Réquiem para um sistema falido

Transformada em mafuá – com seus salões e seus gabinetes convertidos em covis da traficância – a Câmara dos Deputados foi cenário adequado de um réquiem para um velho morto, o sistema partidário brasileiro, que, na semana passada, concluiu seu suicídio de décadas. Os salões e os gabinetes projetados por Niemeyer para o fazer político foram poucos e pequenos para abrigar as turbas atraídas pelo tráfico das legendas e dos mandatos, os leilões que ditavam a valia monetária de mandatos conspurcados, comprados (ou alugados até à próxima infidelidade) ao bater do martelo. Assim, em horas, foram construídos verdadeiros valhacoutos tratados juridicamente como se partidos fossem, súcias sem caráter político, sem programa, sem ideologia, sem nada, a não ser talões de cheque, promessas de cargos e verbas.

Em nome de um pragmatismo pedestre, a política é expulsa da política. Em poucas horas, com a conivência de direções partidárias que jamais zelaram pela fidelidade de seus quadros – imposta pelo STF– mais de cinquenta deputados federais (um tanto mais de deputados estaduais, vereadores e prefeitos) transferiram-se das legendas pelas quais haviam sido eleitos, direções estaduais foram alugadas ou cedidas mediante pregão, e assim, da noite para o dia, dos covis para a luz do sol, surgem partidos caleidoscópios, sem cor alguma, porque contêm todas as cores. Partidos papel em branco, capazes de aceitar toda e qualquer vontade, todo e qualquer projeto, engenhos jurídico-burocráticos sem a menor representatividade sociológica. Partidos nos quais os dirigentes são substituídos por gerentes.

Diante da recorrente inação legiferante do Congresso, e da omissão dos Partidos, o TSE, em 2007, em decisão posteriormente confirmada pelo STF que abonou sua constitucionalidade, reconheceu como pertencente ao Partido, e não ao eleito (parlamentar  chefe de executivo),  o mandato popular. Assim, ao desfiliar-se sem justa causa (v.g. perseguição política),  o titular perdia o mandato e não levava consigo o tempo de televisão a que lhe correspondia, que ficavam, mandato e tempo de televisão e Fundo Partidário, com o Partido pelo qual fôra eleito,  a não ser, entre outras,  — eis a janela aberta inventada para inutilizar a regra–, na hipótese de nova agremiação.

Posteriormente, decisão monocrática de um ministro do STF passou a admitir que o trânsfuga levasse consigo, mesmo quando sua votação não houvesse atingido o quociente eleitoral,  além do mandato, o tempo de televisão, na contramão do dispositivo legal que determina que, para os efeitos do cálculo do tempo de televisão e da quota-parte do Fundo Partidário, que se considere a bancada na data da instalação da Legislatura. Estava dada a senha para a fraude, a indústria do partido novo, que permite os rearranjos sem risco de perda de mandado, e dá, ao novo ‘partido’ a seiva de que carece para as tramóias de toda ordem, o tempo de televisão, e os bons recursos do Fundo.

A desmoralização do sistema de partidos e a criminalização da política, que podem escrever o epitáfio da democracia, nutrem-se na falência do sistema eleitoral e do sistema partidário. Isso é um óbvio cediço, e nem por isso convincente, pois todos o repetem para permanecerem de braços cruzados. Reforma, reforminha, agora, só em 2015 para valer para as eleições de 2016. Mas quem vai fazê-la? Os parlamentares que, em sua maioria,  serão prejudicados por qualquer correção?

Com a autoridade que lhe sobra, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Valor. 6/10/2013),  põe de manifesto o que este escriba, e outros mais prestigiosos, vêm escrevendo neste espaço eletrônico: “A reforma política enfrenta um impasse: o Congresso Nacional, que é o lugar por excelência para conduzi-la, é composto de parlamentares, por atores que não são neutros em relação às soluções que venham a ser dadas. Todas as pessoas que estão lá serão diretamente afetadas por qualquer mudança. Na prática, não se consegue produzir consenso”.

Como desfazer esse nó górdio antes que ele estrangule a política?

A alternativa, volta a falar o ministro, pode ser o Plebiscito sugerido pela presidente Dilma e criticado à direita e à esquerda por aqueles muitos sabidos que só aceitam as reformas quando feitas para que nada mude. Seria um plebiscito, segundo entendo, mediante o qual o cidadão concederia poderes constituintes ao próximo Congresso a ser eleito, para, por exemplo, no prazo de um ano, elaborar as reformas, reformas indicadas na própria consulta, reformas as quais, para evitar a burla, seriam confirmadas ou não mediante referendo.   O plebiscito seria convocado ainda em 2013 e respondido juntamente com as eleições parlamentares de 2014.  Mas, um Congresso eleito nos termos dessa legislação e dos vícios de hoje poderá fazer as reformas que o povo, exemplarmente paciente, pede nas ruas?

Poderemos, porém, apostar todas as fichas da salvação da política numa reforma jurídico-legislativa operada na cúpula, e, como necessariamente, à margem da sociedade infelicitada? Qual reforma pode salvar de seu esvaziamento simbólico partidos sem vida, desprovidos de conteúdo? Como trazer de volta à política partidos  que renunciaram à representação, que, dominados pela burocracia, optaram pelo  pragmatismo que mata a utopia?

Roberto Esposito (La Republica, 7/5/2012), antes de nosso junho de 2013,  perguntava: “Onde nasce essa desafeição que pervade as nossas sociedades até a borda? O que afasta cada vez mais a linguagem dos políticos daquele cruzamento de impulsos, emoções, esperanças que molda a nossa experiência? E por que, talvez nunca como hoje, a onda longa da política parece se inchar no tsunami da antipolítica”?

Serão mesmo  nossos partidos, os partidos brasileiros, em sua maioria, suicidas, posto que a eles, por definição, não deveria interessar a antipolítica que, promovida pelo seu auto-esvaziamento, terminará por devorá-los? A verdade é que alguma coisa corrói, como caruncho, a maioria de nossos partidos; algo os molesta, como uma psicose coletiva  que os leva a ceder a uma pulsão auto-destrutiva, na medida em que se apartam da quimera coletiva e deixam de ser instrumento de realização dos sonhos e das utopias que movem as massas.

No Brasil, há um elemento a mais, que a irrupção de junho parecia haver espancado: a permanente ausência do povo-massa, a síndrome da casa grande, onde reinam os ‘eleitos’ (pelos deuses) e a senzala, o Brasil real onde mora e trabalha o povo, o povo objeto. Que sociedade representaria o sistema partidário (e político e eleitoral) brasileiro, herdeiro de um autoritarismo larvar que se expressa em todas as atividades sociais (a começar pelas relações familiares mas que compreende as desigualdades sociais de gênero e cor, a homofobia e o preconceito racial) e encontra seu refinamento nas relações políticas? Acerta quem disser que é a nossa classe dominante, forânea, despida de valores democráticos, rentista do erário, sem perspectiva de futuro, vivendo o hoje pelo hoje, sem compromisso de nação e sem consciência de povo.


Roberto Amaral vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ex-ministro da Ciência e Tecnologia. Artigo originalmente publicado no site de “CartaCapital”.

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