As irrupções sociais não conhecem sismógrafos capazes de antecipá-las. Historiadores tentam recompor os fatos, mas não logram construir mais do que uma versão. Sociólogos e quejandos, profetas do pretérito, tentam explicar os fatos vencidos. Marx ensinava a dificuldade de compreender o contemporâneo.
Sabia-se que algo andava errado no império do Leste, mas ninguém conseguiu antever o colapso da União Soviética, o desmembramento de suas repúblicas, a inação do exército vermelho ante o golpe de Yéltsin. Aliás, sua ascensão só viria confirmar Marx quando nos lembra, no 18 brumário, que “todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A saber, Lênin, Stálin e Yéltsin…
Nem mesmo a simbólica ‘queda’ – na verdade derrubada à força de marteladas – do ‘muro de Berlim’ foi prevista. Os economistas, principalmente os ‘videntes’ das agências disso e daquilo, incluindo o FMI, gostam de ditar os rumos futuros da economia, mas nenhum deles antecipou, embora se tratasse de crise cíclica, a implosão do sistema imobiliário-bancário norte-americano, precipitando a crise estrutural do capitalismo financeiro em sua fase monopolista e carregando consigo, além das falências da Espanha e da Grécia, as crises da Itália e da Irlanda. Levando, ademais, a União Europeia à estagnação que derrapa para a depressão.
Mas se o 11 de setembro de 2001 foi imprevisto, suas consequências não podem haver surpreendido o observador da cena internacional.
Tudo isso pode ser aplicado tanto ao Occupy Wall Street, quanto à ‘Primavera Árabe’ que termina, também imprevistamente (pelo menos os ‘especialistas’ em mundo árabe não nos avisaram), em uma ditadura militar sanguinária, que se oferece como alternativa à intolerância religiosa, mero pretexto para encobrir a escalada belicista imperialista, com o conveniente suporte de Israel e dos “democratas” saudistas, que está se assanhando para colocar em chamas o Oriente Médio. A propósito, com a mesma rede das mobilizações anteriores, a praça Tahrir permanece vazia, inane diante dos militares golpistas. Tudo isso pode ser igualmente aplicado à ‘virada’ da Catalunha (1977).
Varia, conforme o caso, o ‘estopim’ da irrupção – às vezes ele não é sequer identificado -, e o que fica de permanente é a emergência de novos atores e a surpresa dos analistas. Ora o estopim é um curto-circuito, ora uma gota d’água: o fato é que em poucos meses ou horas o comportamento da sociedade pode mudar. Em 24 de agosto de 1954, as massas que na véspera pediam a renúncia do Presidente Vargas foram às ruas pranteá-lo e agredir seus algozes. Pouco mais de dois anos após a consagração das ruas, Collor de Mello vê as mesmas massas exigirem seu impeachment.
Como, não sabemos, mas a política muda (que falem por nós as sondagens confiáveis ou não sobre a gangorra da popularidade dos prováveis candidatos ao Planalto em 2014), porque a sociedade muda, porque o pensamento muda. E as mudanças, se se operam lentamente no organismo social, elas irrompem sem aviso-prévio. São as chamadas ‘mudanças bruscas’, ou curtos-circuitos, derivados do trabalho silencioso do caruncho social, devorando ou costurando as entranhas do organismo político, sem dar sinais de seu trabalho. Um dia, sem se saber o porquê, a fortaleza desaba.
O maio de 1968, sem a internet, uma revolta estudantil que se estenderia a todo o mundo, inclusive ao convulsionado Brasil da ditadura e da “passeata dos 100 mil’ e ao aparentemente imóvel EUA, irrompe em Nanterre e convulsiona Paris, quando se supunha que a França estava sendo governada por um tal grau de racionalidade que eliminava riscos.
O mesmo podemos dizer de nosso junho de 2013, que chega, já cansado, a este agosto. Ninguém previu sua eclosão, tanto quanto suas características e objeto. Aqui, o fracasso dos intérpretes é ainda maior, porquanto ainda não conseguiram, conseguimos, adiantar nem seu significado, nem muito menos suas consequências. Qual será seu saldo, além da reanimação da política, arrancada dos gabinetes de Brasília, dos escritórios de agiotagem da avenida Paulista e das redações dos grandes conglomerados da imprensa, para as ruas, seu melhor e mais democrático espaço, quando livre das manipulações?
