: no mundo globalizado, as relações entre o político e o econômico – melhor, entre a democracia e o mercado – estão ordenadas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão do poder da finança. Deflagrado no início dos anos 80 do século XX, o movimento de “liberalização dos mercados” promoveu simultaneamente a chamada globalização financeira e a centralização do controle da riqueza líquida nas instituições financeiras “grandes demais para falir”.

Os grandes bancos internacionalizados, sobretudo os bancos americanos, cuidaram de administrar à escala global a rede de relações débito-crédito. Assim, impuseram condições à gestão fiscal dos Estados Nacionais. Ao comandar a circulação de capitais entre as praças financeiras, tornaram-se senhores dos “fundamentos econômicos” com poder de afetar a formação das taxas de juro e de câmbio. Essa submissão dos Estados aos ditames da finança globalizada foi acompanhada de mudanças na estrutura da propriedade e da concorrência, ou seja, os grandes bancos financiaram e organizaram o jogo da concentração patrimonial e produtiva.

Esse processo levou consigo a apropriação da “racionalidade econômica” pelos senhores da finança. As decisões que outrora, no imediato pós-Guerra, couberam às instituições democráticas passaram ao comando dos “mercados eficientes”.

Os cuidados típicos da era anterior, a da “repressão financeira”, estavam concentrados na atenuação da instabilidade dos mercados de títulos representativos de direitos sobre a riqueza e a renda. As políticas monetárias e de crédito eram orientadas no sentido de garantir condições favoráveis ao financiamento do gasto produtivo, público ou privado, e atenuar os efeitos da valorização fictícia da riqueza sobre as decisões de gasto corrente e de investimento da classe capitalista. Tratava-se de evitar ciclos de valorização excessiva e desvalorizações catastróficas dos estoques da riqueza financeira já existente.

O sociólogo e economista Wolfgang Streek, diretor do Instituto Max Plank, aponta a origem da “transferência de poder” na estagflação dos anos 70, quando o arranjo social e econômico anterior foi desmanchado, em nome da remoção dos entraves à operação dos mercados.

A transição, diz Streek, configurou “a passagem do Estado Fiscal para o Estado da Dívida e, finalmente, para o atual Estado de Austeridade. As causas dessas mudanças foram as novas oportunidades de evasão fiscal aliadas à extorsão de isenções de impostos, vantagens oferecidas às grandes empresas e aos endinheirados pela globalização financeira. As tentativas de reduzir os déficits fiscais apoiaram-se quase exclusivamente no corte de despesas, sobretudo na seguridade social, na educação e na infraestrutura física. Os ganhos de renda correram para a camada superior, aquela que abriga os felizardos 1% da pirâmide distributiva. Nessa toada, a dimensão pública das economias capitalistas capitulou diante do poder e da mobilidade da riqueza oligárquica”.

Mais poderosos na formação das decisões e menos “eficientes” na definição dos critérios de avaliação do risco, os mercados financeiros lograram capturar os controles da economia e do Estado, mediante o aumento do seu poder social.

A nova finança e sua lógica notabilizaram-se por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas, mesmo quando se revelam incapazes de curar suas próprias mazelas. A despeito do socorro prestado pelos bancos centrais às suas imprudências e incompetências, do desemprego e da desigualdade escandalosa, as ações dos governos sofrem fortes resistências das casamatas instaladas nos quartéis da finança contemporânea. A globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos privilegiados, desarticulou a velha base tributária na qual prevaleciam os impostos diretos sobre a renda e a riqueza.

A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, é contestada, ademais, pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado por meio do mercado capitalista.

 Luiz Gonzaga Belluzzo é economista


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