O cantor e compositor Cazuza foi um dos melhores e mais consagrados artistas da recente geração de músicos do Brasil. Dono de uma ironia fina e cortante, viveu uma época conturbada para a juventude. Soube como ninguém captar e desvendar a alma destes jovens, reféns de um liberalismo excludente, de uma sexualidade aidética e de sonhos substituídos pelas viagens induzidas pelo consumo de drogas. Dentre as várias canções produzidas pelo cantor, a que melhor traduziu este momento histórico foi a canção: A burguesia fede. A letra não retrata somente um momento; registra de forma contundente mais de quinhentos anos de história e a forma como a burguesia brasileira conduz o país e como age ao desprezar a grande maioria do povo brasileiro.
Esta postura ficou mais evidenciada nos últimos três meses com a prisão de Daniel Dantas, Naji Nahas e Celso Pitta em operação realizada pela Polícia Federal e a meteórica libertação dos presos, conseguida através de liminar concedida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. A operação satiagara, comandada pela Polícia Federal, apurou que Nahas envolveu-se desde l994 em dezenas de operações fraudulentas no mercado financeiro. Pitta, quando Prefeito de São Paulo, desviou milhões de reais dos cofres públicos através de operações financeiras fraudulentas, coordenadas por Nahas. Estas transações desviaram grande volume de dinheiro público para paraísos fiscais, depositado em contas do herdeiro malufista. Porém, dos três presos libertados pelo STF, o que mais causou indignação aos brasileiros foi o banqueiro Daniel Dantas.
Dantas iniciou sua carreira criminosa ao lado de ACM – Antônio Carlos Magalhães – no final do regime militar, no estado da Bahia. Quando Fernando Collor foi eleito Presidente do Brasil, aproximou-se do poder central e dos esquemas coloridos. Foi nesta condição de amigo do poder e dos poderosos que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, vê seus negócios multiplicar. Dantas aproveitou-se da desregulamentação do mercado financeiro para acumular riqueza incalculável. É preciso lembrar que, nos últimos vinte anos, a liberalidade financeira possibilitou ganhos incalculáveis a uma minoria de especuladores, muitos desses, de maneira fraudulenta. A segunda atividade mafiosa, em que Daniel Dantas se envolveu, foi no processo de privatização do sistema de telefonia pública, durante o governo FHC.
No caso da privatização de todo o sistema Telebrás, o banqueiro é acusado, dentre outras falcatruas, de informações privilegiadas na compra da Telemar, escutas telefônicas clandestinas, envolvendo altos escalões do governo: empresários, juízes e até o Palácio do Planalto. Dantas participou ativamente na elaboração e articulação de “caixa dois” para favorecer eleições de políticos envolvidos em seus esquemas de corrupção. O envolvimento direto e indireto, em corrupção, ativa daria uma enorme lista de grandes e pequenos ilícitos que causaria inveja a Dom Corleone. Na área financeira, através da operação satiagara, a Polícia Federal interceptou vinte e quatro mil operações realizadas pelo banqueiro Daniel Dantas, perfazendo um montante da ordem de seis bilhões de dólares. Dessas operações foram analisadas, até o presente momento, 670 processos e contabilizados desvios tributários de 534 milhões de reais, conforme relatório da Policia Federal.
A pergunta que não cala na boca de milhões de brasileiros é: Por que o Presidente do STF, Gilmar Mendes, mandou soltar os criminosos confessos? Por que a mídia nacional transformou os três mafiosos em vítimas da Polícia Federal? Por que as lideranças políticas dos democratas e tucanos saíram em defesa desse trio de gangsters? A explicação está intrinsecamente ligada ao comportamento histórico da elite brasileira e do próprio sistema capitalista, que sempre protegeu o andar de cima e descarregou toda a ira e truculência no andar de baixo da sociedade. Para defender os interesses desta elite é preciso controlar os poderes da República e usar a mídia para reafirmar suas versões perante a opinião pública.