O máximo que se pode dizer é o que salta à vista, a saber, o decreto do fracasso do mandato eletivo na democracia representativa, cuja seiva é exatamente a ligação entre representante (mandatário) e mandante (eleitor). Este elo revelou-se partido. A decadência da vida parlamentar era sua melhor certidão. Daí a crise política haver atingido todos os escalões dos poderes da República, levando os políticos em geral e os parlamentares de modo especial, acossados pelo difuso brado das ruas, a pensar numa reforma política – que dorme no Congresso, legislatura após legislatura, desde 1985. Planalto, partidos, ‘cientistas sociais mediáticos’, OAB e CNBB, sindicatos… todos hoje concordam que o sistema eleitoral precisa ser passado a limpo. Como diria ‘Dadá Maravilha’, nosso filósofo original, todos concordam em identificar a ‘problemática’, mas não há o mínimo acordo quanto à ‘solucionática’, pois qualquer reforma porá em risco a renovação dos mandatos dos atuais legisladores e deles quase tudo se pode pedir, menos fazer haraquiri. Enquanto governo, Congresso e entidades ditas representantes da ‘sociedade civil’ não chegam a um denominador comum, fica evidente – e eis-me correndo o risco de uma previsão… – que o próximo Parlamento será pelo menos tão pouco representativo quanto o atual. E todos, amanhã, se declararão surpresos com o que vier acontecer…
O discurso antipolítica, antes e sempre tonitroado pela grande imprensa e por ela recolhido e ampliado nas manifestações, não foi um repúdio suicida ao gênero política (mesmo porque as manifestações foram uma explosão de interesse, sobretudo juvenil, pela política), mas a uma forma específica do fazer dos políticos, atual, medíocre, afastado dos interesses sociais e limitado ao jogo dos negócios pessoais e dos interesses de grupos empresariais em geral, a escada que leva à corrupção e à desmoralização do mandato. A grande imprensa, na verdade, não é contra a política, mas contra seu exercício pelos políticos (e sobretudo pelo povo) e não por ela, que da política pretende ter o monopólio. O que a sociedade requer é a legitimidade da representação política, o que os grandes meios pleiteiam é a posse do espaço político.
Estamos para ver os desdobramentos da ação das ruas, de sua conformação heterogênea e de seu discurso indefinido, refletindo, aliás, a sociedade real, uma sociedade cuja opinião se forma, e eis um dos fatos políticos mais importantes da última década, desapartada do discurso dos grandes meios de comunicação.
Para além da obviedade, e este é o ponto que pretendo destacar, enxergo, no avanço das redes o anúncio da dispensabilidade da grande imprensa. Esta foi posta em xeque e se revelou descartável, tanto como órgão de informação quanto como formadora de opinião e mobilizadora de ações populares, que, se se fazem às margens dos sindicatos e dos partidos, se fazem também ou principalmente à margem dos jornalões. Embora a televisão tivesse tentado sentar na sua garupa.
O fato novo, portanto, não é a existência da estrutura eletrônica explorada, ela está aí faz anos, e inexistiu no maio de 1968, mas a transformação qualitativa de seu uso, deixando de ser, entre nós, tão-só, o veículo quase mágico que dá suporte ao correio eletrônico ou às salas de bate papo. Como fator mobilizador, aliás, ela já havia demonstrado suas possibilidades na ‘primavera árabe’ e na contestação a Wall Street. Mas, penso que entre nós, para além desse seu papel mobilizador, a rede, principalmente em função da falência ética dos grandes meios, passou a constituir-se no mais importante – porque pulverizado e até aqui não-controlado – órgão de nossa imprensa, realmente livre, livre de controle ideológico porque permeada por todas as tendências do pensamento, e assim apta a veicular todas as opiniões, o que enseja o debate vedado pela imprensa ideologicamente monopolista.
O fato é que as redes sociais podem multiplicar os canais de informação, fazendo de cada cidadão o editor de seu próprio jornal, lido e visto por um espectro social muitas vezes mais amplo do que os instrumentos tradicionais da imprensa convencional, sem os condicionantes do poder público e do poder econômico.
A internet não é uma panaceia, lembremos; porém, nem é neutra, como não o é nenhuma tecnologia, nem é nossa salvação. É um meio em disputa.
Todos sabemos, por exemplo, onde estão seus controles, e o papel exercido por grupos como Google, Facebook, Microsoft e outros, e pelo governo norte-americano através da NSA. Mas as esquerdas, que não se prepararam para concorrer com os meios tradicionais, e o governo, que não teve pulso para conter o avanço monopolístico dos meios de comunicação e cujos meios são reprodutores da ideologia do monopólio, estarão caminhando para a tragédia se ignorarem seu uso.
Penso que a democratização da informação pela qual tanto lutam tantos brasileiros há tanto tempo (aproveito para prestar minhas homenagens à memória de Daniel Herz e à perseverança de Guy Oliveira) começa a conhecer uma alternativa de médio prazo, capaz de enfrentar o monopólio da (des)informação e da opinião (pervertida, antinacional, antipovo) exercido pelos grandes conglomerados (dois ou três), potentados inexpugnáveis, verdadeiros Estados dentro do nosso Estado.
Roberto Amaral é vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ex-ministro da Ciência e Tecnologia. Artigo originalmente publicado no site de “CartaCapital”.