Entretanto, no atual governo do Presidente Lula, algo mudou no paraíso do colarinho branco, pelo menos no que refere aos instrumentos de apuração disponíveis para a ação do governo central. A Polícia Federal iniciou um trabalho amplo e minucioso que nunca havia ocorrido. Desde a sua posse até 30 de julho deste ano, foram realizadas 577 operações e presos 8.727 pessoas. Somente a título de comparação, no segundo mandato de FHC foram realizadas 10 operações com 57 pessoas presas. Dos milhares de encarcerados pela Polícia Federal nos últimos seis anos, poucos bandidos foram condenados pela Justiça brasileira. São traficantes de drogas, políticos, empresários, juízes, banqueiros, estelionatários e até delegados da Polícia Federal. Estas centenas de operações da PF provocaram um reboliço no seio da burguesia brasileira, pois, seus crimes passaram a ser investigados e os criminosos algemados e presos.
Então, começou uma grande operação, articulada pelo Senado Federal e Supremo Tribunal Federal e reproduzida na mídia contra a Polícia Federal e o Ministério da Justiça. Para atingir seus objetivos, utilizaram, inclusive, um ministro do Governo Lula, que tem profundas relações com o STF, pois foi Presidente daquela Corte até pouco tempo, e é aliado dos tucanos de muitos carnavais. Falo do Ministro Nelson Jobim. Para descaracterizar as investigações, armaram um pseudogrampo entre os Ministro Gilmar Mendes e o Senador Demostocles Torres, dos democratas. Nesse percurso vinham questionando a utilização de algemas nos presos, de grampos e da criminalização antecipada da turma de “sangue azul”.
O desenrolar desta trama e os objetivos traçados pela elite fedorenta já foram em parte alcançados, pois em tempo recorde foi aprovado no Congresso Nacional lei regulamentando o uso de algemas em presos que não oferecem “perigo” para a coletividade. Não ficou claro na lei se este benefício será estendido a todos ou a uma minoria de endinheirados. A segunda iniciativa foi colocar em dúvida as escutas telefônicas como prova de crime, na grande maioria contra a ordem econômica, financeira e tributária. Até pouco tempo as escutas telefônicas serviam para espionar entidades de classe, políticos, lideranças populares e movimentos sociais. Para esses objetivos a elite brasileira aplaudia, mas agora a situação muda drasticamente, pois estamos todos nesta condição e mais especificamente aqueles envolvidos em falcatruas e corrupções, portanto prestes a cair nas garras da Polícia Federal.
Todavia, o principal objetivo desta operação arquitetada pela elite brasileira contra a Polícia Federal é descaracterizar as provas acumuladas na operação satiagara. Daniel Dantas é do tipo de homem que pode comprometer de morte toda uma malha de corrupção que entrelaça a superestrutura do Estado Brasileiro. Os personagens envolvidos nesta trama poderão ultrapassar os conhecidos banqueiros, agiotas, estelionatários e alcançar sociólogos, ideólogos liberais e outros personagens ainda não revelados. As operações da Policia Federal continuam a todo vapor. Nos últimos dias, mais uma quadrilha foi presa, tendo à frente Marcos Valério, o mesmo personagem que em 2004 quase colocou abaixo a República Brasileira e o governo Lula.
Diante de tamanha ofensiva, será preciso aumentar a pressão popular para exigir que os crimes e criminosos sejam devidamente apurados, e os responsáveis, presos e condenados. Será preciso ficar atento para os poderes da República e, em última instância, exigir uma ampla operação para depurar seus membros, fundamentalmente no poder judiciário, que não está sob nenhum controle externo. A luta por um país mais justo e igualitário está em curso e será sempre necessário recorrer aos nossos poetas; neste caso, ao saudoso Cazuza.
“Enquanto houver burguesia não haverá poesia”.
Gilson Reis é presidente do Sinpro-MG
